Este artigo é continuação de Vieses de cognição, mas pode ser lido independentemente.
Viés de Confirmação
— Henry David Thoreau
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância — é a ilusão de conhecimento.”
— Daniel J. Boors
“A ignorância gera confiança com maior frequência que o conhecimento.”
— Charles Darwin, The Descent of Man.
Como vimos em Vieses de Cognição os processos de percepção e pensamento humano são poderosos mas falhos. Psicólogos estudam esses vieses cognitivos e padrões heurísticos para entender essas falhas e sugerir possíveis correções. Um dos efeitos mais importantes é o chamado viés de confirmação que consiste na tendência de se escolher entre as dados captados no mundo externo apenas aqueles que dão sustentação às nossas crenças. O efeito pode se manifestar em uma mera seleção de tópicos para debate até uma completa rejeição do dado conflitante sob forma de não enxergá-lo, de negá-lo com veemência ou de esquecê-lo. Existe também a tendência a interpretar resultados ambíguos como se fossem favoráveis.
A maioria das pessoas acredita que suas crenças e convicções são racionais, obtidas durante muitos anos de análise imparcial das coisas que são apresentadas, das informações disponíveis. O estudo desse viés mostra que isso não ocorre. Ele é perigoso porque impede que reformulemos nossa visão de mundo em face a dados conflitantes, ou nos leva a avaliar incorretamente nossa limitação e crer que conhecemos muito sobre um assunto porque as evidências todas (que percebemos) parecem confirmá-lo. Nesse último aspecto ele reforça o efeito Dunning-Krueger (de que já trataremos). Esse viés aparece em experiências cotidianas simples ou em elaborados experimentos científicos.
O termo Viés de Confirmação foi proposto pelo psicólogo inglês Peter Wason, em um experimento que ele relatou em 1960. Wason realizou uma série de experimentos onde as pessoas eram requisitadas a encontrar padrões, recebendo gradualmente informações sobres esses padrões. Ele foi um dos precursores no estudo das falhas comuns da racionalidade entre humanos. Teste de Wason.
Alguns exemplos
Como mencionado no artigo anterior, existem pessoas que usam sempre a mesma camisa para assistir a uma partida de futebol acreditando que essa atitude facilitará de alguma forma a vitória de seu clube. É claro que essa crença não possui nenhum embasamento lógico, nem pode ser verificada experimentalmente. Mas, ao longo dos meses, seu clube é vitorioso algumas vezes, outras não. A pessoa tende a considerar importante os dias em que o mecanismo obscuro funcionou, e a relevar os momentos em que não funcionou.
Considere que alguém mantém a crença de que pessoas homossexuais são mais criativas do que héteros. Se ela encontra um homossexual altamente criativo esse dado servirá para corroborar e tornar mais forte a sua crença. Provavelmente ela poderá encontrar vários homossexuais com criatividade regular ou até abaixo da média. Mas ela tenderá a ignorar essas observações.
O mecanismo tem uma influência forte em nossa vida social. O debate sobre a liberação de armas para a população, versus uma legislação que restringe a posse de armas, se tornou politicamente envolvente, dificultando muito o atingimento de posições racionais e desapaixonadas. Um defensor do desarmamento tende a buscar, ou a prestar mais atenção, nos casos em que a posse de armas resultou em tragédias e mortes. Alguém do lado oposto coleciona informações sobre eventos onde as armas foram úteis e salvaram vidas.
O viés de confirmação age para aumentar estereótipos e preconceitos. Se você desenvolveu a noção de que pessoas argentinas são arrogantes, cada argentino arrogante que você encontrar reforçará seu preconceito. Os muitos argentinos simpáticos e gentis que você conhecer passarão ignorados e não serão contabilizados em sua contagem de confirmação. O mesmo efeito pode levar um médico a diagnosticar incorretamente um paciente que valorizou mais um sintoma sobre outro, talvez porque já tenha decidido qual é a sua doença.
Muitas vezes, na história da ciência, um fenômeno novo interessante foi observado mas descartado por não ser compreendido. Um pesquisador pode descartar resultados que ele considera absurdos (de acordo com sua crença corrente) julgando que se tratam apenas de erros. Há um problema atual não resolvido com a tendência em não publicar (ou não valorizar) resultados negativos, que poderiam ser instrutivos para a comunidade de pesquisadores.
O efeito de confirmação enviesada tem papel importante nos fenômenos de ilusão de massa. No ano de 1940 em Seattle, EUA, alguns moradores notaram e espalharam a notícia de que estavam encontrando uma quantidade excessiva de perfurações e defeitos nos parabrisas de seus carros, atribuindo o problema a uma causa comum. Proprietários de veículos, naturalmente, verificaram seus próprios parabrisas, muitos deles encontrando defeitos. Muitas teorias surgiram, inclusive a de que os danos eram causados por raios cósmicos. Uma análise da polícia concluiu que 95% dos relatos não passavam de histeria coletiva.
Claro que o mesmo fenômeno age sobre a crença no paranormal e na religiosidade. Um especialista em leitura fria (cold reading), observando as reações das pessoas na platéia despeja uma descrição com extenso conteúdo, quase sempre elogioso. A pessoa que recebe a leitura aceita e recorda os acertos, ignorando os erros do “clarividente”. Um fiel que passou toda a vida rezando para passar em uma prova, para melhorar de uma doença mais ou menos séria, certamente se lembrará das situações em que obteve resultado e “suas preces foram atendidas”.
Recentemente, em 2010, foi descrito o efeito backfire (algo como tiro pela culatra) que é uma radicalização do viés de confirmação e de apego à ideias preconcebidas. Uma pessoa que defende teorias da conspiração, por exemplo a hipótese da terra plana, pode se apegar com mais rigor a suas crenças quando confrontadas com evidências fortes de que está errada. Quando o EUA invadiu o Iraque em 2003 algumas autoridades defendiam que Saddam Russein tinha um grande arsenal de armas de destruição em massa. Incapazes de encontrar essas armas as autoridades se justificaram com espanto sobre a capacidade dos iraquianos esconderem suas armas.
Alguns tópicos em debate, tais como posse de armas e pena de morte, sobre diferenças entra pessoas de grupos étnicos variados ou de gêneros opostos, são muito difíceis de serem resolvidos e um estudo sério à respeito deve envolver uma coleta de muitos dados e análise isenta e rigorosa. É muito difícil que uma pessoa não treinada em pesquisa faça sozinha essa coleta de dados e análise. Por esse motivo é importante entendermos que, embora todos tenham direito a suas opiniões, elas nem sempre são assim tão importantes.
Para a sua consideração: o que você pensa disto?
- Todos têm direito à suas opiniões e também a obrigação de entender que suas opiniões não são extraordinariamente importantes.
- Uma análise do viés de confirmação mostra que ele surge principalmente da dificuldade básica do ser humano em avaliar probabilidade e o efeito do acaso.
Sobrecarga de Informações
Com o advento da Internet seria esperado um efeito importante sobre a educação dos cidadãos e sua capacidade de decidir. Uma pