Essa pergunta foi feita por um usuário e respondida por mim no site Quora em português.
Existem várias maneiras de considerar a questão. Se olharmos para a história da ciência fica claro que a maioria dos primeiros pesquisadores buscavam resolver problemas práticos do dia a dia. Se você faz um estudo por conta própria para descobrir qual a melhor isca para usar em sua pescaria, ou a melhor forma de lança para caçar mamutes, você está fazendo ciência.
É claro que a conhecimento avançou muito e hoje a ciência de ponta é difícil e raramente feita por indivíduos sem um treinamento específico. Ao longo do tempo muitos problemas foram resolvidos, por exemplo através de medicamentos e vacinas. A sociedade hoje é 100% dependente de conhecimento avançado que coloca satélites em órbita e cria grandes redes de comunicação.
Com frequência a solução de um problema cria outros problemas que, idealmente, seriam menores que os originais e, quase sempre, exigem mais ciência para a sua solução. Ocorre também a geração de grandes problemas, como foi o caso da produção de medicamentos que causam deformidades em fetos.
Em maiores escalas alguns problemas criados pela tecnologia são enormes e podem, inclusive, determinar o fim da sociedade como hoje conhecemos. Isso acontece com o problema meteorológico do aquecimento global, da proliferação das super-bactérias ou das armas que podem alterar drasticamente a vida no planeta. Não está claro se poderemos resolver esses grandes problemas com mais tecnologia, se teremos que abandonar alguns aspectos da tecnologia ou se simplesmente não seremos capazes de resolvê-los.
Não está claro se poderemos resolver esses grandes problemas com mais tecnologia, se teremos que abandonar alguns aspectos da tecnologia ou se simplesmente não seremos capazes de resolvê-los.
Ainda que a maior parte do esforço e investimento em ciência busquem resolver questões práticas, em geral com alto interesse financeiro, muitos pensadores, desde o início, se dedicaram a resolver questões com o interesse no conhecimento e sem aplicação prática imediata. Em alguns casos as respostas se mostraram mais tarde relevantes nas aplicações, em outros não, pelo menos até o momento. Fato é que humanos não se contentam em olhar para o mundo, no planeta ou no cosmos, sem fazer perguntas básicas sobre o que está e como está acontecendo. Desse ângulo, dispensar a ciência seria uma violação muito grave de um anseio humano natural.
Existe hoje um problema gravíssimo envolvendo ciência, tecnologia e educação. O avanço do conhecimento tornou as disciplinas muito complexas e de difícil compreensão. Pouquíssimas são as pessoas com a capacidade de transitar por mais de uma área científica. Isso exige longos períodos de aprendizado, que fazemos nos bancos de escolas. No entanto não conseguimos, como sociedade, gerar um ensino de qualidade e abrangente para todos. Em praticamente todas as partes a possibilidade de boa formação define a estratificação dos níveis sociais.
A ignorância e o sentimento de exclusão de quem não conseguiu atingir uma compreensão razoável de nossa sociedade ultra-complexa tem gerado uma cultura dos excluídos, o que envolve uma multidão de pessoas dedicadas a pseudociência, teorias conspiratórias e religiões oportunistas. Um exemplo são as pessoas que recusam os programas de vacinação colocando toda a população restante em risco.
Para os terraplanistas o Sol e a Lua são luminares, lanternas pequenas e próximas do disco. A alternância de dias e noites e as fases da Lua ocorrem porque essas lanternas se movem circularmente sobre a superfície. Para eles a gravidade é um problema pois produziria atrações diferentes daquelas observadas. No caso do disco finito a atração gravitacional estaria sempre voltada para o centro do disco e quem estivesse nas proximidades do polo sul seria atraído para baixo e para dentro do disco.Por que existem terraplanistas?
Diferente do que se costuma afirmar não existe ciência nem tecnologia desprovida de ideologia. Isso pode ser visto com clareza nas situações onde o dono de uma fábrica compra um equipamento que automatiza a produção dispensando muitos funcionários. Embora seja correto dizer que a tecnologia aumentou enormemente a produção de alimentos, também é correto que a distribuição desses alimentos não foi generalizada e parcelas enormes da população humana passam fome.
… sistemas educacionais devem ser abrangentes para levar a todos a conhecimento e o interesse na solução dos problemas modernos…
A meu ver precisamos de mais ciência e tecnologia, acopladas com discernimento e entendimento global das coisas. Para isso o ensino tem que encontrar uma forma de capturar o interesse e entusiasmo dos jovens, ao mesmo tempo em que os sistemas educacionais devem ser abrangentes para levar a todos o conhecimento e o interesse na solução dos problemas modernos.
A tomografia por emissão de pósitrons PET é uma técnica para obter imagens internas do corpo utilizando substâncias radioativas. Diferentes traçadores são usados para diversos fins de imagem, dependendo do processo alvo dentro do corpo.A tecnologia PET utiliza átomos instáveis que liberam energia sob forma de radiação, principalmente fótons de alta energia na forma de raios gama. A tecnologia PET se utiliza da liberação de partículas denominadas pósitrons, que são as antipartículas (antimatéria) do elétron.
O que você pensa a esse respeito?
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“Como é possível que uma massa gelatinosa de um quilo e meio que cabe na palma de uma mão, possa imaginar anjos, contemplar o significado do infinito e até mesmo questionar seu lugar no cosmos? Especialmente inspirador é saber que qualquer cérebro, incluindo o seu, é composto de átomos forjados há bilhões de anos nos corações de incontáveis estrelas distantes. Estas partículas flutuaram durante eras e por anos-luz, até serem reunidas pela gravidade nos blocos de matéria em que estamos aqui e agora. Parte desses átomos formaram conglomerados – os cérebros – capazes de ponderar sobre as próprias estrelas de onde vieram, fazer instropecção sobre sua própria capacidade de pensar e questionar sua capacidade de se maravilhar. Com a chegada dos humanos o universo se tornou consciente de si mesmo. Este é, verdadeiramente, o maior mistério de todos.”
— V. S. Ramachandran em The Tell-Tale Brain: A Neuroscientist’s Quest for What Makes Us Human.
O que é Consciência
Inseri no final vários vídeos do TED Talks que abordam esse tema. Todos estão em inglês mas com o recurso de legendas em português. Clique no ícone e selecione “Portuguese, Brazilian”.
Como seres que observam nós, humanos, somos dotados de introspecção, capacidade de análise e interpretação. Elaboramos uma descrição sofisticada do mundo externo através de nossa cultura e, principalmente, daquilo que chamamos de conhecimento científico. O que temos é uma descrição razoavelmente completa e bastante funcional. Para fazer isso usamos de criatividade. No entanto não temos nenhuma certeza de que nossos modelos são uma descrição fiel do que existe e acontece no universo ou mesmo se as expressões “existe e acontece” têm algum sentido científico. Não temos a menor noção do que significa “mundo objetivo ou real”.
O pensamento moderno sustenta que os modelos científicos são aproximações recursivas do que se experimenta na natureza e se tenta descrever. Eles são aproximações porque é muito improvável que descrevam todo o fenômeno em questão, e são recursivos porque se reformam e ganham precisão e detalhe com o aumento da tecnologia de observação e do embasamento teórico envolvido, a partir do que já é conhecido. Aproveite para ler, nesse site:
Apesar de tantos progressos, conhecemos muito pouco do que se passa em nosso interior, em nossa subjetividade. Não sabemos como foi possível elaborar o edifício da ciência, nem da cultura nem da própria civilização. Entender a consciência é um grande problema não resolvido. E, no entanto, ainda que de natureza sutil e de difícil captura, a consciência é absolutamente tudo aquilo que experimentamos, o nosso único ponto de acesso ao que existe. O contato com objetos sólidos, a luz de tantas tonalidades que percebemos na natureza e até o calor da companhia humana, a raiva o apego e o amor, todos esses fenômenos estão em nossa consciência, são parte de nossa interioridade. O que chamamos de realidade objetiva é formado por informações internas da consciência que, de alguma forma, capturou algo no mundo externo. De certa forma não cabe dizer que vivemos em dois mundos, o exterior e o interior, porque tudo o que jamais foi capturado do exterior está dentro de nossa subjetividade … ou não existe para nós.
Poderíamos argumentar que somos capazes de coletar, armazenar e analisar dados relativos a partes do mundo que não são diretamente acessíveis aos nossos sentidos, como ocorre com a coleta de imagens no infravermelho ou ultravioleta. Isso está correto mas não tomaremos consciência de nenhum dessas informações se não olharmos para os resultados que estão apresentados em telas de computadores ou papel. Diremos portanto que a experimentação converteu informações fora de nosso espectro sensorial para outra faixa que podemos observar.
Não se trata aqui de negar a existência do mundo exterior, como fazem algumas abordagens filosóficas e religiosas. O mundo está lá (ou aqui) de alguma (ou outra) forma. Mas não temos nenhuma noção de qualquer grau de realidade nesse mundo físico e objetivo. Sabemos que ele reage com regularidade e consistência às nossa perguntas, sejam por meio da mera interação cotidiana ou de um experimento científico. Para a alegação de que construímos com a nossa mente o mundo a nosso redor, podemos recuperar a memória dos vários “experimentos com resultado negativo”. São esses os experimentos realizados para confirmar uma visão de mundo amplamente aceita pela comunidade científica da época e que, no entanto, retornam resultados que negam essa mesma visão. Foi o que ocorreu com o experimento de Michelson Morley que mostrou que a velocidade da luz no vácuo é independente do observador, um dos fundamentos da Teoria de Relatividade de Einstein; ou as inúmeras observações incoerentes com a física clássica que originaram a mecânica quântica.
David John Chalmers (nascido em 20 de abril de 1966, na Austrália) é um filósofo e cientista cognitivo, especialista em filosofia da mente e da linguagem. Chalmers é bem conhecido por ter formulado o chamado problema difícil da consciência (the hard problem of consciousness).
O problema difícil
O problema difícil consiste na discussão de como e por que os humanos (ou outros organismos) possuem consciência dos fenômenos e os transformam em experiências subjetivas. Ele é diferente dos chamados “problemas fáceis” que demandam a explicação de sistemas físicos que nos permitem discriminar, coletar e processar informações, explicar nossos modos comportamento e relatar nossas descobertas, por exemplo. Esses são problemas que admitem explicações, pelo menos em princípio, seja por meios mecânicos ou de comportamento. Pesquisadores e filósofos que propõem a existência do “problema difícil” argumentam que ele é intrinsecamente diferente e não admitem a explicação mecanicista ou comportamental, nem mesmo em princípio.
Importante mencionar que nem todos os filósofos ou neurocientistas concordam sequer com a existência do “problema difícil”. Independentemente disso o conceito é útil para se discutir a questão.
Qualia
Para fazer referência às qualidades subjetivas da experiência mental e consciente foi proposto o termo QUALIA, buscando expressar a experiência pessoal e subjetiva da sensação de uma cor, de um sentimento como uma emoção ou a percepção da dor, por exemplo. O conceito de Qualia surge para representar uma lacuna em nosso entendimento sobre o que diferencia qualidades subjetivas da percepção e o mecanismo de captação e processamento, o cérebro. Por definição, as propriedades da experiência sensorial são não cognoscíveis, exceto se diretamente vivenciadas, além de incomunicáveis.
Daniel Dennett listou quatro propriedades comumente associadas aos qualia. Qualia são:
inefáveis; não podem ser comunicados ou apreendidos exceto pela experiência direta,
intrínsecos; são propriedades próprias e não definidas por meio de relações com outros objetos,
privados; não podem ser submetidos a comparações entre subjectividades diversas,
direta e imediatamente apreensíveis pela consciência; a experiência de qualia é completa e imediata.
Antes de prosseguir a leitura, imagine como você descreveria o que é o vermelho para uma pessoa que só enxerga tons de cinza!
Física e descrição do mundo
Consideramos Galileu Galilei o pai da física moderna por ele ter dado início a um longo programa de testes sobre a natureza inquirida sob a forma de experimentação. Entendemos hoje que a ciência é feita por meio de uma dinâmica entre o que foi chamado empirismo e idealismo. Um experimento sozinho, sem um embasamento teórico que o descreva, não é suficiente, e o puro processamento intelectual sobre o mundo dos fenômenos não traz respostas conclusivas se elas não podem ser verificadas empiricaamente. Esse programa nos permitiu elaborar um desenho do universo onde partículas e campos interagem de modo (razoavelmente) compreendido, ainda que não completo. Ainda assim a parte cognição, o próprio princípio que nos permite entender, permanece completamente fora do escopo científico. Na visão padrão das coisas a consciência está apenas em cérebros que, evidentemente, constituem uma porção muito reduzida do universo completo.
Panpsiquismo
A dificuldade em exibir uma teoria que explica o surgimento de consciência emanada de partículas supostamente sem propriedades conscientes levou muitos pensadores, antigos e modernos, a propor o conceito de “panpsiquismo”. Em seu livro “O Erro de Galileu: Fundamentos para uma Nova Ciência da Consciência” o filósofo Philip Goff apresenta essa perspectiva radical com a pergunta: “e se a consciência não for uma produção especial do cérebro, mas uma qualidade inerente a toda a matéria?” Nessa proposta as partículas, além de suas propriedades físicas usuais, como massa e carga elétrica, possuem alguma forma de interação com o resto do mundo de forma a poder formar consciências em algum nível de agrupamento complexo de matéria. Desnecessário pontuar que essa é uma especulação que pode se tornar importante no futuro, mas por enquanto não tem qualquer status de teoria (nem mesmo de hipótese) científica. Não existe qualquer noção sobre serem todas as partículas dotadas dessa propriedade ou se ela repousa em algumas, como elétrons ou quarks.
O próprio Chalmers propôs, em uma palestra do TED Talks, que um fóton “poderia possuir algum elemento de puro sentimento subjetivo, algum precursor da consciência.” Juntando-se a ele o neuroscientista Christof Koch afirmou no livro Consciousness, 2012, que se aceitarmos a consciência como um fenômeno real, independente de qualquer meio material particular, então “em um passo simples teremos que admitir que todo o cosmos está permeado pela senciência.”
Deve ficar claro aqui que o conceito de panpsiquismo não é aceito pela maioria dos cientistas e pensadores, nas ciências físicas ou mesmo na filosofia. Mesmo Goff admitiu as dificuldades existente para se responder alguns problemas, entre eles a explicação de como a reunião de muitas partículas com pequena senciência pode gerar um consciência como a humana. O neurocientista Anil Seth, em seu livro Being You, 2021, criticou o panpsiquismo como algo que “realmente não explica nada e não leva a hipóteses testáveis. É uma saída fácil para o aparente mistério representado pelo problema difícil.”
Fisicalismo
A consciência é modernamente vista (por uma maioria, com pequena margem) como um fenómeno emergente, o resultado da existência de sistemas complexos, como os cérebros humanos. Nesta proposta, também especulativa e exploratória, neurónios individuais não são conscientes, e as propriedades observadas de consciência cerebral só existem coletivamente como resultado da interação de um grande número de neurônios (entre 85 a 100 bilhões de neurônios, nos humanos). Essas interações e a emergência dos processos conscientes são também, reconhecidamente, pouco compreendidas.
Pesquisas mostram que um pouco mais da metade dos filósofos acadêmicos defendem essa visão, conhecida como “fisicalismo” ou “emergentismo”, enquanto aproximadamente um terço rejeita o fisicalismo para se inclinar a alguma alternativa, entre elas o panpsiquismo. Fisicalismo é o conceito de que o mundo pode ser inteiramente explicado usando descrições físicas. Até mesmo coisas aparentemente não físicas se reduziriam a uma descrição que usa apenas partículas e campos físicos, em a necessidade de se agregar elementos externos.
Crick e Watson descobriram juntos o mecanismo da hereditariedade por meio da dupla hélice de DNA.
Não é raro que físicos e biólogos adotem posições mais próximas do fisicalismo, na defesa de que não existe nada além de partículas e interações. Francis Crick, biofísico e neurocientista britânico, defendia que a consciência é sim um objeto tratável pela ciência. Ele e James Watson sustentavam que a ciência esclareceria a consciência através da descoberta de seus correlacionamentos neurais e identificaram como uma possível base para o fenômeno o disparo sincronizado de células do cérebro, numa taxa de 40 vezes por segundo.
O quarto de Mary
Frank Jackson sugeriu um experimento mental que ele denominou “O quarto de Mary” (Mary’s Room) para desafiar a visão fisicalista. Podemos descrever em termos completamente físicos os nossos sentimentos privados, nossas “qualia”?
Imagine uma neurocientista chamada Mary vivendo em um quarto fechado onde tudo é preto ou branco. Ele tem a seu dispor livros e um computador e passa seu tempo estudando tudo o que consegue sobre a cor “vermelha”. Ela estudou sobre a física das ondas de luz e sabe localizar o vermelho no espectro eletromagnético, aprendeu como o olho humano processa a luz e envia informações sobre ela para o cérebro. Ela entendeu perfeitamente como o cérebro interpreta esses sinais como a cor vermelha e ainda pesquisou sobre todas as associações poéticas envolvendo o vermelho. No entanto, tristemente, Mary nunca viu por si mesma o vermelho.
Um dia, suponha, Mary consegue sair de seu mundo preto e branco e vê uma rosa vermelha. Uma questão filosófica é levantada: Mary descobre alguma novidade quando vê a flor, sua compreensão de vermelho é ampliada?
Pense: Qual é a sua opinião? Mary obterá uma informação nova sobre o vermelho?
Se acreditamos que ela aprendeu algo novo então somos obrigados a concluir que uma descrição puramente física do mundo não pode ser completa. Existe algo que está além e o fisicalismo está incompleto. “Qualia” não estão entre as propriedades físicas e Mary jamais “saberia” o que é vermelho sem enxergá-lo diretamente.
Embora Jackson tenha criado esse experimento hipotético, ele mesmo rejeitou seu argumento pois não acreditava que Mary pudesse aprender algo novo sobre o mundo. Ele defendia que, nesse caso, ela teria aprendido uma novidade sobre si mesma. A “cor vermelha” em qualia não pertence ao mundo objetivo mas é uma propriedade de quem observa.
Mas, outra pergunta vem a tona quando se tenta salvar o fisicalismo: propriedades subjetivas estão no mundo físico? Jackson acredita que sim e argumenta que, se tivéssemos condições tecnológicas para reproduzir a neurobiologia, construir um cérebro artificial tão sofisticados como o cérebro humano, a cor vermelha, e os comportamentos associados a ela, seriam reproduzidos com fidelidade e transformaríamos qualia em algo objetivo.
O argumento de Frank Jackson para rebater o fisicismo, estabelecendo que a experiência envolve elementos que estão além das propriedades físicas da natureza, faz parte do Argumento do Conhecimento. Ele está baseado na ideia de que alguém, mesmo com pleno conhecimento físico sobre outro ser consciente, pode não ter conhecimento completo sobre como é ter as experiências do outro.
Você acredita que uma inteligência artificial ultra sofisticada, que simula perfeitamente um diálogo humano, incluindo suas emoções, perplexidades e inseguranças, possui qualia? Ela pode sofrer, admirar e sentir medo? Podemos um dia ter leis contra o “assassinato” de robôs e máquinas inteligentes?
Outras objeções contra o panpsiquismo são apresentadas, entre elas por ele não ajudar a resolver o problema de “Outras Mentes”. Temos, por definição, acesso a nossa própria mente mas, como podemos saber qualquer coisa sobre o que se passa na mente de outra pessoa? Esse problema está relacionado com as próprias propriedades de qualia, como as descritas por Dennet. Por causas de objeções desse tipo se tem sugerido que o panpsiquismo seja algo similar à invocação do Deus das Lacunas, uma invocação ex-machina para suprir deficiências da descrição científica.
Solipisismo é uma forma extrema da situação de “Outras Mentes”. Como você pode ter certeza de que uma pessoa em seu ambiente está de fato consciente ou se não passa de uma simulação? O solipisismo é a sugestão de que, talvez, você seja o único ser real do universo, criando a realidade que te cerca.
O cosmopsiquismo é outra tentativa, sugerindo que todo o universo é consciente e que as consciências individuais e localizadas não geram senciência mas apenas agregam aquela que já existe em toda a parte.
A Teoria da Mente
“Teoria da Mente é a capacidade em considerar os próprios estados mentais e os das outras pessoas, com a finalidade de compreender e predizer comportamentos e pensamentos do outro, por meio, por exemplo, de suas expressões, ações, jeito de falar.“
— Deborah Kerches, dradeborahkerches.com.br
Na psicologia a forma como percebemos a mente de outras pessoas, e seus estados, foi denominada Teoria da Mente. Ela consiste na formulação de um modelo pessoal e interno que visa descrever como a outra pessoa se sente, no que ela acredita, o que pretende e deseja. Consideramos que temos uma “teoria” sobre o estado da outra pessoa exatamente por não termos acesso direto a seus estados internos e, um bom desenvolvimentos desse modelo permite, por exemplo, que tenhamos empatia. Uma teoria da mente deficiente pode ser um sinal de uma desordem como o autismo, déficit de atenção ou esquizofrenia.
Você assiste, sem interferir, a cena representada ao lado: Bia guarda uma bola em sua cesta e sai da sala. Sem que Bia perceba, Ana tira a bola da cesta e coloca em sua caixa. Quando Bia voltar sabemos que ela irá procurar a bola em seu cesto. Temos um quadro mental que acompanha o estado do mundo na perspetiva de Bia. Este quadro é a teoria da mente, segundo o espectador.
Empatia é a capacidade de um indivíduo de compreender o estado emocional ou sofrimento físico de outra pessoa. Como ela é baseada na percepção de estados internos em outro indivíduo ela está associada de perto com a capacidade de construir teorias da mente eficazes. Pesquisas mostram que indivíduos do sexo feminino possuem, na média, maior empatia do que as do sexo masculino, enquanto as crianças, meninos e meninas, mais empáticos levam para a vida adulta essa propriedade. Essas verificações, segundo se acredita atualmente, são decorrentes de processos evolucionários e não explicadas por diferenciação ambiental ou aspectos culturais.
Diversos pesquisadores sugeriram independentemente que a empatia está intimamente associada com o funcionamento dos neurônios espelhos. Esses neurônios são responsáveis por atitudes causadas por volição própria do indivíduo mas também disparam quando ele observa as mesmas atitudes em outro indivíduo, estabelecendo uma conexão. Literalmente eles causam dor em quem observa outra pessoa em sofrimento.
Correlatos Neurais da Consciência
Todas essas considerações revelam dois aspectos: (1) o estudo da consciência é muito difícil; (2) algum progresso importante tem sido feito recentemente. Abandonamos o estado de aceitar a consciência como algo fora do universo, sem participação no fenômeno estudado para inserí-la no próprio mundo que queremos compreender. Queremos encontrar os “correlatos neurais da consciência” (Neuronal Correlates of Consciousness, NCC), os mecanismos neuronais mínimos que, em conjunto, são suficientes para provocar a experiência consciente. A dor corporal fazem as células nervosas se agitarem de alguma forma específica? Existem “neurônios especiais da consciência” que devem ser ativados? Eles estão localizados em regiões específicas do cérebro?
A busca por “correlatos neuronais da consciência” não é meramente acadêmica. As pessoas passam por estados inconscientes por diversos motivos: ela pode estar dormindo, pode ter sofrido um trauma violento, uma doença desabilitante ou pode estar morta. Também é possível que tenha sido exposta a uma droga, como a anestesia. Muitos pacientes no mundo inteiro ficam desacordadas ou em coma por longos períodos e nem sempre é possível saber se existe uma consciência interna aprisionada e sem conseguir se manifestar. Alguns estudos indicam que esse estado não é raro. É, portanto, essencial que se busque verificar por meios objetivos, através de EEGs ou outros aparatos médicos, se o paciente é portador de algum nível de consciência.
Se uma determinada região do cérebro sofre uma lesão podemos perder funcionalidades associadas a essa região. O cerebelo, por exemplo, é controlador de movimentos, particularmente o movimento fino necessário para o controle de um músico ou um atleta olímpico. Ele contém quatro vezes mais neurônios que todo o restante do cérebro. Ainda assim uma pessoa que sofre dano no cerebelo mantém suas habilidades motoras, embora perca parte de sua fluidez. Eles mantém sua experiência pessoal, seus sentidos, seu senso de individualidade e sua memória. Concluímos portanto que o cerebelo não é essencial para a experiência subjetiva.
Por outro lado uma lesão na medula espinhal pode desabilitar completamente as funções motoras de uma pessoa, enquanto danos ao neocórtex podem prejudicar a experiência de sentimentos. Muito do que sabemos sobre a especialização de blocos do cérebro advém de estudo de pacientes que sofreram lesões, sendo o caso de Phineas Gage um exemplo espetacular.
Phineas Gage
Operários em Vermont, EUA, em setembro de 1848, construiam uma estrada de ferro usando dinamite para explodir rochas. Phineas Gage colocou pólvora em buraco na rocha quando uma explosão lançou uma barra de metal de 1 metro e meio de comprimento contra sua cabeça. A barra entrou pela bochecha esquerda, destruiu seu olho e atravessou a parte frontal do cérebro, saindo pelo alto da cabeça, do lado direito. Gage permaneceu consciente, conseguindo caminhar e falar normalmente.
Apesar da gravidade do acidente ele sobreviveu e se recuperou fisicamente. Dois meses depois Gage já podia caminhar normalmente pela vila onde morava. No entanto sua personalidade ficou completamente transformada. Ele se tornou um homem de mau gênio, grosseiro, desrespeitoso com as pessoas e incapaz de aceitar conselhos. Ele passou um tempo de sua vida se apresentando como atração circense, morrendo doze anos após o acidente.
O caso de Phineas Gage é mencionado como uma das primeiras evidências indicando que lesões nos lóbulos frontais podem alterar a personalidade, emoções e a interação social. Antes disso se considerava que os lóbulos frontais eram estruturas sem função e não relacionadas com o comportamento humano. No entanto, seu cérebro só começou a ser estudado quatro anos após sua morte. Não se pode ter certeza sobre as extensões de suas lesões e nem temos um conhecimento completo de suas alterações de comportamento. A narrativa contribuiu, mesmo assim, para ilustrar o longo e árduo debate do século XIX sobre se existem áreas específicas do cérebro especializadas em funções mentais, ou se as funções estão espalhadas por todo o conteúdo craniano.
Hoje se acredita que existe localização de funções no cérebro, entre elas:
Movimentos voluntários são controlados pelo córtex motor primário, localizado no lobo frontal.
Linguagem é controlada pela área de Broca, no lobo frontal, responsável pela produção da linguagem. A área de Wernicke, no lobo temporal, é responsável pela compreensão da linguagem.
Visão é processada na área visual primária, no lobo occipital.
Memória de longo prazo, é controlada pelo o hipocampo, no lobo temporal.
Duas outras áreas específicas do cérebro merecem menção. A área de Broca, parte do lobo frontal é responsável pela expressão da linguagem; e a área de Wernicke, localizado no córtex cerebral, permite a compreensão da linguagem oral e escrita.
O termostato é um aparelho que usa propriedades da matéria para acionar ou desligar um sistema elétrico.
Apesar dessa possibilidade de localização de funções o cérebro é um órgão complexo e as funções cerebrais são interdependentes umas das outras. A linguagem não é só uma função do lobo frontal, mas também dos lobos temporal e parietal, por exemplo. Além disso sabemos hoje que existe a neuroplasticidade, a capacidade do cérebro de se reorganizar, alocando para áreas diferentes as funções prejudicadas de alguma forma, como no caso de uma lesão por doença ou acidente.
Ainda pertinente ao fisicalismo, David Chalmers sugeriu que o problema difícil poderia ser resolvido se aceitarmos que a “informação” é uma propriedade fundamental da realidade, podendo ser exibido em qualquer sistema e não apenas no com cérebro. Dessa forma mesmo sistemas simples, como por exemplo um termostato, pode ser entendido com possuindo um nível de consciência.
Filosofia da Mente
A filosofia da mente é o estudo filosófico da natureza da mente e de como ela se relaciona com corpo. Ela considera o prolema difícil de qualia, de estados e funções da mente, seus correlatos neurais e o funcionamento da cognição. No entando sua questão central está na relação entre mente e corpo. Grosso modo duas visões centrais disputam ter uma resposta para esse problema: o dualismo e o monismo.
O dualismo tem suas origens, na filosofia ocidental, no pensamento de René Descartes, século XVII. Descartes sugeria que a mente é uma substância independente do corpo, enquanto outros dualistas sustentam que ela é um grupo de propriedades independentes e emergentes que não podem ser reduzidas ao cérebro (sem ser uma substância distinta). Monismo é a defesa de que mente e corpo são entidades que não podem ser separadas, tese defendida, por exemplo, por Baruch Spinoza, um racionalista do século XVII.
Os fisicalistas, na defesa de que existem apenas entidades postuladas pela teoria física e o processo mental poderá ser, eventualmente, explicado em termos dessas entidades, são, naturalmente monistas. Para os idealistas apenas a mente existe e o mundo externo é uma ilusão criada pela mente.
O Problema Corpo-Mente
O problema corpo-mente consiste na difuldade em se explicar como processos mentais podem controlar o corpo, o que são esses processos mentais e o mecanismo que permite a eles ativar ações físicas no corpo.
Uma experência sensorial consiste na obtenção de estímulos físicos oriundos do mundo externo, como ondas de luz atingindo os olhos, levadas até os centros de percepção causando alteração em nossos estados mentais. Essa percepção pode provocar atração ou repulsão ativando uma resposta física que movimenta o corpo. Essa ação corporal pode ser causada até mesmo por crenças, a noção de que um objeto inexistente está próximo, disparando os mesmos neurônios e músculos.
Neurociência
Todos esses problemas adquirem uma nova perspectiva com o surgimento da neurociência. Baseada na biologia e medicina do cérebro ela busca basicamente encontrar os correlações neurais entre mente e corpo, e esse estudo tem sido amplamente ampliado com o desenvolvimentos de aparelhos medidores, como máquinas de ressonância magnética e muitas outras.
Assim como em diversas outras áreas do conhecimento temos hoje uma enorme oportunidade de resolver grandes dúvidas e aperfeiçoar o entendimento do que significa ser humano. Claro que isso deve encontrar eco nos processos concretos da sociedade, como na medicina e na educação.
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Videos Recomendados sobre o tema da Consciência
Todos os vídeos estão em inglês mas com o recurso de legendas em português. Clique no ícone e selecione “Portuguese, Brazilian”.
What is Consciousness (O que é a consciência?)
Michael Graziano
How do you explain consciousness? (Como você expĺica a consciência?)
David Chalmers
Your brain hallucinates your conscious reality (Seu cérebro alucina sua realidade consciente)
Anil Seth
What is Consciousness? (O que é a consciência?)
Daniel Dennet
The long reach of reason
Steven Pinker e Rebecca Newberger Goldstein
Bibliografia
Livros:
Anil Seth: Being You, A New Science of Consciousness, Dutom, 2021.
Segue um exemplo de um tipo de questão recorrente em testes de admissão em empresas de tecnologia. Outras soluções, além da aqui apresentada, são encontradas em sites, como por exemplo no canal do Youtube Universo Narrado.
Dois arcos perpendiculares seccionam um círculo, como mostrado na figura 1. Qual é o raio do círculo?
Para resolver esse problema vamos estabelecer um sistema de coordenadas (os eixos em vermelho na figura 2) paralelo aos arcos dados e que passa pelos pontos \(a\) e \(b\).
Nesse sistema as coordenadas são \(a=(0, 2)\) e \(b=(1, 0)\). Vamos ainda designar por \(c=(x, y)\) as coordenadas do centro do círculo. O arco \(s’\) é paralelo e simétrico à \(s\) e ajuda a perceber que o centro do disco tem coordenada \(x=2.5\), ou seja, \(c=(2.5,y)\). Resta encontrar o valor de \(y\).
Denotando por \(r = d(p_1, p_2)\) a distância entre dois pontos \(p_1\) e \(p_2\), sabemos que \(r= d(a,c) = d(b,c)\), que é o raio do círculo. Em termos das coordenadas temos:
$$
d^2(a,c) = 2.5^2 + (y-2)^2, \\
d^2(b,c) = 1.5^2 + y^2.
$$
Igualando os dois termos encontramos \(y=2\), ou seja \(c=(2.5, 2)\). O raio procurado é $$r = d(b,c) = \sqrt{1.5^2 + 2^2} = 2.5.$$
Usamos acima o fato de que, se \(d(a,c) = d(b,c)\) então \(d^2(a,c) = d^2(b,c)\) pois \(d^2\) é estritamente crescente para \(d > 0\).
A Distância mais Curta
Dados dois pontos A e B que estão do mesmo lado de uma reta r e não são pontos desta reta, qual é o caminho mais curto ligando A e B e que toca a reta r, (figura 3)?
Considerando que podemos desenhar infinitos caminhos que satisfazem o requisito de ligar os pontos e tocar a reta r, este é um problema de se encontrar um mínimo. Quase sempre este tipo de problema exige um pouco de cálculo em sua solução. Neste caso o raciocínio geométrico pode ser útil e nos dispensar do cálculo. Comecemos por desenhar um ponto B’ simétrico ao ponto B em relação à reta (figura 4). Observamos que a distância entre x e B é a mesma que entre x e B’, onde x é qualquer ponto de r.
Como consequência a distância entre A e B, passando por x é mesma que a distância entre A e B’, também passando por x. Agora, sabemos que o caminho mais curto entre dois pontos é um segmento de reta, logo o ponto x = q deve estar na reta que liga A a B’. Pronto, esta é a solução para o problema (figura 5)!
Gauss e a soma dos 100 primeiros inteiros
Conta-se que Gauss teria encontrado a soma dos 100 primeiros inteiros em 30 segundos, na escola primária. Seu professor, aborrecido com a algazarra que faziam as crianças, teria mandado que todos calculassem esta soma e Gauss apresentou a resposta rapidamente. Esta é, na verdade, uma operação que pode ser feita de cabeça se você tiver a criatividade de Gauss …
Enquanto os colegas faziam as contas: 1 + 2 + 3 + . . . . + 99 + 100 = S, Gauss agrupou os inteiros em duas colunas e depois somou os números em cada linha:Vemos que Gauss obteve 50 linhas cuja soma é 101. A soma total é, portanto, 50 × 101 = 5050.
No caso geral, para somar todos os inteiros de 1 até N basta fazer: 1 + 2 + 3 + 4 + . . . . + N = (1 + N) × (N/2)
Você pode provar esta última afirmação?
Rolagem de discos
Esta questão apareceu no SAT americano (um teste usado para admissões nas universidades, aplicado no mundo todo) em 1982. Apenas 3 alunos entre os 300 mil que fizeram o teste acertaram. Até os examinadores que prepararam o problema erraram a solução e a questão teve que ser retirada da pontuação. No entanto é possível resolver essa questão com conhecimentos do nosso ensino médio.
O raio do disco A (vermelho, na figura 6) é de 1/3 do raio do disco B (cinza). O disco A desliza sem escorregar sobre o disco B até dar uma volta completa em torno do disco B e retornar para a sua posição original.
Quantas voltas o disco A terá dado em torno de si mesmo?
Vamos chamar de \(s\) o ponto de \(A\), e \(p\) o ponto de \(B\) em contato no início, como mostrado na figura 7. A circunferência de \(B\) é 3 vezes maior que a de \(A\) (pois \(R = 3r\)) portanto, no deslizamento \(s\) vai tocar \(B\) em três pontos, \(p\), \(p\prime\) e \(p\prime\prime\), que dividem a circunferência de \(B\) em 3 partes iguais. No primeiro contato, quando \(s\) tocar \(p\prime\), o ângulo \(\alpha \) será de \(1/3\) de volta. O ponto \(s\) de \(A\) terá dado uma volta inteira mais \(\beta \).
Mas, observe na figura 7 que \(\alpha = \beta\). Isso significa que o ponto \(s\) girou \((1+1/3)\) voltas. Por simetria ele fará o mesmo de \(p\prime\) até \(p\prime\prime\), e depois de \(p\prime\prime\) até \(p\). Portanto o ponto \(s\) terá girado \(3(1+1/3) = 4\) voltas.
Para dar um exemplo de análise de fatores usaremos o módulo factor_analyser do Python. Os dados usados são originados do Synthetic Aperture Personality Assessment (SAPA) que contém 25 questões de auto-avaliação pessoais disponíveis na web na página de Vincent Arel-Bundock, no Github.
SAPA, Synthetic Aperture Personality Assessment, é um método usado para avaliar diferenças de personalidade individuais, muito utilizado para pesquisas online. O sujeito testado recebe um subconjunto aleatório dos itens em estudo com o objetivo de reunir grande volume de dados suficientes para a montagem de grandes matrizes de covariância (de relacionamento entre os dados verificados). O teste online foi desenvolvido por William Revelle e é mantido pela Northwestern University, Ilinois, EUA.
O teste consiste dos seguintes ítens: A1: Sou indiferente aos sentimentos das outras pessoas. A2: Sempre pergunto sobre o bem-estar dos outros. A3: Sei como confortar os outros. A4: Adoro crianças. A5: Faço as pessoas se sentirem à vontade.C1: Sou exigente no meu trabalho. C2: Continuo minhas tarefas até que tudo esteja perfeito. C3: Faço as coisas de acordo com um plano. C4: Deixo tarefas semi-acabadas. C5: Desperdiço meu tempo.E1: Não falo muito. E2: Tenho dificuldades para abordar outras pessoas. E3: Sei como cativar as pessoas. E4: Faço amigos facilmente. E5: Assumo o controle das situações.
N1: Fico com raiva facilmente. N2: Irrito-me facilmente. N3: Tenho alterações de humor frequentes. N4: Muitas vezes me sinto triste. N5: Entro em pânico facilmente.
O1: Sempre tenho muitas ideias. O2: Evito leituras complexas. O3: Procuro levar as conversas para um nível elevado. O4: Passo algum tempo refletindo sobre as coisas. O5: Nunca me detenho a avaliar um assunto profundamente.
Escala:
A escala usada para respostas usada foi: 1. Totalmente falso 2. Moderadamente falso 3. Um pouco falso 4. Um pouco correto 5. Moderadamente correto 6. Totalmente corretoIndicadores Demográficos:
estão codificados da seguinte forma: Gênero: 1. Masculino, 2. Feminino. Idade: a idade (em anos). Educação: 1. Nível médio incompleto, 2. Nível médio completo, 3. Nível superior incompleto, 4. Nível superior completo, 5. Pós-graduação.Fatores esperados:
Os itens estão organizados por fatores esperados (a serem verificados pela análise): Agreeableness, (Amabilidade), Conscientiousness, (Conscienciosidade), Extroversion, (Extroversão), Neuroticism, (Neuroticismo) e Opennness, (Abertura).
O arquivo de respostas disponível foi baixado como o nome bfi.csv e salvo na pasta do projeto, subpasta ./dbs. Esse arquivo contém dados no formato *.csv (valores separados por vírgula) relativos a 2800 sujeitos com 3 campos adicionais de dados demográficos: sexo, educação e idade.
Jupyter Notebook e convenções usadas
Jupyter Notebook é uma aplicação web e opensource que permite sessões colaborativas e documentos compartilhados contendo código que pode ser executado dentro da página, equações bem formatadas, visualização gráfica e texto narrativo que podem ser postas sob forma de apresentações ou usadas para desenvolvimento. Seu uso inclui tratamento, transformação e visualização de dados, simulações numéricas, modelagem estatística, machine learning entre outras aplicações.
O projeto será rodado em uma sessão do Jupyter Notebook. Nessa página usamos as seguintes convenções: células de código do Jupyter Notebook aparecem dentro de caixas como a exibida abaixo. Nos notebooks (como no Python) linhas iniciadas pelo sinal “#” são comentários. Apenas nessas páginas outputs simples e compactos podem aparecer como um comentário após o comando como mostrado abaixo (diferente do que ocorre nos notebooks). Outpus mais complexos aparecem em caixas separadas.
# Exemplo de exibição das células do Jupyter Notebook.
print('output simples') # Esse comando imprime 'output simples'
# Outpus mais complexos aparecem em caixas separadas:
print('Outputs do Jupyter Notebook, gráficos e dataframes exibidos aparecem como nesse quadro...')
Outputs do Jupyter Notebook, gráficos e dataframes exibidos aparecem como nesse quadro…
Módulo Factor Analyser
Factor Analyser é um módulo desenvolvido em Python por Jeremy Biggs e Nitin Madnani, publicado em 2017 para realizar análise fatorial exploratória e confirmatória (AFE, AFC). As classes do pacote são compatíveis com a biblioteca scikit-learn. Partes do código são portadas da biblioteca psych do R.
Tratamento dos dados do bsi por meio do factor_analyser
Instalamos o módulo factor_analyzer dentro do Jupyter Notebook. Em seguida importamos as bibliotecas necessárias: além do próprio factor_analyzer usamos o pandas e numpy para as manipelações de dados e matplotlib para as visualizações.
# Instalação do factor_analyzer:
conda install -c ets factor_analyzer
# Importando bibliotecas (libraries) necessárias
import pandas as pd
import numpy as np
from factor_analyzer import FactorAnalyzer
import matplotlib.pyplot as plt
# A leitura do arquivo de dados para dentro de um dataframe (do pandas)
df = pd.read_csv('./dbs/bfi.csv')
# Renomear a primeira coluna (que está sem nome) para 'id'
df.rename(columns = {'Unnamed: 0':'id'}, inplace = True)
print('A tabela importada contém %d linhas, %d colunas' % df.shape)
print('contendo as seguintes colunas:\n', df.columns)
# Para visualizar a tabela importada:
df.head()
Como em qualquer outro uso de dados, principalmente quando importados de fontes externas, fazemos uma verificação de estrutura e completeza ou a existência de valores ausentes (NaN). Os dados demográficos são armazendos em outro dataframe enquanto a avaliação das questões em si são deixadas no dataframe df depois de eliminados os campos relativos a dados demográficos.
# Tabela dfDemografico armazena id, sexo, educação e idade
dfDemografico = df[['id', 'gender', 'education', 'age']]
# Colunas desnecessárias são eliminadas de df
df.drop(['id', 'gender', 'education', 'age'],axis=1,inplace=True)
# Possíveis dados ausentes são eliminados
df.dropna(inplace=True)
# Para verificar as colunas de df
df.head(2)
A1
A2
A3
A4
A5
C1
C2
C3
C4
C5
…
N1
N2
N3
N4
N5
O1
O2
O3
O4
O5
0
2.0
4.0
3.0
4.0
4.0
2.0
3.0
3.0
4.0
4.0
…
3.0
4.0
2.0
2.0
3.0
3.0
6
3.0
4.0
3.0
1
2.0
4.0
5.0
2.0
5.0
5.0
4.0
4.0
3.0
4.0
…
3.0
3.0
3.0
5.0
5.0
4.0
2
4.0
3.0
3.0
2 rows × 25 columns
# Uma visão geral dos dados no dataframe df pode ser vista:
df.info()
Estamos prontos para encontrar a matriz de correlação entre as variáveis. Cada célula dessa matriz mostra a correlação entre duas variáveis, listadas como labels das linhas e colunas. Por isso ele tem os valores da diagonal iguais a 1 (que é a correlação da variável consigo mesma). A matriz de correlação fornece uma visão geral de interrelacionamento dos dados e é usada como input para análises mais advançadas.
A correlação .corr é um método de dataframes do pandas. Por default o método corr usa os coeficientes de Pearson mas também pode usar os coeficientes Tau de Kendall ou coefficientes de Spearman.
# A matriz de correlação entre todas as respostas na tabela
corrMatriz = df.corr()
# Para ver apenas as correlações entre variáveis do grupo A
corrMatriz[["A1", "A2","A3", "A4","A5"]].head(5)
A1
A2
A3
A4
A5
A1
1.000000
-0.350905
-0.273636
-0.156754
-0.192698
A2
-0.350905
1.000000
0.503041
0.350856
0.397400
A3
-0.273636
0.503041
1.000000
0.384918
0.515679
A4
-0.156754
0.350856
0.384918
1.000000
0.325644
A5
-0.192698
0.397400
0.515679
0.325644
1.000000
Em seguida fazemos o gráfico de calor (heatmap) da matriz de correlação. Usamos a biblioteca seaborn para isso. Um heatmap associa uma cor a cada valor na matriz de correção. Tons mais escuros de azul (nesse caso) são valores mais perto de 1, tons mais claros são valores mais perto de -1.
A mera análise do gráfico de calor permite que algumas características da pesquisa sejam visualmente reconhecidas. Duas variáveis diferentes com índice de correlação muito alto podem ser, na verdade, a mesma variável escrita de forma diversa. Nesse caso o pesquisador pode preferir retirar uma delas. Uma ou mais variáveis com nível de correlação muito baixo com todas as demais podem indicar a medida de elementos isolados e fora de contexto com o modelo explorado. Nesse caso vemos agrupamentos claros entre as variáveis A2, A3, A4, A5 e todas as do grupo N, só para citar alguns exemplos.
Análise Fatorial
Análise Fatorial Exploratória, AFE
Podemos agora dar início ao uso específico da Análise Fatorial, começando pela Análise Fatorial Exploratória, AFE, usando o módulo factor_analyzer. O primeiro passo para isso é a avaliação da fatorabilidade dos dados. Isso significa que os dados coletados podem ser agrupados em fatores, que são as nossas variáveis ocultas com o poder de sintetizar e melhor descrever o objeto estudado. Para isso o módulo factor_analyzer oferece dois testes: o Teste de Bartlett e o Teste de Kaiser-Meyer-Olkin.
Teste da esfericidade de Bartlett
O Teste da esfericidade de Bartlett verifica se as variáveis estão correlacionadas entre si, comparando a matriz de correlação com a matriz identidade (que representaria variáveis completamente não correlacionadas).
# Importa o módulo que realiza o teste de Bartlett
from factor_analyzer.factor_analyzer import calculate_bartlett_sphericity
chi_square_value, p_value = calculate_bartlett_sphericity(df)
print('Teste da Esfericidade de Bartlett: chi² = %d, p_value = %d' % (chi_square_value, p_value))
Teste da Esfericidade de Bartlett: chi2 = 18170.966350869272 p_value = 0.
No nosso caso o teste de Bartlett resulta em p-value = 0, o que indica que os dados podem ser fatorados e a matriz de correlação observada não é a identidade.
Teste de Kaiser-Meyer-Olkin
O Teste de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) fornece uma técnica de avaliação se os dados colhidos são apropriados para esta análise fatorial. Ele realiza um teste para cada variável observada e para o conjunto completo de variáveis. O resultado representa o grau em que cada variável observada pode ser predita, sem erros, pelas demais variáveis no conjunto de dados. KMO é uma estimativa da proporção de variância entre todas as variáveis. Os valores de KMO podem estar entre 0 e 1 e valores abaixo de 0.6 são consideredos inadequados.
# Importa calculate_kmo
from factor_analyzer.factor_analyzer import calculate_kmo
kmo_all,kmo_model = calculate_kmo(df)
print('Valores de kmo_all =\n', kmo_all, '\n')
print('KMO =', kmo_model)
Todos os valores de kmo_all são superiores a 0,7 e o KMO geral é KMO = 0.8485 o que são considerados valores muito favoráveis para a análise dos fatores.
Prosseguimos criando uma instância do objeto factor_analysis, tentativamente com 5 fatores
# Criamos objeto factor_analysis, sem rotação e usando 5 fatores (tentativamente)
fa = FactorAnalyzer(5, rotation=None)
# Aplicamos o método fit (ajuste) desse objeto no dataframe
fa.fit(df)
# Depois desse ajuste podemos coletar os autovetores e autovalores
ev, v = fa.get_eigenvalues()
print('São ' + str(len(ev)) + ' autovalores:\n', ev)
Usando os autovalores calculados traçamos um Screeplot que é um gráfico que lista os autovalores em ordem decrescente, usado para determinar o número de fatores a serem retidos em uma análise fatorial exploratória. O teste, introduzido por R.B. Cattell em 1966, sugere manter tantos fatores quantos forem as autovalores anteriores a uma “dobra mais acentuada” ou “cotovelo” no gráfico. Também é sugerido manter o mesmo número de fatores quantos autovalores existirem maiores que 1.
from bokeh.plotting import figure, output_notebook, show
output_notebook()
eixoX = range(1, len(ev)+1) # de 1 0 26
eixoY = ev
p = figure(title="Scree Plot", x_axis_label='n-ésimo autovalor',y_axis_label='autovalor',
x_range=[0,25], y_range=(0, 6), plot_width=600, plot_height=400,
background_fill_color="#c9b2dd")
p.line(eixoX, eixoY, line_width=1, color = 'black')
p.circle(eixoX, eixoY, size=8, fill_color='red', color="black")
show(p)
Algumas críticas são dirigidas ao teste feito dessa forma pois ele insere uma decisão pouco objetiva. Mais de um cotovelo podem aparecer no gráfico. De qualquer forma, como veremos no presente caso, o bom senso e a análise posterior dos agrupamentos de fatores podem sugerir uma alteração nesse número.
Cargas Fatoriais (factor loadings)
A carga fatorial é o coeficiente de correlação entre a variável e o fator. Ela mostra a variância explicada pela variável naquele fator em particular.
Prosseguimos criando um objeto FactorAnalyzer com 6 fatores (tentativamente) e usando o método de rotação varimax.
# 6 fatores
fa = FactorAnalyzer( 6, rotation="varimax")
# o objeto tem o método fit para análise do dataframe
fa.fit(df)
# Desse extraimos as cargas fatoriais (factor loadings)
# Observe que fa.loadings_ é um numpy.array com shape (25,6). Usamos o método
# do pandas pd.DataFrame.from_records para convertê-lo em um dataframe
factorLoadings = pd.DataFrame.from_records(fa.loadings_)
# Para ver a dataframe gerado:
factorLoadings.head(4)
0
1
2
3
4
5
0
0.095220
0.040783
0.048734
-0.530987
-0.113057
0.161216
1
0.033131
0.235538
0.133714
0.661141
0.063734
-0.006244
2
-0.009621
0.343008
0.121353
0.605933
0.033990
0.160106
3
-0.081518
0.219717
0.235140
0.404594
-0.125338
0.086356
Vemos que os nomes dos itens, de A1 até O5, foram perdidos no cálculo. Vamos renomear tanto esses itens quanto os nomes das colunas (que são os fatores) para ter uma visualização mais clara do que obtivemos até aqui:
# Substitue as linhas pelo nomes dos itens
factorLoadings.index=itens
# Renomeia as colunas
factorLoadings.rename(columns = {0:'Fator 1',
1:'Fator 2',
2:'Fator 3',
3:'Fator 4',
4:'Fator 5',
5:'Fator 6'}, inplace = True)
# Exibe o resultado
factorLoadings
Fator 1
Fator 2
Fator 3
Fator 4
Fator 5
Fator 6
A1
0.095220
0.040783
0.048734
-0.530987
-0.113057
0.161216
A2
0.033131
0.235538
0.133714
0.661141
0.063734
-0.006244
A3
-0.009621
0.343008
0.121353
0.605933
0.033990
0.160106
A4
-0.081518
0.219717
0.235140
0.404594
-0.125338
0.086356
A5
-0.149616
0.414458
0.106382
0.469698
0.030977
0.236519
C1
-0.004358
0.077248
0.554582
0.007511
0.190124
0.095035
C2
0.068330
0.038370
0.674545
0.057055
0.087593
0.152775
C3
-0.039994
0.031867
0.551164
0.101282
-0.011338
0.008996
C4
0.216283
-0.066241
-0.638475
-0.102617
-0.143846
0.318359
C5
0.284187
-0.180812
-0.544838
-0.059955
0.025837
0.132423
E1
0.022280
-0.590451
0.053915
-0.130851
-0.071205
0.156583
E2
0.233624
-0.684578
-0.088497
-0.116716
-0.045561
0.115065
E3
-0.000895
0.556774
0.103390
0.179396
0.241180
0.267291
E4
-0.136788
0.658395
0.113798
0.241143
-0.107808
0.158513
E5
0.034490
0.507535
0.309813
0.078804
0.200821
0.008747
N1
0.805806
0.068011
-0.051264
-0.174849
-0.074977
-0.096266
N2
0.789832
0.022958
-0.037477
-0.141134
0.006726
-0.139823
N3
0.725081
-0.065687
-0.059039
-0.019184
-0.010664
0.062495
N4
0.578319
-0.345072
-0.162174
0.000403
0.062916
0.147551
N5
0.523097
-0.161675
-0.025305
0.090125
-0.161892
0.120049
O1
-0.020004
0.225339
0.133201
0.005178
0.479477
0.218690
O2
0.156230
-0.001982
-0.086047
0.043989
-0.496640
0.134693
O3
0.011851
0.325954
0.093880
0.076642
0.566128
0.210777
O4
0.207281
-0.177746
-0.005671
0.133656
0.349227
0.178068
O5
0.063234
-0.014221
-0.047059
-0.057561
-0.576743
0.135936
Vamos montar mais um heatmap com essa tabela.
# A bibioteca seaborn já foi importada como sns
plt.figure(figsize=(8,6))
sns.set(font_scale=.9)
sns.heatmap(factorLoadings, linewidths=1, linecolor='#ffffff', cmap="YlGnBu", xticklabels=1, yticklabels=1)
Lembrando que as cores mais escuras indicam correlação direta e as mais claras correlação inversa, percebemos que existem cargas mais fortes entre os itens N1, N2, N3, N4 e N5 com o fator 1, E1 até E5 no fator 2, etc. Nenhum dos itens, no entanto, tem carga relevante no sexto fator. Isso indica que podemos refazer o cálculo de cargas fatoriais com apenas 5 fatores.
# Refazendo o cáculo com 5 fatores apenas
# Apaga a variável fa
del fa
fa = FactorAnalyzer( 5, rotation="varimax")
fa.fit(df)
factorLoadings = pd.DataFrame.from_records(fa.loadings_)
# Renomeia itens
factorLoadings.index=itens
# Renomeia as colunas (fatores)
factorLoadings.rename(columns = {0:'Fator 1',
1:'Fator 2',
2:'Fator 3',
3:'Fator 4',
4:'Fator 5'}, inplace = True)
# Exibe o resultado
factorLoadings
Fator 1
Fator 2
Fator 3
Fator 4
Fator 5
A1
0.111126
0.040465
0.022798
-0.428166
-0.077931
A2
0.029588
0.213716
0.139037
0.626946
0.062139
A3
0.009357
0.317848
0.109331
0.650743
0.056196
A4
-0.066476
0.204566
0.230584
0.435624
-0.112700
A5
-0.122113
0.393034
0.087869
0.537087
0.066708
C1
0.010416
0.070184
0.545824
0.038878
0.209584
C2
0.089574
0.033270
0.648731
0.102782
0.115434
C3
-0.030855
0.023907
0.557036
0.111578
-0.005183
C4
0.240410
-0.064984
-0.633806
-0.037498
-0.107535
C5
0.290318
-0.176395
-0.562467
-0.047525
0.036822
E1
0.042819
-0.574835
0.033144
-0.104813
-0.058795
E2
0.244743
-0.678731
-0.102483
-0.112517
-0.042010
E3
0.024180
0.536816
0.083010
0.257906
0.280877
E4
-0.115614
0.646833
0.102023
0.306101
-0.073422
E5
0.036145
0.504069
0.312899
0.090354
0.213739
N1
0.786807
0.078923
-0.045997
-0.216363
-0.084704
N2
0.754109
0.027301
-0.030568
-0.193744
-0.010304
N3
0.731721
-0.061430
-0.067084
-0.027712
-0.004217
N4
0.590602
-0.345388
-0.178902
0.005886
0.075225
N5
0.537858
-0.161291
-0.037309
0.100931
-0.149769
O1
-0.002224
0.213005
0.115080
0.061550
0.504907
O2
0.175788
0.004560
-0.099729
0.081809
-0.468925
O3
0.026736
0.310956
0.076873
0.126889
0.596007
O4
0.220582
-0.191196
-0.021906
0.155475
0.369012
O5
0.085401
-0.005347
-0.062730
-0.010384
-0.533778
Construimos o heatmap com essa tabela de 5 fatores.
Os retângulos de borda
preta indicando grupos
de correlação foram
acrescentados manualmente.
Pelo heatmap percebemos que o grupo de itens N está associado ao fator 1 (Neuroticismo), E ao fator 2 (Extroversão), C ao fator 3 (Conscienciosidade), A ao fator 4 (Amabilidade) e O ao fator 5 (Abertura), previamente identificados. É claro que essa identificação do fator foi realizada pelos pesquisadores no caso dessa pesquisa em particular. Para uma pesquisa nova seria necessário um estudo para o entendimento da natureza de cada fator.
Observe ainda que correlação negativa é correlação. É o que ocorre, por exemplo entre os itens A1 (Sou indiferente aos sentimentos das outras pessoas) e A2 (Sempre pergunto sobre o bem-estar dos outros). A correlação entre eles pode ser obtida da matriz de correlação, corrMatriz['A1']['A2'] = -0.35091.
Observamos que existem as seguintes correspondências entre os grupos de questões e os fatores propostos:
Fator
Grupo
Descrição
1
N
Neuroticismo
2
E
Extroversão
3
C
Conscienciosidade
4
A
Amabilidade
5
O
Abertura
Vamos, portanto, renomear as colunas de nossa matriz de cargas fatoriais para refletir esse entendimento:
# Renomeia as colunas (fatores)
factorLoadings.rename(columns = {'Fator 1':'Neuroticismo',
'Fator 2':'Extroversão',
'Fator 3':'Conscienciosidade',
'Fator 4':'Amabilidade',
'Fator 5':'Abertura'}, inplace = True)
# Exibe o resultado (só duas linhas)
factorLoadings.head(2)
Neuroticismo
Extroversão
Conscienciosidade
Amabilidade
Abertura
A1
0.111126
0.040465
0.022798
-0.428166
-0.077931
A2
0.029588
0.213716
0.139037
0.626946
0.062139
Comunalidades
Comunalidades são a soma das cargas fatoriais ao quadrado de cada variável medida. Denotando por \(l_{ij}\) os elementos da matriz da cargas fatoriais a comunalidade da i-ésima variável é \(h_i^2\) dado por
$$
h_i^2 =\Sigma_{j=1}^n l_{ij}^2
$$
Por exemplo, a comunalidade relativa à questão A1 é a soma dos elementos (ao quadrado) da primeira linha da matriz de cargas fatoriais acima:
A soma de todos os valores de comunalidade é o valor de comunalidade total:
fa.get_communalities().sum()
10.590479059488883
Para exibir uma tabela com os nomes da variáveis e suas respectivas comunalidades vamos construir um dataframe contendo esses dados. Lembrando que já temos a variável itens = ['A1', 'A2', ..., 'O4','O5']:
Podemos pensar na comunalidade de uma variável como a proporção de variação nessa variável explicada pelos fatores propostos no modelo. Por exemplo, a variável N1 tem a maior comunalidade (0.681398) nesse modelo, indicando que aproximadamente 69% da variação nas respostas para “N1: Fico com raiva facilmente” é explicada pelo modelo de 5 fatores proposto enquanto esse valor é de apenas 20% para “A1: Sou indiferente aos sentimentos das outras pessoas”.
Comunalidades servem para avaliar o desempenho do modelo. Valores mais próximos de um indicam que o modelo explica a maior parte da variação para essas variáveis. Nesse caso o modelo está melhor ajustado para as variáveis do grupo N (neuroticismo) e menos eficiente para as variáveis do grupo O (abertura).
A Comunalidade total é de 10.5905 que, dividido entre as 25 variáveis indica uma média de 10.5905/25 = 0.4236 geral para o modelo, ou seja, uma eficiência média de 42% do modelo em explicar a variação de cada variável do teste.
Goldberg, L. R.: A broad-bandwidth, public domain, personality inventory measuring the lower-level facets of several five-factor models. In I. Mervielde, I. Deary, F. De Fruyt, & F. Ostendorf (Eds.), Personality Psychology in Europe, Vol. 7 (pp. 7-28). Tilburg, The Netherlands: Tilburg University Press, 1999.
Você sabe explicar como se concluiu pela esfericidade e como se calcula o tamanho do planeta Terra?
Por que existem pessoas que negam a esfericidade da Terra?
“Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.
— Carl Sagan, Contato (ficção científica, 1985)
“A observação das estrelas [. . .] mostra não só que a Terra é esférica mas também que não é muito grande, pois uma pequena mudança de posição de nossa parte para o sul ou para o norte altera visivelmente o círculo do horizonte de modo que as estrelas acima de nossas cabeças mudam de posição consideravelmente. E não vemos as mesmas estrelas quando nos movemos para o norte ou para o sul. . . Isso prova que a Terra é esférica e que sua periferia não é grande, caso contrário, uma mudança tão pequena de posição não poderia ter um efeito tão imediato.”
— Aristóteles, Sobre o céu (Livro 3)
Em algumas culturas arcaicas, quando não havia observações suficientes para se obter uma boa visão do formato da Terra, se cogitou que o planeta poderia ser plano, em particular na Grécia até o período helenístico, na Índia anterior ao período Gupta e na China até século 17. A hipótese não é absurda nessas circunstâncias. Resumidamente a Terra é uma esfera gigantesca, com raio em torno de 6.371 km, uma distância aproximada à entre Ushuaia, Argentina e Boa Vista, Brasil. Um habitante com capacidade de observações restritas, em termos de deslocamentos sobre a superfície, verá o seu mundo como plano pois a curvatura é muito pequena. Para perceber e medir essa curvatura é necessário um deslocamento sobre a superfície ou, o que era ainda mais difícil no passado, abandonar a superfície por meio de aviões, foguetes ou balões.
Apesar da bem consolidada lenda de que Colombo teria mostrado a esfericidade da Terra, a despeito da crença da época, pessoas cultas na Europa há muito tinham conhecimento desse fato. De fato nem a viagem de Colombo até o novo mundo, nem a circunavegação do globo em 1522 por Fernão de Magalhães podem ser vistas como provas empíricas do globo, uma vez que ambas poderiam ser realizadas no modelo plano.
Como sabemos que é Terra é (aproximadamente) esférica?
A história da descoberta do formato da Terra e da habilidade de desenhar mapas que a representem é muito interessante e elucidativa da própria história da ciência. Algo que parecia ser apenas um debate filosófico e teológico se mostrou de fundamental importância em termos práticos. Boa parte do entendimento da ciência e tecnologia moderna, e de seu uso prático, depende da compreensão do formato do planeta, de como as coisas podem ser localizadas sobre a superfície e se movimentar sobre ela. Sem esse embasamento não se pode entender a visão de mundo construída após Galileu.
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As equações da mecânica de Newton exigem um referencial inercial. Ele não pode estar se acelerando (nem girando). Na prática o referencial é considerado suficientemente bom como uma aproximação. Por ex., para problemas locais na Terra, para deslocamentos pequenos em relação ao tamanho do planeta, um referencial fixo à superfície pode ser uma boa aproximação, embora a Terra esteja se acelerando em direção ao Sol e girando em torno de si mesma.
A visão intuitiva e natural de que o planeta é plano decorre na observação ingênua que se tem de um ambiente aberto. Tudo o que vemos é uma grande extensão que aparenta ser plana na média, apesar de deformações locais como grandes vales e montanhas. Essa observação e sua interpretação sempre esteve associada à noção de que estamos em repouso enquanto o astros se movem ao nosso redor. O grande debate entre heliocentrismo e geocentrismo ocupou o pensamento de estudiosos com Tycho Brahe, Johanes Kepler, Nicolau Copérnico e Galileu Galilei. A solução do problema praticamente inaugurou a afirmação do método científico e da física na história humana.
A questão é mal compreendida até os dias de hoje. É usual se ouvir afirmações de que o heliocentrismo foi considerado a visão correta após ter derrotado a visão geocêntrica, mas isso não é exatamente correto. Como foi bem solucionado por Newton, a mecânica do universo tem comportamento relativo. Referenciais de observação podem ser postos em qualquer parte e são inteiramente arbitrários. Os geocentristas colocavam um referencial fixo sobre a superfície da Terra. Neste referencial o Sol, a Lua e as estrelas giram ao nosso redor, enquanto estamos solidamente em repouso sobre a superfície. Ocorre que explicar ou descrever o movimento dos objetos astronômicos nesse referencial é incrivelmente complexo. Essa descrição fica muito mais simples se o referencial for deslocado para o Sol, no que se refere ao estudo do Sistema Solar.
A gravura em madeira, feita por artista desconhecido, apareceu pela primeira vez no livro L’atmosphère: météorologie populaire de Camille Flammarion (1888). A imagem retrata um homem rastejando sob a borda do céu para olhar para o além misterioso. A legenda (não mostrada aqui) continha o texto “Um missionário medieval diz que encontrou o ponto onde o céu e a Terra se encontram …”A ideia de que poderia existir um contato sólido entre o céu e a terra aparece várias vezes na obra de Flammarion. Em Les mondes imaginaires et les mondes réels, 1864, ele menciona a lenda de três monges (Teófilo, Sérgio e Hyginus) que “desejavam descobrir o ponto onde o céu e a terra se tocam” ubi cœlum terræ se conjungit por onde pudessem ir para o céu sem deixar a terra.
Depois de muita análise das coordenadas observadas dos planetas (palavra derivada do grego significando objeto errante) se deu conta que a descrição heliocêntrica torna mais simples a matemática envolvida na descrição dos astros. Com essa escolha, e com o uso da mecânica de Newton, é possível criar bons modelos para descrever o movimento celeste. Aos poucos uma imagem diferente do mundo foi construída. O Sol é uma estrela afastada aproximadamente (e em média) 145 milhões km. Em torno dela giram os planetas com seus satélites, cometas e outros objetos menores, todos eles satisfazendo a lei da gravitação universal. Com o uso dessa lei e das equações da mecânica se pode calcular a massa do Sol, dos planetas e da própria Terra.
O posicionamento de referenciais no centro do Sol não é perfeito e não resolve todos os problemas. O sistema Terra-Sol gira em torno de seu centro de massa. O sistema solar inteiro gira em torno de um centro de massa móvel, um ponto que leva em consideração a massa e distância de todos os planetas e demais objetos. Além disso o próprio Sol se desloca com velocidade acima de 220 mil km/h em uma órbita quase circular em torno da galáxia, um gigantesco aglomerado de estrelas que denominamos Via Lactea. Para o estudo desse movimento e das outras estrelas pode ser muito mais simples a adoção de coordenadas fixas na galáxia. Para tornar mais complexo o problema a própria Via-Lactea se move em relação a outras galáxias, se afastando da maioria delas e aproximando daquelas em seu grupo local. Isso significa que não existe um referencial ótimo e absoluto. A escolha de referenciais depende apenas da conveniência relativa ao problema que se quer estudar.
O entendimento das posições, distâncias e movimentos dos corpos celestes forma a base mais sólida para a compreensão do formato esférico da Terra. A gravitação, a interação que age entre todas as partículas no cosmos, é a responsável pelas trajetórias dos objetos e pelo formato dos mesmos. Planetas e estrelas são formados por poeira interestelar atraídos pela gravidade recíproca. Eles colapsam sob formas esféricas porque a gravidade de uma partícula tem simetria esférica, ou seja, ela é igual em todas as direções, dependendo apenas da massa da partícula e da distância até ela.
Existem muitas maneiras de se observar a forma da Terra e seu tamanho. Medidas como as de Eratóstenes, se realizadas com precisão e em muitos pontos do globo poderiam dar essa resposta. A Geodesia é a ciência relativa à tomada de medidas na superfície terrestre. Ela se utiliza de instrumentos como o teodolito, bússolas e taqueômetros para determinar ângulos e distâncias. Hoje, com o uso de GPS (Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global, baseado em satélites em órbita essa medidas se tornaram muita mais precisas.
Com essas medidas se verifica que a Terra tem um formato aproximado de uma esfera. Devido ao giro em torno do próprio eixo (responsável pelos dias e noites) o diâmetro ao longo do equador (12.756,1 km) é um pouco maior que o diâmetro na direção dos polos (12.713,5 km). Além disso a atração dos outros corpos, principalmente Sol e Lua, deformam um pouco esse formato através do efeito de marés. Essa diferença é pequena, assim como os desvios locais, como montanhas e vales) são mínimos, relativos ao tamanho do planeta. Resumindo: a Terra é uma esfera quase perfeita!
O que é a Terra Plana?
Apesar da evidência acumulada existe um grupo de pessoas que rejeitam a afirmação de que a Terra seja esférica. Terraplanismo se tornou um exemplo de teoria conspiratória, motivo de piadas nos grupos da internet. No entanto cresce o número daqueles que aceitam e se dedicam ao estudo dessa possibilidade.
Há quem afirme que terraplanistas estão apenas brincando, pregando uma peça em larga escala, e esses devem realmente existir. Existem os curiosos, que não tem condições de decidir sobre o tema e, principalmente, existem aqueles que transformaram a questão em item de fé e se apegam a ela com fervor religioso. O modelo mais popular afirma que a Terra é um disco contendo o polo norte no centro enquanto o polo sul é a borda do disco, margeada por uma enorme e intransponível parede de gelo. Uma alternativa é o modelo bipolar onde ambos os polos estão no disco, igualmente circundadas por água e gelo. Os dois grupos negam que seja possível conhecer o que está além do disco, acima da redoma que divide a abóbada terrestre do mundo celeste, ou abaixo dele. Existe ainda uma minoria que acredita que a Terra é um plano infinito.
Para eles o Sol e a Lua são luminares, lanternas pequenas e próximas do disco. A alternância de dias e noites e as fases da Lua ocorrem porque essas lanternas se movem circularmente sobre a superfície. Para eles a gravidade é um problema pois produziria atrações diferentes daquelas observadas. No caso do disco finito a atração gravitacional estaria sempre voltada para o centro do disco e quem estivesse nas proximidades do polo sul seria atraído para baixo e para dentro do disco.
Por causa dessas dificuldades os terraplanistas negam a existência da gravidade. Alguns sustentam que a Terra está se acelerando para cima com a mesma aceleração da gravidade. Neste caso a aceleração seria sempre igual em todos os pontos da Terra, coisa que não é observada. Outros argumentam que a atração para baixo se deve à efeitos magnéticos devido a algum mecanismo obscuro e mal descrito. Ainda existem aqueles que atribuem todo o efeito gravitacional à forças de empuxo associadas à densidades das coisas, se esquecendo que o próprio empuxo resulta da força gravitacional.
Existem terraplanistas dedicados que reuniram farta argumentação contra todas as tentativas de fazê-los ver que o modelo da Terra plana é irracional e contraditório com as evidências observadas e teóricas. Muitos de seus argumentos são difíceis de responder e pessoas com menor treinamento científico podem não conhecer essas respostas. Nesse sentido o desafio dos terraplanistas pode ser visto como educativo, forçando as pessoas a avaliarem o quanto conhecem sobre o ambiente científico moderno.
Um exemplo é a acusação constante de que não existem fotos da Terra completa tiradas do espaço. Nesse quesito terraplanistas mergulham na mais profunda das teorias conspiratórias, onde a NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, comanda um complô mundial para enganar a opinião pública, levando-a a aceitar a ideia de que a Terra é esférica. Os motivos são absurdos e vão desde uma tentativa de controle da economia e poder mundial por um grupo de “operadores ocultos” até a visão de que esses operadores estão preparando o planeta para exterminar humanos e dar lugar a máquinas usando inteligência artificial. No esforço para provar essas afirmações extremas terraplanistas descobriram que muitas das belas fotos da Terra fotografada do espaço são resultado de montagens e ajustes de photoshop, o que é um fato. É verdade que a NASA tem um especialista em montagens porque muitas das fotos tiradas do espaço enquadram apenas partes do planeta. Essas fotos parciais são montadas para o efeito de divulgação científica para a comunidade leiga. Isso significa que não existem muitas fotos enquadrando em um único disparo a Terra como um globo. A maioria delas foram tiradas das missões Apolo, outras das sondas enviadas para os planetas externos.
Terraplanistas argumentam que é impossível que naves saiam da atmosfera da Terra, uma vez que atingiriam o domo, e que todas essas fotos são falsificações. Segundo eles as fotos e filmagens das sondas, feitas na Lua, Marte, Júpiter, Saturno, e até além desses, não passam de computação gráfica e animações. Evidentemente não acreditam na viagem de astronautas até a Lua. As filmagens da ISS (International Space Station) percorrendo um volta completa em torno do planeta a cada 92,68 minutos em tempo real e disponíveis da internet são descartadas como meros efeitos cinematográficos.
Esse estado de coisas provê uma fonte farta de exemplos de que fé infundada pode ser perigosa. Em fevereiro de 2020 Mike Hughes, um stunt man de 64 anos, se lançou em um foguete feito por ele mesmo em uma tentativa de descobrir se a Terra é plana. Hughes, que já havia se machucado em outras tentativas, foi ejetado do foguete sem o paraquedas e morreu na queda. Vários outras pessoas se lançaram em balões ou foguetes na esperança de verificar pessoalmente a planicidade ou de encontrar o domo. Em setembro de 2020 um casal de italianos se lançou ao mar na tentativa de alcançar as “bordas” da Terra. Eles se perderam no meio do mar e tiveram que ser salvos por uma embarcação do serviço italiano de resgate de imigrantes. A imprensa aproveitou a oportunidade para ridicularizar os aventureiros porque eles estavam se guiando por uma bússola, algo que não deveria funcionar na terra-plana.
História do terraplanismo moderno
No final do século 19 Samuel Rowbotham realizou no Reino Unido uma série de experimentos sobre a curvatura dos leitos de água e concluiu que eles eram planos e não acompanhavam a curvatura esperada da Terra. Ele iniciou uma sequência de debates com estudiosos e cientistas e, aos poucos, desenvolveu sua argumentação a ponto de criar dificuldades para seus oponentes. O experimento de nível de Bedford foi realizado ao longo de um trecho de águas tranquilas do rio Bedford, medindo 6 milhas (9,7 km). Sob o pseudônimo de Parallax, Rowbotham escreveu um panfleto, mais tarde expandido em livro, Earth not a Globe, publicado em 1865.
Rowbotham recebeu pouca atenção na época, até que um de seus apoiadores ofereceu um prêmio em dinheiro para quem demonstrasse que sua conclusão estava errada. O desafio foi aceito pelo naturalista Alfred Russel Wallace que mostrou que o erro decorria da não consideração de efeitos de refração atmosférica, ganhando o prêmio acertado.
Rowbotham atribuiu à sua metodologia o nome de “Zetetismo”, da palavra grega zeteo que significa “buscar”. No fundo ele pretendia aplicar uma versão extrema da filosofia do empirismo, onde se acredita exclusivamente na informação direta dos sentidos. Para ele, e seus seguidores mais recentes, o exercício complexo da ciência, onde se exige uma aplicação intensa de conceitos e modelos teóricos, é inválido.
Ele também publicou um folheto intitulado A Inconsistência da Astronomia Moderna e sua Oposição às Escrituras onde argumentava que “a Bíblia, juntamente com nossos sentidos, apoia a ideia de que a terra é plana e imóvel e esta verdade essencial não deveria ser deixada de lado por um sistema baseado exclusivamente em conjecturas humanas “. Usando seus resultados experimentais, cálculos matemáticos e passagens bíblicas, ele passou a argumentar que a terra está fixa no centro do universo, tem menos de seis mil anos e foi criada em seis dias, e está se aproximando rapidamente da destruição por fogo. Além dessa leitura literal da Bíblia Parallax afirmou que a Terra é um disco plano com o Polo Norte no centro e o Polo Sul limitado por uma imensa barreira de gelo. O que existe após a barreira do polo sul é desconhecido e impossível de ser determinado por humanos. Todas essas conjecturas mostram que, desde sua origem, há um componente de crença religiosa na afirmação de planicidade da Terra.
O sonho empiricista da Terra plana não morreu com Rowbotham. Outro inglês, Samuel Shenton, criou em 1954 a Sociedade Internacional da Terra Plana, assumindo a tarefa de mostrar ao mundo o grande erro científico. O mesmo empirismo ingênuo aparece nas palavras de Shenton: “Nenhum homem conhece a verdadeira forma da terra. Sabemos, no entanto, que essa parte onde vivemos é definitivamente plana. Ninguém jamais saberá como é toda a complexidade, eu imagino, porque vai além sua esfera de observação, investigação e compreensão.”
Após a morte de Shenton, em 1971, o americano Charles Johnson assumiu a responsabilidade pela Sociedade da Terra Plana. Quando Johnson morreu em 2001, a Sociedade tinha cerca de 3500 membros e não despertou a atenção da mídia. A sociedade passou a ser liderada por outro americano, Daniel Shenton (não parente de Samuel) que disse em entrevista para o The Guardian em 2010: “Não creio que haja provas sólidas. Não estou sendo teimoso intencionalmente sobre isso, mas sinto que nossos sentidos nos dizem essas coisas, e levaria um nível extraordinariamente de evidências para neutralizá-los“.
Shenton criou uma página wiki para a comunidade da terra plana, ainda sem produzir muito impacto na opinião pública. Em 2016, no entanto, alguns devotos terraplanistas começaram a postar vídeos no YouTube, época em que os mecanismos de sugestão de conteúdo, animados pelas inteligências artificiais, já estavam em pleno vapor levando os usuários a consumir conteúdo cada vez mais extremo e viciante. O mesmo mecanismo que criou uma polarização política nunca vista, a separação radical entre grupos de opiniões diferentes, também impulsionou ambientes de radicalização filosófica e de contestação intelectual. As teorias conspiratórias encontraram o ambiente propício para sua proliferação e o terraplanismo, para a surpresa de muitos, encontrou muitos adeptos.
Esses vídeos foram assistidos por milhões de pessoas. Uma pesquisa de 2018 nos Estados Unidos mostrou que 2% dos entrevistados afirmaram acreditar que a terra é plana enquanto outros 7% reconhecem que não sabem decidir qual é o formato correto. Um número alto de pessoas no mundo desenvolvido rejeita partes da ciência que está estabelecida desde a Idade Média. Além disso existe uma correlação entre acreditar na Terra plana, ser jovem, religioso e de baixo poder aquisitivo.
Atualmente a Sociedade da Terra Plana se ramificou em diversos movimentos, alguns deles compostos por um único influenciador digital e seus seguidores. Um exemplo marcante entre eles, por exótico e falante, é o de Mark Sargent que, além do elenco padrão de afirmações conspiratórias acrescenta afirmações tais como:
Após 1957 os EUA e a então União Soviética mandaram sondas para o espaço e ficaram apavorados com o que descobriram. Por isso iniciaram um programa de detonar bombas nucleares na atmosfera, que durou 4 anos.
Em 1959 dez nações estabeleceram que todo o acesso à Antártica deveria ser vetado. Mais de 50 nações assinaram, mais tarde, um tratado concordando com essa imposição.
O programa Apolo que levou humanos à Lua foi forjado para fixar no imaginário popular o conceito de uma terra esférica, inclusive apresentando uma foto tirada à distância. Os militares americanos impedem que companhias privadas iniciem a exploração espacial, caso contrário eles encontrariam o domo e descobririam a verdade.
“Como estudante eu pensava sobre esse problema quando conheci o estranho resultado do experimento de Michelson. Logo cheguei à conclusão de que nossa ideia sobre o movimento da Terra em relação ao éter está incorreta, se admitirmos o resultado nulo de Michelson como um fato. Este foi o primeiro caminho que me levou à teoria da relatividade especial. Desde então, passei a acreditar que o movimento da Terra não pode ser detetado por nenhum experimento ótico, embora a Terra esteja girando em torno do Sol.”
— Albert Einstein
Alguns terraplanistas, para afirmar que a Terra não se move pelo espaço, usam como argumento o experimento de Michelson e Morley, realizado em 1887. Este experimento, com resultado inesperado e surpreendente, tentou detectar o movimento do planeta através do suposto éter luminoso que se acreditava na época ser o meio por onde a luz se propaga. Físicos consideraram o resultado como uma prova de que não existe tal éter. Considerando que o movimento da Terra estava bem estabelecido Albert Einstein formulou a Teoria da Relatividade Restrita que usa a invariância da velocidade da luz para construir uma nova mecânica, diferente da proposta por Newton. Suas conclusões são altamente não intuitivas e violam o entendimento ingênuo da natureza (o chamado senso comum). A teoria da relatividade causou um impacto muito grande na opinião pública e muitas pessoas, inclusive cientistas, inicialmente se recusaram a aceitar suas afirmações tais como de comprimentos e intervalos de tempo que variam de acordo com a velocidade em relação ao observador, e a equivalência entre massa e energia. Até hoje muitas pessoas tentam provar que a teoria está errada. Apesar disso ela faz um grande número de previsões importantes, todas elas observadas na natureza. A teoria da relatividade, tanto restrita quanto geral, são amplamente testadas e não se conhece experimento em discordância com ela.
Religião e terraplanismo
As origens do movimento, como vimos, foi certamente inspirada pela interpretação literal dos textos religiosos (particularmente os cristãos, judaicos e islâmicos). Grande parte dos autores sobre o assunto confessam com orgulho sua leitura literal da Bíblia. Muitos terraplanistas rejeitam a Teoria da Evolução e defendem a “Terra jovem” e criacionismo, a ideia de que o planeta tem pouco mais que 5 mil anos e que foi criado por Deus como está, inclusive com seus habitantes vivos atuais.
A terra plana, por mais que alguns tentem esconder esse fato para dar uma roupagem mais moderna à sua hipótese, é o conceito de que Deus teria feito o mundo apenas para o testar os seres humanos. Nessa visão não existe nada mais exceto aquilo necessário para esse fim.
Concepção judaica arcaica do Universo
O Mundo é dividido em Paraíso, Terra, Mar e Submundo (Sheol). O céu (firmamento está apoiado sobre fundações (talvez montanhas) e possui portas e janelas por onde entra a chuva. Deus mora no Paraíso, oculto sob as nuvens.
Vivemos em um disco flutuando sobre as águas, apoiado em pilares. A terra é o único domínio que pode ser conhecido. O restante é incognoscível.
O Submundo (Sheol) é uma prisão de água ou terra da qual é impossível escapar. Embora sendo um local físico abaixo da terra ela só pode ser alcançada através da morte.
Citações bíblicas
“Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles;” Mateus, 4:8.
Comentário: “Se todos os reinos podem ser vistos de um ponto elevado, a Terra deve ser plana.”
“E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no livro de Jasar? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro.” Josué 10:13
— “Portanto Sol e Lua são luminares pequenos e não astros enormes”.
“Vestido de esplendorosa luz, como num manto, Ele estende os céus como uma tenda”. Salmos 104:2
Um manto e uma tenda são ambos finitos. O universo é finito.
“Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Quem marcou os limites das suas dimensões? Talvez você saiba! E quem estendeu sobre ela a linha de medir? E os seus fundamentos, sobre o que foram postos? E quem colocou sua pedra de esquina, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam? Quem represou o mar pondo-lhe portas, quando ele irrompeu do ventre materno, quando o vesti de nuvens e em densas trevas o envolvi, quando fixei os seus limites e lhe coloquei portas e barreiras, quando eu lhe disse: Até aqui você pode vir, além deste ponto não; aqui faço parar suas ondas orgulhosas?” Jó 38: 4-11 (trechos)
“Farei com que os quatro ventos, que vêm dos quatro cantos do céu, soprem contra Elão. E eu os dispersarei aos quatro ventos, e não haverá nenhuma nação para onde não sejam levados os exilados de Elão.” Jeremias 49:36
Se a Terra fosse um globo onde estariam os quatro cantos do céu?
Terraplanismo e rejeição da autoridade
A física Sabine Hossenfelder faz uma analogia interessante em seu vídeo “Ciência” da Terra Plana. Suponha que você vá ao supermercado e compre um produto alimentício preparado qualquer. Você consome o produto sem se questionar se aquilo é comestível, se é algo preparado com o devido asseio ou até se é um veneno. Por que você acredita que o produto é confiável sendo que, quase sempre, nem sabe quem o preparou? Você faz isso porque conhece, pelo menos em princípio, o sistema de produção em seu país, confia que existem regulamentações que o protegem e que elas estão sendo vigiadas. Você sabe que a existência de um contaminante no produto traria problemas para o fabricante. Existe uma confiança implícita no ambiente de produção e vigilância em sua comunidade.
Da mesma forma não somos, pelo menos a maioria de nós, capazes de avaliar os níveis de segurança de um medicamento ou uma vacina. Confiamos que os testes foram feitos e a vacina é eficiente e segura. Igualmente poucas pessoas podem medir o raio da Terra por si mesmas. Mas elas confiam que toda uma comunidade científica sabe como fazê-lo, que fizeram medidas e cálculos minuciosos e conferiram seus resultados. Seria muito difícil conseguir um complô global envolvendo engenheiros, físicos, astrônomos, pilotos de avião, etc.
Entretanto, em todos esses casos, não seria prudente depositar confiança cega e absoluta sobre todas as afirmações de fabricantes de alimentos, de vacinas e cientistas. Não é impossível que o alimento preparado contenha produtos que você não quer comer, que um medicamento tenha efeitos colaterais ou, até mesmo, que a comunidade científica esteja errada, como já aconteceu tantas vezes. Por isso é necessário que as pessoas tenham um entendimento mínimo do método científico, da estrutura das organizações de pesquisa e ensino e de como a comunidade científica interage para apresentar, confirmar ou descartar cada descoberta.
Críticas ao modelo do disco plano
A argumentação mais frequente dos terraplanistas é a de que se pode ver objetos distantes com o uso de um binóculo, mais longe do que seria possível se considerada a esfericidade. Assim como ocorreu no experimento do rio Bedford por Rowbotham, que não conseguiu perceber a curvatura de um leito de água com 9,7 km de extensão, dois erros são cometidos comuns. Um deles subestima o raio da Terra que, por ser muito grande relativo às distâncias medidas, resulta em efeito muito pequeno na curvatura. Outro foi o efeito apontado por Alfred Russel Wallace, que consiste em ignorar a refração atmosférica. Com a variação da temperatura do ar em diferentes altitudes o índice de refração da luz se altera, fazendo com que o feixe luminoso mude de direção, se curvando para baixo. Desta forma temos a impressão de que o horizonte está mais distante. Mesmo assim os navios observados se afastando mar adentro ficam invisíveis primeiro na parte inferior, depois nas partes mais altas.
A sombra da Terra na Lua durante um eclipse é sempre circular. Se o planeta fosse um disco ele produziria sombras elípticas. Além disso ninguém foi capaz de apresentar uma boa explicação para os eclipses no modelo plano. Uma pessoa no hemisfério norte vê a Lua invertida em relação ao que vê alguém no hemisfério sul. O mesmo ocorre com as constelações. A estrela polar, acima do polo norte, não pode ser vista do hemisfério sul. Uma filmagem de longa duração das estrelas mostra movimentos circulares incompatíveis com o modelo plano.
A sombras provocadas por um Sol pequeno e próximo da Terra também variam de acordo com as latitudes mas de modo incompatível com as sombras observadas. O tamanho aparente do Sol como luminar variaria durante o dia mais do que o observado.
O suposto complô entre cientistas do mundo inteiro para esconder uma realidade que pode ser verificada com o uso de equipamentos simples é impossível. A NASA não é o único organismo de pesquisa espacial e cada afirmação, cada nova descoberta de um grupo de pesquisa, é verificada exaustivamente por cientistas de vários países. A afirmação de que a NASA proíbe a entrada de civis no círculo polar antártico, mantendo guarda armada para afugentar intrusos, não tem nenhum sentido quando se sabe que quase todos os países investem em estudo dessa região e lá mantêm postos de pesquisa.
A maioria dos vídeos mais recentes postados na internet e visualizados por muita gente são simplórios, ignorantes, quando não demonstram a total deficiência cognitiva de seus autores. Existe, por exemplo, um vídeo brasileiro onde o “instrutor” coloca uma bola debaixo de uma torneira para mostrar que a água escorre e “não gruda na esfera”.
A acusação de que a ciência possui uma agenda secreta de destruição da religião merece ser considerada. Cientistas como Isaac Newton e muitos outros nos primórdios da ciência declaravam fazer os seus estudos “para revelar e exaltar a glória de Deus”. No entanto muitos passos foram dados para explicar a natureza sem que a intervenção divina se fizesse necessária. Uma boa descrição da origem das espécies dada por Darwin e a explicação bem sucedida dos movimentos celestes representaram um golpe poderoso sobre a religião. Há o relato, provavelmente apócrifo mas ilustrativo, de como Napoleão manuseou o livro onde Pierre de Laplace propunha uma teoria física para a formação do sistema solar. Napoleão teria dito que não encontrou referências a Deus na obra, ao que Laplace retrucou: “Não precisei dessa hipótese”.
Por que existem terraplanistas?
Devido ao viés conspiratório extremado dos defensores da terra plana pode parecer fácil descartar suas afirmações e terminar as discussões com o deboche. Mas, assim como o fundador da moderna sociedade terraplanista, Rowbotham, se preparou exaustivamente para debater com os pensadores de sua época, também hoje é possível encontrar pessoas que pensaram em respostas para praticamente toda a argumentação contra as suas “teorias”. Alguns de seus argumentos não são fáceis de rebater para alguém que não tenha formação na área ou que não tenha pelo menos pensado sobre o assunto. Eles explicam, por exemplo, a diferença na sombra do Sol em cidades com latitudes diferentes, usada por Eratóstenes, como um efeito devido à proximidade do Sol, e não à curvatura da superfície. As sombras provocadas pelo Sol no modelo terra-plana não correspondem às observadas mas quantas pessoas estão aptas e dispostas a fazer o cálculo trigonométrico necessário? O surgimento da dúvida sobre o formato do planeta tem um aspecto educativo: você sabe explicar como se concluiu pela esfericidade e como se calcula o tamanho do planeta? Você sabe que a Terra é esférica ou apenas acredita no que te foi dito?
Por outro lado a aceitação crescente dessa pseudo-ciência deve causar preocupação. Ela não é apenas manifestação de ignorância científica mas um movimento de revolta e rejeição do conhecimento institucionalizado. Essa tendência vem se aprofundando nos últimos anos. O conhecimento técnico científico está se tornando muito complexo e ramificado e nosso sistema educacional está deixando para trás a absoluta maioria das pessoas. Embora (quase) todos se utilizem de tecnologia avançada poucos a compreendem. As pessoas se vêm imersas em um mundo mágico onde ela tem pouquíssima chance de contribuir. Elas sequer podem se recusar a participar do sistema que as engole. O sistema complexo, incompreendido e compulsório se torna o fermento ideal para a especulação conspiratória de onde surge o conceito de que estamos vivendo na matrix. Se estamos sendo enganados por que não acreditar que somos controlados por uma única família, por um grupo secreto de indivíduos ou até por alienígenas?
Terraplanismo, entre outros apelos pseudocientíficos e conspiracionistas, é uma resposta a um sistema educacional deficiente e basicamente elitista. Considere, por exemplo, a educação nos EUA, notoriamente fraca em seus níveis mais básicos, peneirando os estudantes por mérito, que frequentemente significa poder aquisitivo, até conseguir juntar um grupo de excelência que ocupa os centros avançados de formação. No Brasil é problema é ainda mais sério, quando se verifica uma qualificação pobre em testes de proficiência internacionais, mesmo quando comparado a países mais carentes. Junte-se a isso o proliferação de cursos superiores que na verdade formam grande parte da população com nível similar ao de técnico.
Pessoas excluídas do processo formador são igualmente excluídas do processo decisório e mais expostas à manipulação. Resta a elas rejeitar a construção acadêmica, o que hoje se reflete em ampla desconfiança popular em relação às universidades. Isso leva, por exemplo, à rejeição das vacinas, da oposição à instrução médica no combate à pandemia de covid-19, da suspeita infundada sobre efeitos nocivos de novas tecnologias. E promove ambiente fértil para o reavivamento do pensamento mágico na forma da astrologia, de medicinas não comprovadas, de religiões espúrias e teorias conspiratórias.
A divulgação fácil de conteúdo pela internet, que supostamente popularizaria o conhecimento, tornou acessíveis pensamentos marginais. Juntamente com as intrigas provocadas artificialmente pelos algoritmos de fidelização das redes sociais, notórios pela exploração do radicalismo, essas ideias encontraram campo fértil em um grupo de revoltados que pretendem ser ouvidos.
Esse é o ambiente ideal para profissionais desqualificados e políticos populistas e sem conteúdo. A crítica da imprensa, advertências de médicos ou experts de qualquer área é inócua para aqueles que já destruíram, em sua visão de mundo, a credibilidade do establishment. O perigo para a sociedade é enorme. O apelo de solução fácil para problemas difíceis tende a atrair pessoas ingênuas, incultas ou com suas capacidades intelectuais e reflexivas prejudicadas. Também são atraídos pessoas hábeis na manipulação, indivíduos que podem ser brilhantes mas que teriam dificuldades para se projetar na sociedade mais ampla. As lideranças desses grupos, algumas vezes eles mesmos afligidos por deficiência cognitiva grave ou movidos por má fé, manipulam a sensação de acolhimento no grupo e de superioridade por serem eles os detentores de verdades desconhecidas pelo “mortal comum”. (Não raro esses grupos possuem um termo pejorativo para se referir aos não membros. Terraplanistas fazem piadas sobre os “terra-bolistas”, aqueles que acreditam na terra molhada girante.)
“Na Idade Média as pessoas acreditavam que a Terra era plana e, para concluir isso tinham pelo menos a evidência de seus sentidos. Depois passamos a acreditar que fosse redonda, apesar de que apenas um por cento das pessoas pudessem dar razões físicas para essa crença. No entanto a ciência moderna nos convenceu de que nada do que é óbvio é verdadeiro e tudo o que é mágico, improvável, extraordinário, gigantesco, microscópico, sem coração ou ultrajante é científico.”
— Bernard Shaw
Bibliografia
Garwood, Christine: Flat Earth: The History of an Infamous Idea, Macmillan, New York, 2008.
Stanton, Guy: Flat Earth: A handbook meant to help those in pursuit of the Truth, disponibilizado pelo autor em Free ebooks-net, acessado em setembro de 2020.
Russell, Jeffrey: Inventing the Flat Earth: Columbus an d Modern Historians, Praeger Publishers, New York, 1991.
Sargent, Mark; Flat Earth Clues, The Sky’s The Limit, Booglez Limit, London, 2016.
“O universo é uma floresta negra. Cada civilização é um caçador armado espreitando por entre as árvores como um fantasma, empurrando suavemente os galhos à sua frente e tentando caminhar sem fazer ruído. Até sua respiração é cuidadosa. O caçador deve estar atento porque espalhados pela floresta existem caçadores furtivos como ele. Se encontrar outra vida – outro caçador, anjo ou demônio, um bebê delicado ou um velho cambaleante, uma fada ou semideus – resta a ele uma única coisa a fazer: abrir fogo e eliminá-los. ”
— Cixin Lin, The Dark Forest.
“Pouco sabemos sobre alienígenas, mas sabemos sobre os humanos. Se você olhar para a história, o contato entre humanos e organismos menos inteligentes tem sido desastroso para deles, enquanto encontros entre civilizações com tecnologias avançadas e primitivas foram ruins para os menos avançados. Uma civilização que receber uma de nossas mensagens [enviadas ao espaço] pode estar bilhões de anos à nossa frente. Nesse caso, elas serão poderosas e talvez nos vejam como meras bactérias.”
— Stephen Hawkings
Devemos ter medo de aliens?
A busca pela inteligência extraterrestre
Muitas pessoas olham para o espaço maravilhadas e perguntam se, como espécie, seremos capazes um dia de abandonar a terra natal e colonizar outros planetas. Há aqueles que consideram essa a única saída para a nossa sobrevivência, uma vez que estamos inviabilizando nossa existência na Terra em ritmo acelerado. Claro que muitos se lembram, então, da possibilidade de que outras espécies, originárias de outros planetas e sistemas solares possam estar no mesmo processo de evolução e almejando conquistar seu lugar no cosmos. A hipótese não é desprezível. Hoje sabemos que existem muitas estrelas rodeadas por planetas. De fato, a existência de planetas constitui uma regra, e não uma exceção, com antes se pensava. Não é improvável que existam muitos planetas com características físicas e químicas adequadas para o surgimento de vida. Se existe vida podemos ter também vida consciente, auto-reflexiva e inteligente. Uma vida que é capaz de se desenvolver no conhecimento do mecanismo das coisas e, portanto, de desenvolver tecnologia.
Quando o projeto SETI (Search for Extraterrestrial Inteligence ou Busca por Inteligência Extraterrestre) foi lançado, em fevereiro de 1984, muitos cientistas o consideravam um projeto excessivamente ousado e com pouco embasamento científico. As teses investigadas pelos pesquisadores, entre eles Carl Sagan, foram chamadas de pseudo-científicas. Afinal não se conhecia um único exoplaneta, um planeta em órbita de outra estrela que não o nosso Sol. O conceito de procurar por emissões de ondas de rádio no meio interestelar surgiu logo após o desenvolvimento da tecnologia do rádio, na Terra. Nicholas Tesla, um dos pioneiros do uso tecnológico do eletromagnestismo, acreditava ter captado emissões de habitantes de Marte, algo que se mostrou ser um erro. Argumentou-se que uma civilização tecnologicamente avançada certamente usaria ondas eletromagnéticas na transmissão de suas informações. Para realizar sua missão o projeto SETI conta com grandes radiotelescópios, inclusive o de Arecibo, satélites em órbita terrestre, e o uso de sistemas de inteligência artificial para analisar o enorme volume de dados que coletam.
A situação mudou muito desde a década de 80. No presente, ano de 2020, mais de 4.000 exoplanetas já foram descobertos, muitos deles na chamada goldilock zone ou região habitável, uma faixa do sistema planetário onde não é quente demais pela proximidade com a estrela, nem frio demais por afastamento dela. O entusiasmo pela busca de vida extraterrestre cresceu proporcionalmente assim como número de observatórios e pesquisadores na área. No entanto, após muitos anos de busca nenhum sinal claramente advindo de fonte inteligente foi encontrado.
O processo de busca é complexo. Quando um sinal diferente é captado em uma das antenas observadoras do cosmos uma série de análises deve ser processada sobre ele. É necessário excluir todas as possibilidades de que a emissão tenha provindo de fontes naturais tais como um jato de matéria muito quente em alta velocidade, a obstrução parcial de uma fonte, etc. Não é raro que se encontre sinais exóticos que permanecem como candidatos a serem originados de modo tecnológico por um tempo até que sua origem natural seja explicada.
Encontramos os Alienígenas?
Em setembro de 2015, astrônomos relataram a descoberta de uma estrela diferente. Eles estavam analisando os dados coletados pelo telescópio espacial Kepler em um projeto que busca detectar exoplanetas medindo variações no brilho de estrelas. A estrela de Tabby, localizada na constelação de Cygnus está a 1.470 anos-luz da Terra e exibe flutuações de brilho incomuns, muito acentuadas e chegando à redução 22% do brilho em certos momentos e de forma não periódica. Diversas hipóteses foram propostas para explicar as variações irregulares no brilho da estrela. Foi proposto que um anel irregular de poeira orbita a estrela, talvez deixada pela explosão de um exoplaneta, ou um agrupamento anormal de fragmentos de cometas frios em órbita muito excêntrica. Uma hipótese mais arrojada foi apresentada com a sugestão de que a variação de luz de Tabby fosse produzida pela presença de uma esfera de Dyson, uma mega estrutura tecnológica em órbita da estrela formada por coletores de energia. Essa seria uma forma espetacular de se descobrir não apenas a existência de seres alienígenas mas também que eles fariam uso de alta tecnologia.
Vários estudos, inclusive simulações em computadores, foram feitas para explicar esse comportamento. A hipótese da esfera de Dyson parece ter sido descartada pois as bordas de sombra são irregulares e difusas, incompatíveis com um objeto tecnológico.
Recentemente, 2019 e 2020, um grupo canadense encontrou uma fonte de FRB (fast radio bursts ou sinais de radio de curta duração e alta potência) com um padrão diferente do usual. Essas ondas de rádio são emitidas por 4 dias sem parar, seguidos de um longo silêncio de 12 dias. Os astrônomos conseguiram encontrar a fonte em uma galáxia espiral em torno de 500 milhões de anos luz da Terra. O sinal continua exibindo sua variação e ainda não tem uma explicação apropriada.
Muitos estudiosos do assunto consideram como a detecção mais difícil de ser explicada o chamado WOW signal. Wow, ou uau, foi a expressão de surpresa do astrônomo que primeiro o encontrou, analisando dados gravados, como parte das pesquisas do SETI. Esse sinal teve origem na direção da constelação de Sagitário e nunca mais foi observado. Várias hipóteses foram sugeridas, entre elas a de que o sinal teve origem na Terra tendo sido refletido por algum algum objeto em órbita do planeta, tal como um satélite artificial.
A existência de eventos observados e não explicados não representa prova de que existem seres inteligentes fora de nosso planeta. Em todas as áreas da ciência muitos problemas permanecem sem explicação e sua própria existência reafirma a necessidade permanente de pesquisa. Uma afirmação extraordinária, como a da existência de vida (e mais ainda de vida inteligente) exige provas concretas e inequívocas, e todos os esforços devem ser feitos para se encontrar uma explicação mais simples para esses fenômenos. A pesquisa continuada mostra que, algumas vezes, na tentativa de se eliminar uma explicação, fenômenos muito complexas e desconhecidos podem ser compreendidos e agregados ao conjunto do conhecimento científico.
Quantas civilizações inteligentes existem no cosmos?
Em 1961 Frank Drake, um dos entusiastas do projeto SETI, sugeriu uma equação que resume os principais conceitos envolvidos na possibilidade de se encontrar uma civilização extraterrestre usando comunicação por ondas eletromagnéticas. Ela não é a representação de nenhum modelo sério de estudo mas uma tentativa de estimação probabilística da existência dessas civilizações. Drake não procurava alcançar um número preciso mas sim uma forma de estimular o diálogo científico sobre a busca por inteligência extraterrestre.
A equação sempre foi alvo de muitas críticas, principalmente porque os valores estimados para cada um dos fatores envolvidos são altamente conjecturais. As grandes incertezas sobre cada um deles certamente se amplia quando todos os fatores são considerados em conjunto.
A equação de Drake busca encontrar quantas civilizações existem em nossa galáxia. Ela é um argumento probabilístico, uma estimativa usada para calcular quantos grupos extraterrestres podem estar ativos na Via Láctea.
$$
N = R _* \times f_p \times n_e \times f_ l \times f_i \times f_c \times L
$$
Onde:
\(N =\) número de civilizações na Via Láctea que podem entrar em contato conosco (ou seja, que estão em nosso atual cone de luz passado),
\(R_∗ = \) taxa média de formação de estrelas em nossa galáxia,
\(f_p = \) fração dessas estrelas que têm planetas,
\(n_e = \) número médio de planetas com potencial para suportar vida,
\(f_l = \) fração de planetas onde efetivamente a vida se desenvolve,
\(f_i = \) fração de planetas onde a vida evolui para a inteligência (civilizações)
\(f_c = \) fração das civilizações que desenvolvem uma tecnologia que emite sinais detectáveis,
\(L = \) duração das civilizações que emitem sinais detectáveis no espaço.
Observe que os últimos 4 parâmetros são completamente desconhecidos e de difícil medida. Em geral se faz uma estimativa se seus valores.
Já em 1950 o físico italiano Enrico Fermi levantou uma questão que hoje chamamos de Paradoxo de Fermi: Considerando o tamanho e a idade do universo é razoável acreditar que existam muitas civilizações tecnologicamente avançadas. No entanto nenhuma evidência de que elas existam foi encontrada, apesar dos esforços realizados. Essa crença parece logicamente inconsistente com nossa falta de evidências observacionais para apoiá-la. Uma das afirmações seguintes deve ser verdadeira:
A suposição inicial está incorreta e a presença de vida, particularmente inteligente, é muito mais rara do que acreditamos,
Nossas observações atuais estão incompletas e são insuficientes para detectar os sinais usados por civilizações extra-terrestres, ou porque nossa metodologia de pesquisa é falha ou não estamos procurando os indicadores corretos, ou
Civilização tecnologicamente avançadas desenvolvem meios de auto-destruição e o fazem decorridos algum tempo de desenvolvimento.
Apesar da natureza especulativa da questão e suas tentativas de resposta o último item deveria servir como um alerta importante para a nossa própria civilização.
Há quem argumente que estamos reagindo de modo impaciente à essa investigação. Humanos estão escutando os sinais da galáxias por pouco tempo mais de 100 anos. O universo tem, de acordo com as teorias aceitas, em torno de 14 bilhões de anos e se estende por 92 bilhões de anos luz (pelo menos o universo observável). O setor do cosmos que podemos “escutar” não passa de 1% da galáxia. Então talvez não tenhamos ainda tempo nem alcance técnico para resolver essa questão.
Em um estudo recente publicado no periódico The Astrophysical Journal, cientistas da Universidade de Nottingham, Inglaterra, estimaram que existe pelo menos 36 civilizações inteligentes em nossa galáxia com capacidade de se comunicar. Eles se utilizaram de um conceito denominado Limite Astrobiológico Copernicano, que supõe que as condições encontradas na Terra não são particulares ou especiais, e que podem ser encontradas na média dos demais planetas. Entre os limites propostos pelo princípio estão o de que a vida inteligente se forma em menos de 5 milhões de anos à partir do surgimento da vida, em planetas na zona habitável e que tenham a distribuição apropriada de elementos químicos.
Em suas análises os pesquisadores consideram que qualquer vida encontrada não seria muito diferente da vida terrestre e afirmam que esse estudo pode ser útil para nos indicar por quanto tempo uma civilização tecnológica consegue sobreviver. Nas palavras de Christopher Conselice, o líder do grupo, “Mesmo que não encontrarmos nada na busca por inteligências e vidas extraterrestres, estaremos compreendendo qual será nosso futuro e nosso destino.”
A Floresta Negra
Os três livros da trilogia de Cixin Liu: O Problema de Três Corpos (2016), A Floresta Sombria (2017) e O Fim da Morte (2019), com tradução de Leonardo Alves, Editora Suma de Letras, estão disponíveis na Amazon.
Entre os anos de 2006 e 2010 o escritor de ficção científica chinês Cixin Liu publicou sua trilogia: The Three-Body Problem (三体), The Dark Forest (黑暗森林) e Death’s End (死神永生). Em seus contos Liu relata o encontro com os extraterrestres trissolarianos originários de um sistema panetário que gira em torno de estrelas triplas, altamente errático e pouco favorável à vida e civilização. Após descobrir que seu sistema está prestes a ser destruído pelas estrelas esse povo inicia um ataque à Terra, planejado ao longo de muitos anos. Com isso os habitantes da Terra descobrem que o universo é repleto de civilizações altamente agressivas e que competem por recursos. Para a manutenção de sua própria vida um povo deve se esconder, evitando transmissões que alertem os agressores de sua posição, ou partir para a agressão, eliminando seus competidores. A esse sistema composto por medo e agressividade ele denominou A Floresta Negra.
Liu sugere a necessidade de uma Sociologia Cósmica: o estudo teórico das possíveis interações entre civilizações na galáxia. A astrônoma Ye Wenje sugere para Luo Ji (dois personagens) os axiomas da disciplina: “Primeiro: A sobrevivência é a necessidade primária de uma civilização. Segundo: Civilizações se expandem continuamente mas a matéria total do universo permanece constante. Mais tarde Luo Ji usa esses conceitos para ameaçar os invasores trissolarianos com a revelação cósmica da posição de seu sistema planetário, dissuadindo a invasão.
O debate entre terrestres e trissolarianos tem uma faceta que se aproxima à do Dilema dos Prisioneiros: dois assaltantes são pegos pela polícia. Sem provas para incriminá-los os policiais precisam de confissões. Para isso interroga cada bandido em separado tendo oferecido a eles um acordo. Se nenhum dos dois confessar o crime ambos recebem a sentença de 1 ano de cadeia. Se um deles confessar o delator escapa da prisão enquanto o colega fica preso por 3 anos. Se ambos confessarem eles ficam presos por 2 anos. Sem uma comunicação efetiva cada parte pode ser tentada a tirar um proveito que, em última análise, prejudicaria a ambos. A melhor estratégia, para o par, consiste em confiarem um no outro e ficarem calados.
O mesmo cenário pode ser visto em relações internas entre países terrestres e seus conflitos, quando se considera que um país com armamentos mais sofisticados pode destruir completamente um adversário, embora exista o risco de que ele próprio se prejudicaria com a destruição do outro.
Muitos divulgadores científicos e até pesquisadores estão se utilizando da expressão “Teoria da Floresta Negra”. Há que se lembrar, no entanto, que essa não é, em nenhum sentido preciso, uma teoria de fato mas apenas uma hipótese, uma conjectura ou exercício de imaginação científica. [Leia nesse site Teoria, Hipótese e Modelo em Física e Devemos Acreditar na Ciência?]
Stephen Hawkings
Em 2006, Hawking apresentou na internet uma pergunta, pedindo a participação de outros respondentes: “Nesse mundo de caos político, social e ambiental, a raça humana aguentará 100 anos mais?”. Muitas vezes ele expressou preocupação de que a vida na Terra estava em risco de guerra, de vírus geneticamente modificado, do aquecimento global ou outros perigos. Ele considerava a pesquisa espacial como essencial para a sobrevivência humana, visto que não é pouco provável que tenhamos que nos refugiar no espaço. Como parte de suas preocupações ele afirmava sua crença de que provavelmente existem alienígenas e que o contato com eles deveria ser evitado. “Se os alienígenas nos visitarem, o resultado será muito semelhante ao de quando Colombo desembarcou na América, o que não foi muito bom para os nativos americanos”, ele disse.
Hawkings receava que alienígenas, que provavelmente não teriam nenhum parentesco genético com os humanos, nos tratariam da mesma forma que tratamos uma colônia de formigas. Não seria inesperado que grupos avançados na galáxia, após a destruição de seus próprios habitats, se tornem nômandes do espaço, assaltando e pilhando os recursos de outros planetas. “Nesse caso faria sentido para eles explorar e pilhar cada novo planeta em busca de material para a construção de outras espaçonaves para que pudessem prosseguir. Quem sabe quais seriam os limites?”
Junta-se a isso a observação de que nossa espécie sempre tratou com descaso grupos de nossa própria espécie com menor desenvolvimento tecnológico. Juntamente com outros cientistas ele manifestava a preocupação de que não deveríamos anunciar para o cosmos a nossa presença.
O grande cientista, falecido em 2018, receava também os grandes avanços feitos na área da inteligência artificial, algo que ele julgava ser fatal para a espécie se não “aprendéssemos a evitar os riscos”. E apontava os perigos de que o capitalismo moderno causasse uma desigualdade econômica entre povos e pessoas, suficiente para gerar caos e instabilidade.
Apesar do respeito que Hawkings sempre despertou pela sua enorme proficiência em física avançada, não é óbvio que suas conclusões a esse respeito estivesse corretas. Vários pensadores se dispuseram a fornecer visões mais otimistas para o futuro da humanidade. Um exemplo é o da ex-diretora do SETI, Jill Tarter. Segundo ela qualquer espécie com capacidade para atravessar vastas regiões do espaço terá desenvolvido também um sentido ético aprimorado de respeito à vida. “Eles não precisariam de escravos e nem de roubar os recursos de outros povos”.
“Há uma teoria afirmando que, se qualquer pessoa um dia descobrir o que é o universo e porque ele está aqui, ele vai imediatamente desaparecer e ser substituído por algo ainda mais bizarro e inexplicável. Existe também outra teoria afirmando que isso já aconteceu.
— Douglas Adams, O Guia do Mochileiro das Galáxias.
Em artigos anteriores vimos que nossos mecanismos de percepção, incluindo os órgãos sensórios, nosso processamento cerebral das informações obtidas e memória são sofisticados e eficientes mas não infalíveis. Resumimos essas afirmativas como:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Estas características humanas têm grande impacto quando se tenta fazer pesquisa científica e por isso a questão é tratada com bastante cuidado. Nossos sentidos são ampliados por meio de receptores mais gerais ou mais potentes, tais como telescópios que permitem colher uma quantidade maior de luz e com maior resolução, mostrando objetos que estão longe, microscópios para ver de perto coisas pequenas, aceleradores de partículas para ver coisas ainda menores ou termômetros para aferição rigorosa e independente de quem lê a temperatura. Construímos aparelhos para ver o universo na faixa de ondas de rádio, os radiotelescópios, ou sensores de infravermelho para ver no escuro. A interpretação dos dados é a parte mais delicada. A informação obtida é analisada com base em modelos matemáticos que estão sendo testados, muitas vezes usando computadores. Nessa análise se busca diminuir o efeito dos vieses de cognição por meio da repetição dos experimentos, da verificação crítica da comunidade científica e tratamento estatístico de dados. A memória ou registro dos dados conta com uma linguagem de precisão, onde termos devem ser bem definidos, por meio de artigos, livros e, nos últimos tempos, os bancos de dados eletrônicos.
Em termos pessoais deveria se supor que a busca por uma visão clara (ou tão clara quanto possível) do mundo, de nosso relacionamento com ele e de nossas relações interpessoais deveria ser uma prioridade para todos. Mas, por diversos motivos, isso não ocorre. A maioria das pessoas vive envolta em uma nuvem de crenças obscuras, de informações distorcidas sobre ciência e sociedade e de má vontade para quebrar o ciclo vicioso da desinformação.
Todas essas coisas levam a destacar a necessidade de uma postura cética para processar o conteúdo que chega até nós. Essa postura faz maior diferença quando se trata da educação. Crianças são ingênuas e acreditam no que é dito. Antes de terem a menor possibilidade de discriminação lhes é ensinado qual Deus é o verdadeiro, quais preconceitos são bem vindos na sociedade em que vivem, quais devem ser suprimidos ou ocultados da convivência social. Elas vêm a discriminação de raças, por exemplo, e se tornam racistas sem que nenhum adulto tenha explicitamente ensinado isso. Elas embarcam sem questionar em uma sociedade que cultua líderes, autoridades religiosas e celebridades. E elas assistem televisão e seus programas de alta audiência que exploração a credulidade e superstição.
Em um experimento em psicologia social uma pessoa entra em uma sala de espera repleta de pessoas que se levantam toda a vez que soa um alarme. Sem saber que seus companheiros de espera são atores agindo sob combinação prévia com os experimentadores, essa pessoa estranha o fato mas passa a se levantar também. Aos poucos as pessoas vão sendo substituídas até que nenhum dos atores esteja mais na sala. Porém os que restam continuam se levantando, mesmo que, para eles, tal ato não tenha nenhum significado.
A exploração da credulidade não é inócua. Pelo contrário ela causa danos e pode levar à morte. No entanto, em tempos de veiculação rápida das ideias e das descobertas, vemos também a proliferação das pseudociências, das curas paranormais ou exploração da fé.
Considere, por exemplo, a astrologia. Ela faz afirmações concretas sobre as pessoas, sobre suas personalidades, sobre as afinidades em relacionamentos e até sobre eventos futuros na vida de um indivíduo. Uma pergunta deveria ser óbvia: alguém testou as predições astrológicas? A resposta é: claro que sim. E nenhuma correlação foi encontrada entre as afirmações de astrólogos e o que é observado. Em primeiro lugar não existe nenhum mecanismo conhecido, nenhuma interação descrita pela ciência que justifique o efeito da posição de planetas na formação e condução em vida de um ser humano. Nenhuma das proposições apresentadas pelos praticantes para justificar o mecanismo de funcionamento da astrologia pode ser testada ou refutada.
O teste é bastante difícil uma vez que nem os próprios astrólogos convergem entre si em suas afirmações. Mas, no que existe de concreto na predição dos astros, como incidência de doenças ou preferência por uma profissão por grupos de pessoas do mesmo signo, falham quando cotejada com a informação externa.
Também o estudo da parapsicologia, apesar das inúmeras afirmações em contrário, não mostrou evidências de fenômenos paranormais. Apesar disso vemos a incessante divulgação de curas miraculosas, de médiuns, adivinhos, do poder da oração. Em tempos de pandemia por Covid-19 (quando esse texto está sendo escrito) existem pastores vendendo a cura por meio de orações, feijões, água e óleos “consagrados”.
A absoluta maioria das pessoas no Brasil em 2020 acredita no poder da oração. Esse poder foi testado? Mais uma vez, claro que sim. Não se pode negar que oração e meditação podem trazer tranquilidade, reduzir o estresse, diminuir a pressão sanguínea da pessoa que ora e aumentar seu poder de autocontrole. De fato, uma grande área de pesquisa se desenvolve sobre os efeitos da mente sobre o corpo, do poder de nosso psiquismo sobre nossa saúde e bem estar. Isso é muito diferente de afirmar que um grupo de fiéis rezando para pessoas doentes pode controlar em qualquer nível a saúde dessa pessoas. Vários testes foram realizados, alguns “meta-estudos” (análise retroativa de dados anteriormente obtidos), nenhum deles sustentando a afirmação de que as preces foram eficazes. Em um deles três grupos de pessoas hospitalizadas foram acompanhadas pelos pesquisadores. O primeiro grupo recebeu orações de voluntários, pessoas de fé, e foi informado disso. O segundo grupo recebeu orações mas não foi informado. O terceiro grupo não recebeu nenhuma oração. Nenhuma diferença estatisticamente sólida foi observada. A análise desses estudos é difícil e em alguns casos se relatou “pequena margem de verificação de sucesso”. Por outro lado houve casos em que pessoas que receberam orações pioraram seu estado, quando comparadas com as demais.
“Consiga um bilhão de cristãos rezando por uma única pessoa amputada. Recomende a elas que peçam a Deus que reconstrua o membro que está faltando. Afinal, isso acontece com salamandras todos os dias, e nem necessita de orações; portanto está dentro das capacidades de Deus. Acho curioso que as pessoas de fé só rezam para pedir graças que seriam alcançadas mesmo sem nenhuma oração.”
— Sam Harris, The God Debate, RichardDawkins.net.
Em todos os estudos de eficácia de intervenções na saúde de uma pessoa deve ser considerado o efeito placebo. Se um curandeiro entra no quarto de um paciente, principalmente alguém que tenha por ele respeito, conversa com ele carinhosamente e se mostra interessado em sua cura, as chances de que ocorra uma de melhora, ainda que temporária, são significativas. Por isso todos os tipos de tratamento, inclusive medicamentosos, devem ser comparados com o efeito de um placebo.
O pior efeito das pseudosciências é encontrado nos tratamentos médicos alternativos, nas curas por medicamentos não testados, nos remédios homeopáticos, nos curandeiros e suas “terapias espirituais”, imposição de mãos tipo reiki, etc. Mesmo que a maioria desses tratamentos seja inócua e sem efeitos colaterais, eles tendem a fazer com que os pacientes abandonem os tratamentos médicos. Depositar confiança em um medicamento ou prática médica sem teste é um risco muito grande.
Remédios homeopáticos devem receber uma atenção especial. Aparentemente inofensiva a indústria farmacêutica e de tratamentos “alternativos” envolvem valores financeiros altos e escapam da regulamentação ordinária válida para o setor. Medicamentos homeopáticos são feitos de plantas, minerais e substâncias químicas em concentrações altamente diluídas em água ou em álcool, de forma que, para algumas “dinamizações” (níveis de diluição) nenhum átomo da substância original permanece na substância manipulada. Quanto maior a “dinamização de uma fórmula homeopática menor a quantidade de substância original permanece no medicamento. Novamente, não existem mecanismos conhecidos pela ciência para explicar que efeito residual pode permanecer na água ou álcool usados. Sem efeito testável o uso da homeopatia se resume à crença de quem se utiliza deles.
O caso Emily Rosa
Em 1998 Emily Rosa, uma garota com 9 anos de idade, se tornou a pessoa mais jovem a publicar um artigo em um periódico sério revisado por partes, o Journal of the American Medical Association. Emily assistiu vídeos onde praticantes do toque terapéutico se declaravam capazes de perceber “um campo de energia” emanado por seus pacientes. O toque terapéutico é uma técnica em que seus praticantes, sentindo o efeito da energia das pessoas, inclusive falhas nesse campo, se diziam capazes de reparar a saúde desses pacientes reforçando seus campos energéticos.A garota ficou curiosa e determinada a testar se 21 praticantes voluntários da técnica eram realmente capazes de perceber tal campo. Ela pediu que se sentassem em um mesa atrás de biombos. Aleatoriamente Emily colocou sua mão sobre uma das mãos dos praticantes, pedindo que eles identificassem que mão era aquela. Cada uma das pessoas testadas passou por 10 tentativas mas não obteve sucesso em mais de 4.4 vezes, na média. Os acertos não passavam daqueles obtidos por mero acaso. A menina havia mostrado que os praticantes, por mais sérios que fossem em suas afirmações, não eram capazes de detectar campos energéticos em sua mão.
Ceticismo e Religião
“E Ele é Quem desenleou os dois mares: este é doce, sápido, e aquele é salso, amargo. E fez, entre ambos, uma barreira e terminante proibição de sua mescla.”
— Alcorão 25:53
Há no Alcorão a afirmação de que a água salgada do mar e a água doce dos rios não se misturam. A afirmação vem sendo repetida há séculos, sem que a maioria das pessoas façam um teste simples. Essa afirmação resiste ao teste de um experimento?
É claro que uma sociedade livre deve preservar o direito das pessoas de crerem no que quiserem e de realizarem os cultos de sua escolha, desde que não firam as leis do grupo maior. Mas a interação entre grupos de cultos e sociedade pode ficar bastante complicada. Como deve se portar um médico que se vê impedido de fazer uma transfusão de sangue essencial para a preservação da vida de uma criança cujos pais são Testemunhas de Jeová e não autorizam a transfusão? Como deve agir o estado que se vê impedido de completar um programa de vacinação de crianças por recusa de pais apoiados em motivos religiosos ou não, quando a falta de vacinação de alguns põe em risco a sociedade toda? Ou quando uma política de redução da natalidade se faz necessário e é bloqueada por iniciativa de grupos religiosos?
Vivemos em uma cultura que valoriza, por princípio, a fé das pessoas. Em certo sentido a fé pode ser vista como algo construtivo e bom, como a esperança de que poderemos superar os problemas atuais, individuais ou do grupo, e construir tempos melhores. Mas é praxe chamar de fé a confiança em coisas que não podem ser provadas ou verificadas. Não é necessário perguntar se alguém tem fé nas leis de Newton ou na Teoria da Relatividade de Einstein pois elas podem ser verificadas. Ou você conhece essas teorias ou as ignora. Fé é a confiança implícita, muitas vezes inconsciente, em instruções não processadas pelo senso crítico.
A fé pode levar a conflitos e incoerências internas. Uma pessoa que estuda a Bíblia e crê no relato literal do Gênesis e, simultaneamente, conhece a Teoria da Evolução e sabe como ela é testada e confirmada por um grande número de observações, tende a construir em sua mente a imagem de um universo constituído de setores disjuntos e irreconciliáveis. Não é possível que criacionismo e evolução estejam ambos corretos em um universo consistente. E, caso ele não seja consistente e mostre faces totalmente diversas em situações diferentes então não é possível a construção da ciência. Nesse caso ela faria bem em abandonar a tentativa de entender e usar a ciência (o que, é claro, envolve a tecnologia nela baseada), ou conviver com uma hipocrisia inerente e desabilitante.
Com frequência se menciona o fato de que grandes cientistas do passado eram religiosos, e isso é um fato. Muitos dos primeiros físicos estudavam a natureza como uma tentativa de entender a divindade. Newton, por exemplo, gastou mais tempo de sua vida estudando a Bíblia e alquimia do que dedicado à física e a matemática. Ele acreditava que poderia encontrar no texto cristão algum tipo de código deixado por Deus para revelar os mistérios do universo. Ele entendia Deus como o criador cuja existência podia ser confirmada pela grandeza da “criação” e rejeitava o ponto de vista de Leibniz de que o mundo fora criado suficientemente perfeito, não mais exigindo intervenção do criador.
“Esse sistema maravilhoso formado pelo Sol, planetas e cometas só pode proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente. […] Este Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo mas como Senhor de todas as coisas; e por causa de seu domínio ele costuma ser chamado de “Senhor Deus” παντοκρατωρ [pantokratōr] ou “Governante Universal”. […] O Deus Supremo é um Ser eterno, infinito, [e] absolutamente perfeito.
A oposição à divindade é ateísmo na profissão e idolatria na prática. Por ser tão desprovido de sentido e odioso para a humanidade o ateísmo nunca teve muitos defensores.
— Isaac Newton, Principia.
No entanto, enquanto buscava “revelar e exaltar a glória de Deus”, Newton lançou os fundamentos de uma explicação científica lógica para o movimento dos astros que totalmente prescindia da intervenção divina. Para a surpresa dos pesquisadores com o desenvolvimento da mecânica uma descrição cada vez mais precisa do movimento e até da origem das coisas foi sendo desenvolvida. O relato que se segue tem veracidade histórica discutida, mas é bastante interessante e pode ter ocorrido. Quando Laplace apresentou uma cópia de sua obra a Napoleão o imperador se surpreendeu com a ausência da menção a Deus em sua explicação sobre como teria surgido o sistema solar. Laplace teria respondido que “não necessitou de tal hipótese”. Laplace havia escrito uma obra contendo a descrição do sistema solar baseada nas leis de Newton e nela não fez qualquer referência à intervenção divina.
O conceito de uma divindade foi progressivamente esquecido e relegado às causas primeiras, como um criador que colocou as coisas em movimento e depois se retirou. Essa leitura tem recebido a acusação de ser a defesa pouco racional de um “Deus das lacunas” que vai sendo empurrado para regiões cada vez mais remotas na medida em que o conhecimento se amplia.
Filosoficamente se argumenta que não se pode provar a inexistência de Deus. De fato, não se pode provar a inexistência de coisa alguma e a afirmação perverte a lógica mais elementar de que o ônus da prova recai sobre quem afirma. Pode ser que nunca saibamos por certo se Deus existe ou não. Isso não nos desobriga de perceber que esse conceito não faz parte da construção científica, pelo menos por enquanto. Progressivamente o número de cientistas e acadêmicos que se declaram religiosos tem diminuído. Como mostrado na figura, uma pesquisa da American Association for the Advancement of Science mostrou que entre cientistas o número de pessoas de fé é bem menor que entre pessoas do público em geral. Os dados são dos EUA (uma vez que não temos esses dados para o Brasil).
Apesar de estarem em menor número existem casos de cientistas notáveis que sustentam suas crenças. Um deles é o do médico-geneticista Francis Collins que liderou o Projeto Genoma Humano e descobriu vários genes associados à doenças. Collins cresceu em um ambiente religioso mas se considerou um ateu enquanto estudante universitário. Já como médico, em um diálogo com um paciente hospitalizado, ele se sensibilizou e questionou sua própria falta de fé e passou a considerar diversas abordagens para a questão. Segundo seu relato, em uma viagem para as Montanhas Cascades, admirando a beleza de uma queda d’água congelada ele se converteu, transformando-se em um “cristão sério”. Collins foi uma criança educada em ambiente cristão que retornou para sua fé após considerar o sofrimento das pessoas e a beleza da natureza, elementos fortes para induzir uma experiência religiosa pessoal mas não conclusivos como argumentação científica.
Suponha que você acredita na existência de um fenômeno paranormal de qualquer natureza. Não é o objetivo dessa argumentação mostrar que você está errada(o), e muito menos propor outra visão mais “correta ou verdadeira”. Principalmente quando o debate envolve tema de foro muito íntimo, como a existência de (digamos) uma alma imortal, que existe independente do corpo, não deveria haver uma pessoa (ou várias) capazes de confirmar ou desmentir a sua visão. Então, neste caso, ceticismo significa que você deve analisar sua percepção das coisas e descobrir se você sabe algo a respeito ou apenas acredita. Ceticismo consiste em entender que suas crenças tem uma importância relativa e devem ser mantidas sob permanente escrutínio. E, caso você decida que sabe algo (novamente, digamos) sobre a existência da alma, e pode mostrar isso, então você tem um compromisso com a humanidade inteira, demonstrando do modo inequívoco a existência dessa entidade (a alma).
Seria interessante pensar em um desafio: Como você faria para demonstrar de forma clara, inquestionável e sem necessidade de fé, que a consciência humana pode existir independentemente do corpo?
A partir de 1975, com as pesquisas de Raymond Moody e a publicação de seu livro Life After Life (A Vida depois da Vida) aumentaram muito os relatos de experiências de quase morte. Pessoas que estiveram próximas da morte, algumas vezes inconscientes e até em coma, quando voltam à consciência relatam ter passado por experiências extra-corpóreas, tendo presenciado tudo o que ocorreu em seus ambientes. Como um teste, muitos médicos e enfermeiros passaram a colocar objetos inusitados em locais inacessíveis, tais como no alto de armários, coisas que seriam vistas e notadas por alguém flutuando fora de seu corpo. Até o momento não há relato de alguém que tenha visto esses objetos.
Fé e dogmatismo não são características exclusivas da religião e dos religiosos. A política desperta paixões e defesas apaixonadas muito próximas do proselitismo religioso. Até mesmo a defesa de teses científicas podem revelar o lado mesquinho da identificação egocêntrica de um pensador com seu pensamento. A história da ciência mostra, no entanto, que todas as guerras científicas foram travadas em cima de vaidades e falta de evidências.
Concluindo
Acreditar não é saber! Mais uma vez, acreditar é inerente ao ser humano e não parece razoável esperar pessoas nem sociedades sem crenças. No entanto seria útil para a sociedade que as pessoas compreendessem exatamente (ou tanto quanto possível) o que são as suas crenças e o que é o seu conhecimento.
Você já pensou sobre por que tantas pessoas tiveram que morrer queimadas em foqueiras por serem bruxas e bruxos na idade média? Essas pessoas foram acusadas, e muitas vezes confessaram, de terem associação com o demônio. Em uma das formas de interrogatório o padre interrogante colocava a bruxa nua e a espetava com um estilete por todo o corpo procurando um ponto sem sensibilidade que era, supostamente, o ponto do demônio. Outra técnica consistia em jogar as bruxas amarradas a pedras dentro d’água. Se afundassem eram bruxas verdadeiras. Curiosamente muitas dessas pessoas se julgavam de fato feiticeiros e feiticeiras. Talvez essas tenham morrido satisfeitas julgando que estavam indo ao encontro de seu mestre.Claro que, nos primeiros tempos do cristianismo, os cristãos também gostavam de virar mártir e partir mais cedo que o necessário para encontrar um destino nobre nos céus.
Como espécie estamos enfrentando desafios totalmente novos. Aquecimento do planeta, espalhamento global de epidemias devido à circulação das pessoas, concentração excessiva de renda (com o consequente aumento da pobreza), dificuldade de assentamento, manutenção, alimentação de uma população em crescimento exponencial, são alguns deles. Seria muito bom contar com cidadãos esclarecidos e capazes de tomar decisões sensatas.
Ceticismo não significa a negação de todas as afirmações por princípio e sim a intenção de analisar essas afirmações com critério. Existe o lado reconfortante da crença mas esse conforto está em óbvia rota de colisão com a tentativa de ver as coisas com clareza. Crenças podem ser perigosas. Por exemplo, acreditar que “tudo vai dar certo no final porque tem alguém cuidando de nós” é apenas um sinal de fraqueza e de medo. Essa pode ser uma solução para a vida pessoal dos indivíduos que não querem encarar o perigo de viver, a decadência e a morte. Mas certamente não é boa postura coletiva para guiar os rumos da sociedade. Existem inúmeras ameaças concretas ao indivíduo, às comunidades em todas as escalas, à vida e até ao planeta. Ter fé em qualquer tipo de estabilidade ou segurança universal é um passo para não se tomar as atitudes necessárias para contornar esses desafios.
Bibliografia
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
Hoffman, Donald: The Case Against Reality; Why Evolution Hid the Truth from Our Eyes, WW Norton and Co., New York, 2019.
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
“O Teorema Aptidão-derrota-Verdade (Fitness-Beats-Truth, FBT) afirma que a evolução por seleção natural não favorece a exatidão de nossas percepções — frequentemente ela a conduz a sua extinção. Ao contrário, a seleção natural favorece percepções que ocultam a verdade dando prioridade para a percepção que leva a atos úteis.”
— Donald Hoffman
Você vai atravessar a rua e olha para os dois lados. Um veículo se aproxima mas você faz um cálculo rápido e percebe que há tempo suficiente para prosseguir. Confiamos em nossos olhos e em nosso cálculo mental. Aprendemos que o mundo é feito de ruas e carros, pessoas e semáforos. Pessoas e carros se movimentam de forma previsível e adquirimos uma confiança progressiva em nossos sentidos e senso comum. Concluímos que eles são bons guias de segurança e de conhecimento. Mas, será que isso é sempre verdade?
É claro que os sentidos se desenvolveram para uma melhor adaptação ao ambiente, por meio dos mecanismos de evolução conhecidos. Como exemplo, nossa visão tem maior sensibilidade na cor do Sol mais intensa (que é um amarelo esverdeado), assim como plantas de cavernas são mais escuras para captar melhor a pouca luz que recebem. Os ajustes dos sentidos foram aqueles que melhor prepararam a nós, e todas as demais espécies, para a sobrevivência em seu habitat. Dentro de uma população de qualquer espécie, indivíduos que melhor avaliam seu meio têm maior chance de se alimentar, lutar ou fugir dos predadores, e procriar.
Mas, mesmo reconhecendo que nossos mecanismos de contato com o mundo foram finamente ajustados para a sobrevivência, temos muitas indicações de que nossos instrumentos sensoriais não são perfeitos para nos informar sobre o que existe no mundo. Eles podem falhar de maneiras e níveis diversos e nos iludir em várias situações. Por isso uma análise dessas falhas devem ser parte importante de qualquer tentativa de compreender, com algum grau de objetividade, o que está em nosso ambiente.
O grau de objetividade de nossa percepção vem sendo discutida há muito tempo. É esse, afinal, o objetivo de Platão em sua alegoria da caverna. Nela Platão descreve um grupo de filósofos presos dentro de uma caverna, vendo apenas as sombras que a realidade externa projeta em suas paredes. Por mais que tentem apreender o que está no mundo eles só vêm suas sombras, como informações parciais e distorcidas de uma suposta realidade objetiva.
A física da ilusão
Os pensadores gregos foram bons no desenvolvimento do raciocínio lógico e da matemática, mas não avançaram muito em física (ou ciências, em geral). Por pura observação do cotidiano os gregos concluíram que objetos em movimento tendem a perder velocidade até parar e que o estado parado é o natural dos corpos. Foram necessárias várias reviravoltas históricas até que, no século 16, Galileu Galilei introduziu o conceito de experimentação na ciência, algo ausente no pensamento grego. Galileu concluiu em seus experimentos, e na racionalização sobre eles, que objetos em movimento permanecem em movimento até que uma força atue sobre eles. Com o aperfeiçoamento do conhecimento sobre mecânica, Newton mostrou que não existe nada especial sobre o estado de estar parado e que, na verdade, estar parado ou em movimento retilíneo uniforme são estados completamente equivalentes, dependendo apenas do referencial de observação.
Temos uma grande dificuldade para interpretar o movimento. Uma pessoa dentro de um trem que parte sem solavancos terá a impressão de que a plataforma de embarque está se afastando para trás, assim como as pessoas antes de Kepler e Galileu achavam que o Sol, os planetas e as estrelas giravam em torno da Terra. O abandono dessa visão primitiva foi um processo lento e doloroso, incluindo a morte daqueles que ousaram abandonar o consenso da época. Do ponto de vista científico moderno esse debate é de todo irrelevante. Qualquer referencial pode ser usado para descrever o movimento do sistema solar. Ocorre que um referencial centrado no Sol (embora não exatamente em seu centro) e se movendo junto com ele torna a descrição matemática muito mais simples.
Parte dessa ilusão se deve à lentidão de nossos sentido e da forma como eles devem se focar sobre o objeto considerado, desprezando a visão ampla do examinado. Quando assistimos a um filme, por exemplo, estamos expostos a uma sequência de imagens estáticas mas as interpretamos como estando em movimento contínuo. Um ponto de luz em rápido movimento circular (como uma brasa amarrada na ponta de uma corda sendo girada) se parece com uma circunferência pois pontos acessos na retina demoram a se apagar de forma que vemos um círculo inteiro quando apenas um ponto está iluminado.
Na mecânica desenvolvida por Newton os eventos e o movimento ocorrem em um espaço de 3 dimensões (o espaço Euclidiano da experiência comum composto por largura, altura e profundidade) acrescido da dimensão tempo que é independente das 3 primeiras e flui de modo uniforme e sem qualquer relação com o que acontece nelas. Nesse espaço as distâncias espaciais (como o comprimento de uma barra rígida) é invariante, o que significa que é o mesmo para todos os observadores inerciais, com qualquer velocidade. A Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, TRR, substitui o conceito de espaço Newtoniano pelo espaço-tempo onde as 4 dimensões (3 espaciais mais 1 dimensão que é o tempo) estão interligadas. No espaço-tempo são invariantes a separação entre dois eventos, onde evento é definido como o local e o momento em que algo ocorreu.
O estudo físico do movimento revelou níveis mais profundos de incompreensão de nossa visão ordinária. Em movimentos rápidos (quando comparados à velocidade da luz) muito efeitos extraordinários se manifestam. Esse é o objeto da TRR, responsável pelo entendimento de que distâncias no espaço e no tempo (intervalos) não são os mesmos para observadores em diferentes velocidades. A TRR introduz o conceito de espaço-tempo, totalmente inesperado para nossos sentidos e cognição uma vez que não interagimos rotineiramente com esse tipo de entidade. Além disso ela mostra que existe uma relação entre matéria e energia, algo inesperado e pouco intuitivo para o senso comum e, no entanto, capaz de transformar totalmente nossa visão de mundo e tecnologia.
Outra revolução no entendimento físico das coisas ocorreu com a teoria quântica. Nesse caso fenômenos ainda mais exóticos são expostos, entre eles a impossibilidade de se localizar uma partícula e simultaneamente afirmar sua velocidade com precisão. A mecânica quântica, apesar de distante dos sentidos e experiências comuns, é responsável pelo entendimento de muitos fenômenos a que estamos rotineiramente expostos. Para entender porque uma barra de ferro parece ser mais fria ao toque do que uma peça de madeira, porque o vidro é transparente ou as coisas tem cores, porque uma lâmpada de filamentos ou uma de led se acendem, porque o Sol brilha e é quente, porque o gelo boia na água líquida, etc, você precisa da mecânica quântica. Observe que a linguagem usada nesse parágrafo foi propositalmente pouco precisa. Solidez é o que sentimos na interação eletromagnética, matéria é o conjunto de partículas e seus campos.
Sabemos, por meio da mecânica quântica, que uma parede sólida possui mais espaço vazios entre seus átomos que matéria, no sentido da palavra usado no dia a dia. Considere um portão rígido de ferro. Os átomos de ferro se agrupam de forma cristalina, com espaçamento regular entre os átomos. Os núcleos (26 prótons e o mesmo número aproximado de nêutrons) ficam distantes uns dos outros e o espaço intermediário é preenchido com nuvens eletrônicas que carregam pouquíssima massa. Pode-se assim dizer que uma chapa de ferro é como uma peneira. No entanto você não deve socar essa chapa pois as partículas de sua mão sofrerão interação eletromagnética com as do aço e você se machucará. Curiosamente, nenhuma partícula de sua mão colidirá diretamente com as da placa metálica exceto por meio da interação elétrica e magnética. Portanto, o sentido do tato nos informa que a placa é uniformemente sólida. Nossa visão dará a mesma informação pois a luz será absorvida nesse “interstício vazio de matéria” fazendo a placa ser opaca.
Os últimos exemplos mostram como falhamos na compreensão de coisas diminutas, como núcleos, elétrons, fótons (as partículas da luz) e suas interações. Não temos nenhum senso comum apropriado para pensar sobre fenômenos no mundo das partículas. Isso é natural pois não experimentamos nada disso em nosso processo evolutivo. Não temos ferramentas sensoriais naturais nem estrutura cognitiva cerebral para lidar com essas coisas. Por isso a mecânica quântica causou tanta surpresa em sua descoberta. O mundo microscópico não funciona como o mundo cotidiano de carros e pedestres.
Uma mostra adicional de como nosso senso comum é insuficiente para captar as nuances do mundo microscópico está no chamado problema da seta do tempo. No nível microscópico não é claro o motivo do tempo fluir do passado para o futuro. Se assistirmos a filmes de interações entre partículas não seremos capazes de dizer se o filme roda na direção natural do tempo ou se foi invertido. Nossa intuição sobre tempo se refere à um fenômeno macroscópico, ligado à entropia que, por sua vez, está conectada à probabilidade de ocorrência de certos eventos.
Nossos cérebros recebem do mundo informações sobre uma parcela muito pequena dos fenômenos ao nosso redor. Nossos sentidos nos enganam.
Da mesma forma o universo em grande escala, no nível das galáxias e aglomerados galáticos, não se comporta como dita nossa intuição. Existe uma relação intrínseca entre a massa dos objetos dentro do espaço e a própria geometria desse espaço (a forma como se mede distâncias e ângulos). A matéria (e energia) modificam o espaço que, por sua vez, modifica o movimento dos corpos naquele espaço.
A psicologia da ilusão
No entanto não precisamos apelar para o mundo das coisas microscópicas ou dos objetos em alta velocidade ou grandes escalas para perceber a ilusão. Nosso cérebro está enclausurado na caixa craniana e só entra em contato com o mundo através de impulsos elétricos que chegam dos órgãos sensoriais, levados até ele por neurônios e sinapses. No entanto existem muitas evidências de que as percepções integradas que temos do ambiente externo são mais uma composição processada pelo cérebro do que uma fotografia exata.
Uma parte importante de nossa recepção do mundo externo nos vem através da visão e interpretação das cores. No entanto enxergamos uma faixa muito estreita do vasto espectro eletromagnético, do vermelho até o violeta (o que chamamos de luz visível!) Todas as demais frequências, as ondas de rádio, do infravermelho, do ultravioleta, raios X e raios gama são invisíveis para nós porque não temos sensores capazes de entrar em ressonância com essas vibrações. Essa limitação não é igual para todos os seres vivos: Abelhas podem ver na faixa do ultravioleta (uma “cor” que existe em flores) e cobras podem perceber o infravermelho, a radiação emitida por corpos em temperatura ambiente na Terra. Elefantes ouvem ruídos na faixa do ultrassom, ursos podem sentir cheiros de animais mortos em lugar distante, tubarões percebem campos elétricos e pombos se orientam por esses campos.
Neurocientistas usam os enganos da percepção para aprender mais sobre esse mecanismo e suas falhas. As mesmas pesquisas também são úteis para ajudar na construção de sistemas inteligentes que realizam tarefas usualmente atribuídas a humanos, tais como o reconhecimento facial.
O que vemos não é uma representação fiel do está no mundo exterior. Para compreender o cérebro faz suposições usando uma quantidade mínima de informações. A rica experiência que acumulamos olhando uma paisagem ou um belo quadro é uma reconstrução e não um mapeamento direto do observado. O cérebro sadio erra, gerando percepções falsas, ilusórias. Pacientes portadores de patologias neurológicas e cerebrais são expostos à ilusões ainda mais sérias.
Muita complexidade existe em nossa percepção de formas, cores e contrastes em áreas mais ou menos escuras. Observe que, dependendo da iluminação ambiente, as cores podem ter aparências totalmente diversas. Essa variação é corrigida por processamento cerebral. Somos obrigados a reconhecer que os sentidos não são uma aferição rigorosa do mundo exterior, como se fossem instrumentos de laboratório bem calibrados. Eles são os mecanismos adaptados para uma vida segura e eficiente, no sentido evolutivo.
Observe a figura mostrada. Qual dos quadrados A ou B é mais escuro?
Ocorre que eles são exatamente do mesmo tom de cinza. Como o quadrado em B está dentro de uma sombra construímos mentalmente uma diferença de tons.
A pesquisa em neurociência tem mostrado que boa parte das imagens capturadas pela visão são mais devidas à uma reconstituição processada no cérebro do que imagens objetivas e diretas do mundo exterior. A construção das cores é um bom exemplo disso. O que chamamos de azul ou vermelho são as representações montadas pelo cérebro à partir das frequências de luz recebidas. Os olhos transformam imagens em sinais elétricos que são enviados para o cérebro que, por sua vez, constrói a cor. Nas palavras de Kim e seu grupo de pesquisa (veja referências):
“Não existe cor na luz. A cor está no percebedor, não no estímulo físico. Essa distinção é crítica o entendimento das representações neurais que devem passar de um conceito de mera formação física da imagem na retina para a construção mental do que vemos. […] Essa distinção entre dois modos de representação neural representa um avanço do nosso entendimento da codificação visual no cérebro.”
— Kim, I; Hong, S., Shevell, S., Shim W.; Neural representations of perceptual color experience ..
Imagem e cor são reconstruções feitas pelo cérebro em um processo muito parecido com o que é feito nas belas fotos do Hubble e de radiotelescópios onde uma determinada faixa de frequência é convertida em cor visível para a nossa apreciação (e para a análise científica dos dados). A pesquisa mostra que há uma tentativa de economizar recursos e que o cérebro pode decidir pela cor de um objeto com muito pouca informação. Uma vez reconhecida a cor (mesmo que o reconhecimento esteja incorreto) o cérebro preencherá a imagem com aquele tom.
Além da faixa restrita de frequências de ondas que podemos captar, nossa visão só é nítida em uma região muito pequena do campo visual, e desfocada no entorno. Se você esticar o braço e levantar o polegar o tamanho da unha em seu polegar é aproximadamente o mesmo da região onde você enxerga claramente. A imagem periférica é borrada e imprecisa e a noção de que estamos olhando uma imagem ampla e detalhada é construída. (Experimente fixar os olhos em uma parte desse texto e ler as palavras que estão fora de seu olhar direto!) Quando você muda o foco de visão o ponto que recebe sua atenção se ilumina e se torna mais definido enquanto as demais partes da imagem são alimentados pelo cérebro usando a memória e cálculo.
Para mostrar que, da mesma forma, as pessoas enxergam cores apenas em uma parte pequena de sua visão, pesquisadores apresentaram imagens que iam perdendo colorido gradualmente (desaturando a cor) na periferia do campo visual. Algumas pessoas não perceberam a dessaturação na periferia mesmo quando quase toda a cor (até 95%) foi removida. Se você está olhando para um objeto na parede e seu cachorro caramelo entra na sala é bem possível que você enxergue a cor de seu pelo, mas apenas porque você a conhece de antemão. Caso contrário só conhecerá a cor do animal se olhar diretamente para ele.
Em testes de laboratório pesquisadores descobriram que ilusões que aparecem em sentidos diferentes podem usar os mesmos circuitos cerebrais. Por exemplo, uma pessoa olha para objetos que se movem em uma direção. Se ela troca o foco do olhar para objetos imóveis ela tem a impressão de que esses estão se movendo na direção oposta. Se, ao invés de olharem coisas imóveis, eles receberem estímulos táteis estacionários as pessoas os percebem como se movendo na direção oposta. A sensação de estímulos táteis em movimento também fez com que os participantes percebessem cenas visuais se movendo na direção oposta. Esses resultados indicam que o cérebro usa o mesmo sistema para processar movimentos visuais e táteis.
A percepção do tempo não é linear e pode ser manipulada em experimentos. Qualquer coisa que aconteça e receba toda a nossa atenção parece fluir mais lentamente. Há um experimento que exibe para os sujeitos de teste uma série de imagens contendo discos de cores diferentes, a maioria deles com o mesmo tamanho na tela. Todas as imagens ficam visíveis pelo mesmo tempo. Quando os discos aumentam de tamanho os observadores têm a impressão de que eles ficam visíveis por tempo maior. Uma sugestão para entender isso é a de que os discos que crescem parecem se aproximar do observador e que, evolutivamente, objetos que se aproximam merecem atenção mais detalhada.
Eagleman (veja referências) sugere um exercício: Olhando seu rosto de perto em um espelho tente alternar o foco de sua atenção entre o olho esquerdo e o direito. Há uma certa demora (mesmo que pequena) durante a troca de foco de um olho para outro mas esse intervalo não é percebido. Você não vê nada exceto sua visão pulando instantaneamente de um olho para outro. De fato nosso cérebro apaga a imagem borrada durante o movimento e, possivelmente altera sua percepção de tempo nesse intervalo.
Na descrição de Hoffman o ato de perceber requer uso considerável de energia. Cada caloria despendida nesse ato deverá ser reposta por meio de alimentação. Por mais fácil que seja na modernidade conseguir uma refeição isso não foi sempre assim. No passado era dispendioso, às vezes perigoso, conseguir sua alimentação. Por esse motivo o gasto de energia foi minimizado nas percepções e suas interpretações. Sempre que pode empregar um atalho para nos passar uma visão funcional do objeto que olhamos o cérebro o faz. Essa é a causa básica das inúmeras ilusões de óticas que encontramos, com imagens que parecem se mexer ou construções que não fazem sentido após um exame mais minucioso.
O neurocientista Donald Hoffman (The Case Against Reality) sugere uma alegoria interesssante. Um ícone em sua área de trabalho no computador não é o arquivo nem o aplicativo que ele representa. Na verdade ele está ali para simbolizar um objeto muito mais complexo que está armazenado eletronicamente em seu disco rígido. Ele guarda muitas informações e oculta a maioria delas do olhar do usuário. De fato ele oculta muito mais do que mostra, servindo como um mero atalho para que você encontre e use seu arquivo.
Da mesma forma chamamos cobra de cobra, mas isso nem de longe carrega todo o conteúdo que o animal, em si, possui. A palavra cobra não contém, por exemplo, a sequência de DNA necessária para formar o animal. Ela também não carrega o perigo e o medo que sentimos ao avistar uma verdadeira serpente. Cobra é um ícone que, dependendo da situação, faz o indivíduo correr para se afastar do local de sua aparição. Imagine que uma pessoa esteja saindo de um riacho, em uma região com cobras em abundância, e pisa em uma corda molhada. Seus sentidos o alertam para o perigo informando que há uma cobra debaixo de seu pé. É muito mais útil tirar o pé rapidamente e se afastar do que agir filosoficamente para investigar a natureza do objeto pisado. Essa é uma forma de heurística mental, um atalho que gera um ato reflexo imediato. Nossos sentidos agem para preservar nossa vida, não para que entendamos o universo.
Por argumentos desse tipo compreendemos que nossa percepção não é uma janela para a realidade mas um atalho para a sobrevivência. Mas qualquer consideração sobre o tema seria desonesta se omitisse os fatos: (1) não sabemos sequer se existe uma realidade externa, algo se movendo fora da caverna de Platão; (2) nossa interação com seja lá o que existe, por meio de cognição, é algo sobre o que sabemos muito pouco. Mesmo assim a discussão sobre o tema é essencial se desejamos ter alguma noção sobre a realidade objetiva.
Plasticidade Cerebral
Apesar das limitações de nossos sentidos uma grande área de pesquisa hoje explora a possibilidade de ampliar nossas percepções e da expressão de nossa consciência através de membros e sensores artificiais acoplados ao cérebro. Um experimento transforma uma imagem em pontos de pressão, aplicados sobre alguma parte do corpo. Na figura à esquerda uma matriz de pontos contendo a imagem exerce pressão sobre a testa de uma pessoa deficiente visual. Com um pouco de treino a pessoa passa a identificar objetos que são a ela expostos, como se “enxergassem” pelo tato. Embora existam regiões do cérebro especializadas em realizar uma determinada tarefa ele pode realocar recursos, se necessário, desenvolvendo uma funcionalidade onde ela não existia. É o que ocorre com pessoas acidentadas que perderam ou danificaram parte de seu cérebro e que, no entanto, conseguem superar suas limitações através da plasticidade cerebral.
O mesmo efeito se verifica nos implantes mecânicos, tais como um exo-esqueleto. Se o operador recebe um feedback (uma informação de retorno da máquina) ele pode aprender a operá-la como se fosse um de seus membros naturais. É o que explora o cientista brasileiro Miguel Nicolelis com sua tecnologia cérebro-máquina. Na Universidade de Duke, EUA, Nicolelis e seus colegas implantaram eletrodos no cérebro de um macaco capazes de controlar e receber retorno de um braço mecânico. Inicialmente o macaco usava o braço artificial para mover um joystick que movimentava uma figura em um videogame. Depois de um tempo o macaco aprendeu que bastava pensar no movimento da figura, dispensando o braço mecânico.
Na abertura da Copa do Mundo de futebol em 2014 um homem paraplégico se levantou e deu o primeiro chute na bola usando um exoesqueleto controlado por seu cérebro, como parte do Walk Again Project, um esforço colaborativo de 150 pesquisadores coordenados por Nicolelis.
Nossa vaga memória
A memória é um dos processos mais importantes na definição de quem somos e na compreensão do que vemos no mundo. Nenhum valor teriam instrumentos de percepção ultra sofisticados se não tivéssemos conhecimentos prévios sobre o que vemos guardados na memória. Sem ela teríamos que reinventar a roda a cada momento, partir sempre do zero. Na ciência, além da memória individual, é necessário estabelecer uma linguagem comum, não ambígua e de precisão, que dure muito mais que o prazo de vida de cada pesquisador.
A memória pessoal não é um fenômeno único mas sim um aglomerado de efeitos. Existe a memória de curta duração que mantemos ativa por alguns segundos, como a que usamos quando lemos um número de telefone em um anúncio e o discamos imediatamente. Também temos memória de longo prazo que são divididas em duas categorias: memória declarativa ou explícita e memória não declarativa ou implícita. Memórias não declarativas são responsáveis por hábitos e habilidades adquiridas, tais como saber manusear talheres, nadar ou andar de bicicleta. Com o uso essas habilidades se tornam automáticas e pode ser usadas com muito pouco esforço. A memoria declarativa é responsável pelo armazenamento de eventos que ocorreram em nossas vidas. Elas são também chamadas biográficas ou episódicas, contendo o conteúdo de nossas vivências e praticamente definem quem somos.
Sabemos que memórias de tipos diferentes são armazenadas em diferentes regiões do cérebro. Essas regiões foram descobertas primeiro através do estudo de pessoas que sofreram danos em partes diversas do cérebro, por doenças, acidentes ou cirurgias. Hoje os instrumentos de ressonância magnética permitem ver que partes do cérebro estão mais ativas quando o paciente é sujeito a cada tipo de experiência. Pacientes com amnésia clássica podem perder a habilidade de registrar novas memórias de curta duração e se esquecer de eventos do passado. Mesmo assim eles continuam sabendo quem são e quem são seus familiares, diferente do que acontece em um tipo de demência onde a pessoa perde a noção de sua individualidade.
Na formação de uma memória vários elementos separados são armazenados. Um evento composto de formas, cores, cheiros e emoções podem ser recapturados com muito mais facilidade que uma noção pura. Textos associados à imagens e até o estudo de coisas teóricas são melhor memorizados se associados a alguma sensação. Apesar de existir ainda muita dúvida sobre como funciona a memória, é sabido que ela não é guardada no cérebro da mesma forma que um arquivo é gravado em um disco rígido. Pelo contrário, a cada requisição de uma informação o evento que se pretende recuperar é reconstruído à partir de partes lembradas, associadas aos vários sentidos.
Considere os seguintes casos envolvendo memórias:
Um grupo de pessoas testemunha um acidente entre automóveis. Um policial as interroga perguntando para algumas delas: (a) Qual era a velocidade do carro quando colidiram? (b) Qual era a velocidade do carro quando se esbarraram? Pessoas do grupo (b) relatam velocidades menores que aquelas do primeiro grupo. A forma em que a pergunta foi feita altera a reconstrução do evento.
Você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”, etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
Diversos experimentos realizados pela polícia e por pesquisadores mostram que o resultado da identificação de criminosos onde a vítima escolhe um entre uma fila de vários suspeitos é pouco confiável. Há a tendência da vítima escolher uma pessoa mal encarada, um negro em comunidades onde há muito racismo, etc. Por isso essa técnica vem sendo abandonada.
Quando se pergunta às pessoas em diversos países: “Onde você estava quando ocorreu o ataque às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001”, a maioria delas se lembra com detalhes de sua localização e das sensações que tiveram naquele momento. Um estresse emocional forte tende a se tornar uma boa âncora para a reconstrução de uma memória.
Os exemplos mostram que uma memória pode ser plantada com alguma antecedência ou até mesmo na hora em que se faz a pergunta. Além disso é possível termos falsas memórias, quando partes de uma memória verdadeira se conectam incorretamente, levantando um quadro falso do que aconteceu. É esse o caso quando você julga que foi o protagonista de uma evento que, na verdade, foi relatado por uma terceira pessoa.
Outro exemplo comum é de pessoas que passaram por situações traumáticas e que buscam apoio em terapias de recuperação de memórias reprimidas. Em alguns casos se mostrou que as memórias recuperadas não passavam de sugestões, algumas vezes do próprio terapeuta, sonhos ou imaginação do paciente. Uma memória falsa pode ter o mesmo efeito de uma verdadeira, inclusive despertando felicidades, tristezas e até traumas. O cérebro reage de forma parecida, senão igual, a memórias de experiências vividas ou imaginadas, da mesma forma que fazer exercícios físicos ou pensar neles estimula as mesmas partes do cérebro.
Finalmente, nossas memórias podem, e são, reajustadas para fazer sentido ou afirmar as narrativas que temos de nós mesmos ou de eventos que presenciamos. O caso clássico são de pessoas que estiveram em coma por um tempo, sem atividade cerebral, mas acordam se lembrando de experiências fora do corpo, em algum tipo de céu religioso, etc.
Concluindo
Procurei argumentar que faz sentido o que foi proposto em Vieses de Cognição e artigos subsequentes:
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Por isso:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Claro que essa discussão não esgota o assunto e apenas indica uma direção a ser considerada. Dessas considerações se conclui pela necessidade de uma atitude de ceticismo, a ser explorada no próximo artigo.
Bibliografia
Shaw, Julia, The Memory Ilusion, Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory, Penguin Random House, New York, 2016.
Hoffman, Donald: The Case Against Reality; Why Evolution Hid the Truth from Our Eyes, WW Norton and Co., New York, 2019.
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
Site BrainFacts.org, Speert, D.; Sensory Ilusions, acessado em maio de 2020.
Site David Eagleman; Brain Time, acessado em maio de 2020.
Este artigo é continuação de Vieses de cognição, mas pode ser lido independentemente.
Viés de Confirmação
“Ouvimos e apreendemos apenas aquilo que parcialmente já sabíamos”
— Henry David Thoreau
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância — é a ilusão de conhecimento.”
— Daniel J. Boors
“A ignorância gera confiança com maior frequência que o conhecimento.”
— Charles Darwin, The Descent of Man.
Como vimos em Vieses de Cognição os processos de percepção e pensamento humano são poderosos mas falhos. Psicólogos estudam esses vieses cognitivos e padrões heurísticos para entender essas falhas e sugerir possíveis correções. Um dos efeitos mais importantes é o chamado viés de confirmação que consiste na tendência de se escolher entre as dados captados no mundo externo apenas aqueles que dão sustentação às nossas crenças. O efeito pode se manifestar em uma mera seleção de tópicos para debate até uma completa rejeição do dado conflitante sob forma de não enxergá-lo, de negá-lo com veemência ou de esquecê-lo. Existe também a tendência a interpretar resultados ambíguos como se fossem favoráveis.
A maioria das pessoas acredita que suas crenças e convicções são racionais, obtidas durante muitos anos de análise imparcial das coisas que são apresentadas, das informações disponíveis. O estudo desse viés mostra que isso não ocorre. Ele é perigoso porque impede que reformulemos nossa visão de mundo em face a dados conflitantes, ou nos leva a avaliar incorretamente nossa limitação e crer que conhecemos muito sobre um assunto porque as evidências todas (que percebemos) parecem confirmá-lo. Nesse último aspecto ele reforça o efeito Dunning-Krueger (de que já trataremos). Esse viés aparece em experiências cotidianas simples ou em elaborados experimentos científicos.
O termo Viés de Confirmação foi proposto pelo psicólogo inglês Peter Wason, em um experimento que ele relatou em 1960. Wason realizou uma série de experimentos onde as pessoas eram requisitadas a encontrar padrões, recebendo gradualmente informações sobres esses padrões. Ele foi um dos precursores no estudo das falhas comuns da racionalidade entre humanos. Teste de Wason.
Alguns exemplos
Como mencionado no artigo anterior, existem pessoas que usam sempre a mesma camisa para assistir a uma partida de futebol acreditando que essa atitude facilitará de alguma forma a vitória de seu clube. É claro que essa crença não possui nenhum embasamento lógico, nem pode ser verificada experimentalmente. Mas, ao longo dos meses, seu clube é vitorioso algumas vezes, outras não. A pessoa tende a considerar importante os dias em que o mecanismo obscuro funcionou, e a relevar os momentos em que não funcionou.
Considere que alguém mantém a crença de que pessoas homossexuais são mais criativas do que héteros. Se ela encontra um homossexual altamente criativo esse dado servirá para corroborar e tornar mais forte a sua crença. Provavelmente ela poderá encontrar vários homossexuais com criatividade regular ou até abaixo da média. Mas ela tenderá a ignorar essas observações.
O mecanismo tem uma influência forte em nossa vida social. O debate sobre a liberação de armas para a população, versus uma legislação que restringe a posse de armas, se tornou politicamente envolvente, dificultando muito o atingimento de posições racionais e desapaixonadas. Um defensor do desarmamento tende a buscar, ou a prestar mais atenção, nos casos em que a posse de armas resultou em tragédias e mortes. Alguém do lado oposto coleciona informações sobre eventos onde as armas foram úteis e salvaram vidas.
O viés de confirmação age para aumentar estereótipos e preconceitos. Se você desenvolveu a noção de que pessoas argentinas são arrogantes, cada argentino arrogante que você encontrar reforçará seu preconceito. Os muitos argentinos simpáticos e gentis que você conhecer passarão ignorados e não serão contabilizados em sua contagem de confirmação. O mesmo efeito pode levar um médico a diagnosticar incorretamente um paciente que valorizou mais um sintoma sobre outro, talvez porque já tenha decidido qual é a sua doença.
Muitas vezes, na história da ciência, um fenômeno novo interessante foi observado mas descartado por não ser compreendido. Um pesquisador pode descartar resultados que ele considera absurdos (de acordo com sua crença corrente) julgando que se tratam apenas de erros. Há um problema atual não resolvido com a tendência em não publicar (ou não valorizar) resultados negativos, que poderiam ser instrutivos para a comunidade de pesquisadores.
O efeito de confirmação enviesada tem papel importante nos fenômenos de ilusão de massa. No ano de 1940 em Seattle, EUA, alguns moradores notaram e espalharam a notícia de que estavam encontrando uma quantidade excessiva de perfurações e defeitos nos parabrisas de seus carros, atribuindo o problema a uma causa comum. Proprietários de veículos, naturalmente, verificaram seus próprios parabrisas, muitos deles encontrando defeitos. Muitas teorias surgiram, inclusive a de que os danos eram causados por raios cósmicos. Uma análise da polícia concluiu que 95% dos relatos não passavam de histeria coletiva.
Claro que o mesmo fenômeno age sobre a crença no paranormal e na religiosidade. Um especialista em leitura fria (cold reading), observando as reações das pessoas na platéia despeja uma descrição com extenso conteúdo, quase sempre elogioso. A pessoa que recebe a leitura aceita e recorda os acertos, ignorando os erros do “clarividente”. Um fiel que passou toda a vida rezando para passar em uma prova, para melhorar de uma doença mais ou menos séria, certamente se lembrará das situações em que obteve resultado e “suas preces foram atendidas”.
Recentemente, em 2010, foi descrito o efeito backfire (algo como tiro pela culatra) que é uma radicalização do viés de confirmação e de apego à ideias preconcebidas. Uma pessoa que defende teorias da conspiração, por exemplo a hipótese da terra plana, pode se apegar com mais rigor a suas crenças quando confrontadas com evidências fortes de que está errada. Quando o EUA invadiu o Iraque em 2003 algumas autoridades defendiam que Saddam Russein tinha um grande arsenal de armas de destruição em massa. Incapazes de encontrar essas armas as autoridades se justificaram com espanto sobre a capacidade dos iraquianos esconderem suas armas.
Alguns tópicos em debate, tais como posse de armas e pena de morte, sobre diferenças entra pessoas de grupos étnicos variados ou de gêneros opostos, são muito difíceis de serem resolvidos e um estudo sério à respeito deve envolver uma coleta de muitos dados e análise isenta e rigorosa. É muito difícil que uma pessoa não treinada em pesquisa faça sozinha essa coleta de dados e análise. Por esse motivo é importante entendermos que, embora todos tenham direito a suas opiniões, elas nem sempre são assim tão importantes.
Para a sua consideração: o que você pensa disto?
Todos têm direito à suas opiniões e também a obrigação de entender que suas opiniões não são extraordinariamente importantes.
Uma análise do viés de confirmação mostra que ele surge principalmente da dificuldade básica do ser humano em avaliar probabilidade e o efeito do acaso.
Sobrecarga de Informações
Com o advento da Internet seria esperado um efeito importante sobre a educação dos cidadãos e sua capacidade de decidir. Uma pessoa bem intencionada pode hoje procurar e encontrar informações sobre qualquer tópico e com o nível de profundidade desejada. Ela pode analisar abordagens e ideologias diferentes, argumentos pró e contra os seus próprios, realizando daí uma dialética saudável e encontrando uma posição esclarecida. Mas isso não se concretizou por dois motivos principais. Primeiro a quantidade de informação disponível está muito acima da capacidade de processamento das pessoas, principalmente alguém sem treinamento e formação básica. Em seguida verificamos que a qualidade da informação não mantém sempre bons padrões. A internet é um meio bastante democrático onde qualquer um pode disponibilizar seu conhecimento mas também despejar seus preconceitos, erros e desinformação.
Obter um conhecimento sólido em alguma área de estudo sério exige dedicação e sempre uma dose de conhecimentos prévios. Algumas vezes os prerequisitos são eles mesmos complexos e demandam tempo de aprendizado. Nas áreas de exatas a matemática costuma ser um empecilho que nem todos conseguem superar sozinhos. Os excluídos reagem assumindo posições extremas, conspiratórias e negacionistas da ciência.
Alguém que procure se educar pela internet teria necessariamente que buscar um tutor ou cursos bem avaliados, pelo menos para se iniciar no assunto desejado. E o aprendizado sobre as formas de discurso falacioso e de pensamento crítico pode ajudar a estabelecer filtros que eliminem o pensamento enviesado. É o que buscamos fazer aqui, neste site.
Efeito Dunning-Krueger
É curioso que, em muitos casos, a incompetência não deixa as pessoas desorientadas, perplexas ou cautelosas. Pelo contrário, os incompetentes são com frequência dotados de uma confiança inadequada, estimulada por alguma coisa que para eles parece conhecimento.
— David Dunning.
O efeito Dunning-Krueger é outro viés de cognição que faz com que os indivíduos não saibam avaliar o seu nível de expertise em algum assunto. Verifica-se que pessoas que sabem pouco sobre um tópico se consideram especialistas, enquanto os verdadeiros especialistas questionam a profundidade e abrangência de seu conhecimento.
Em 1999 os psicólogos David Dunning e Justin Kruger identificaram o efeito, inicialmente através da consideração do caso de um assaltante de bancos que praticava assaltos com o rosto coberto por suco de limão, na expectativa de estar invisível para as câmeras de segurança. Sua crença se originou do uso de suco de limão como “tinta invisível”. Outros testes confirmaram a existência do efeito, inclusive por meio de experimentos onde pessoas eram treinadas para resolver problemas de lógica. Quanto mais treinadas melhor as pessoas conseguiam avaliar sua competência na solução dos desafios.
Nas palavras de Dunning: “Se você é incompetente você não consegue perceber que é incompetente. As habilidades de que você precisa para encontrar respostas corretas são as mesmas necessárias para reconhecer que elas estão corretas”. Apesar de cometer muitos erros as pessoas julgavam que estavam desempenhando bem nos testes.
Dunning e Kruger realizaram diversos testes com estudantes de graduação em psicologia em níveis introdutórios, testando sua habilidade para avaliarem suas habilidades intelectuais em pensamento lógico, gramática inglesa e senso de humor pessoal. Em seguida os alunos avaliaram suas posições em relação aos colegas de classe. Verificou-se que os melhores alunos não se atribuíram boas classificações bem dentro de sua turma, enquanto os alunos fracos não se viam como mal colocados nesse ranking. Os mais competentes afirmaram não se colocar no topo porque pensaram que as tarefas fáceis (para eles) fossem fáceis para todos.
Em outro experimento Dunning e Kruger pediram a 65 participantes que avaliassem a quanto eram engraçadas diversas piadas. Alguns dos participantes se mostraram péssimos na determinação do que outras pessoas considerariam uma boa piada. No entanto esses mesmos indivíduos se descreveram como bons juízes do humor.
Essa incompetência na autoavaliação pode ter impactos profundos nas crenças individuais, nas decisões e atitudes tomadas. Por exemplo, em testes de qualificação científica os pesquisadores verificaram que mulheres tiveram desempenho idêntico aos de homens, embora se avaliassem como inferiores. Acreditando que homens são mais hábeis no pensamento lógico-científico muitas alunas podem se afastar dos cursos e carreiras científicas ou de competições nessas áreas.
Testes envolvendo a compreensão linguística foram realizados em experimentos que exibiam uma série de termos em áreas como política, biologia, física e geografia. Palavras inventadas eram ocasionalmente inseridas e se perguntava aos entrevistados se eles conheciam os termos. Um dos estudos mostrou que aproximadamente 90% dos entrevistados que afirmaram conhecer um assunto também julgavam compreender as palavras inventadas associadas àquele tema.
O efeito não ocorre apenas em indivíduos com pouca formação, ignorantes no geral ou ingênuas, nem exclusivamente sobre temas técnicos-científicos. A maioria das pessoas possui pontos fracos em sua formação, à respeito de algum assunto. Por mais especializadas que elas possam ser em temas de seu domínio elas poderão exibir esse defeito de cognição. Uma forma relativamente simples de perceber o viés em grupos consiste em reunir pessoas de uma mesma comunidade, com uma base cultural comum e perguntá-los como se qualificam em relação a tópicos de interesse comum. A absoluta maioria delas se classifica como entre os 10 ou 15% dos melhores motoristas, melhores amigos, pessoas mais honestas, trabalhadores mais eficientes, etc, o que é matematicamente impossível.
Dunning e Kruger sugeriram que o efeito é causado por uma “dupla deficiência”. A incapacidade em compreender o assunto em questão também age para dificultar a autoavaliação. Pessoas incompetentes tendem a superestimar a própria competência, ser incapazes de encontrar seus erros e falta de habilidade e não reconhecem a competência de pessoas qualificadas, quando as encontram. As pessoas mais afetadas pelo efeito Dunning-Kruger exibem maior dificuldade com a metacognição, a capacidade de obter uma visão abrangente sobre o próprio comportamento e habilidades.
Por outro lado, indivíduos com altos níveis de realização (em uma determinada área) sabem que estão acima da média mas não sabem se graduar em relação aos demais. Além de conhecer as meandros do tema em que se especializaram, e saber que há muito mais a ser conhecido, eles tendem a julgar que as outras pessoas conhecem tanto quanto eles.
Em 1980 o extraordinário pensador, conhecedor de ciência e escritor de ficção científica Isaac Asimov fez uma observação que parecia antever os tempos de obscuridade e incerteza que vivemos hoje. Ele se referia aos EUA, mas não é difícil traduzir para o espírito de nossa época e nosso país.
“Existe um culto à ignorância nos Estados Unidos, e sempre houve. A tensão do anti-intelectualismo tem sido um fio constante na nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que democracia significa que ‘a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento“.
O que podemos fazer sobre os nossos olhares enviesados?
Mesmo que você seja uma pessoa de mente muito aberta, é útil reconhecer como funciona o viés de confirmação e o efeito Dunning-Krueger. Todos nós apresentamos tendências e inclinações das quais podemos ou não estar conscientes. Entender esse mecanismo e estar atentos para seu funcionamento, fazendo uma metacognição, ou pensar sobre a cognição, pode ser importante para desenvolvermos uma atitude mais isenta.
Na atualidade enfrentamos um desafio social gigantesco (e global) que consiste na radicalização de posições estimuladas pelas mídias sociais. As notícias hoje são dirigidas para o perfil esperado do consumidor da informação. Seu perfil é analisado pelos algoritmos de inteligência artificial e tudo o que você recebe está filtrado pelo que você (e seus amigos, em certa medida) escolheram ver anteriormente. Uma pessoa que gosta de armas verá notícias e propagandas sobre armas e será dirigido para o encontro com outros apreciadores de armas. Sua preferência por um político ou ideologia social será explorada ao máximo, até você achar que a maioria das pessoas concordam com você. Nesse sentido estamos todos sob um processo de manipulação muito mais poderoso do que já estivemos, em qualquer tempo passado.
Psicólogos sociais identificaram duas tendências interessantes, ambas alimentadas por viés de confirmação, na forma como as pessoas buscam ou interpretam as informações que têm de si mesmas. Auto-verificação é o empenho para reforçar a imagem própria, e auto-reforço é a busca por feedback positivo. Nos experimentos as pessoas tendem a não se envolver ou se lembrar daquelas informações que conflituam com suas autoimagens. Eles se esforçam para diminuir o efeito dessas informações interpretando como não-confiáveis. Efeito oposto ocorre quando recebem um feddback positivo.
Compreender o efeito Dunning-Krueger também é importante, particularmente nos dias de hoje, quando as pessoas se consideram especialistas depois de consultar alguns sites na internet. O estudos dos mecanismos psicológicos do autoengano e de como eles podem ser alvos de metacognição podem ajudar. Manter uma mente aberta e disposição para novos aprendizados é essencial. Você pode pedir a avaliação de terceiros desde que, é claro, encontre pessoas que conheçam o tema onde você deseja ser avaliado. E, finalmente, você deve manter um postura de questionar o que conhece. Uma dose de ceticismo é necessária, junto com o esforço para escapar do viés de confirmação e busca por informações que contradigam seu paradigma mental e suas crenças.
Adendo: O Teste de Wason
Apenas como uma ilustração segue o teste de Wason usado para testar competência de seus sujeitos (as pessoas testadas). No estudo original, feito em 1966, apenas 10% dos testados acertavam a resposta. Quatro cartas estão dispostas em uma mesa à sua frente mostrando A, 7, D e 4.
Você recebe a informação de que cada uma delas contém uma letra em uma face, um dígito na outra. Você deve verificar a seguinte hipótese: todas as cartas que contém uma vogal contém um número par. Quais cartas devem ser levantadas para verificar a hipótese?
Pense um pouco e tente resolver este teste. Só depois olhe a resposta.
A resposta correta é que você só precisa levantar as cartas com A e 7. Deve haver um número par na primeira e uma consoante na segunda, caso contrário a hipótese está incorreta. Os reversos das cartas com D e 4 são irrelevantes, pois nada têm a ver com a hipótese formulada.
Apenas as duas primeiras cartas podem falsear a hipótese. As duas últimas não servem para testá-la. A maioria das pessoas decide olhar as quatro cartas pois, instintivamente procuram por evidências que confirmem sua suposição. Mas um teste mais eficaz consiste em tentar provar que a suposição é falsa. Se não for possível, então ela deve ser verdadeira.
Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.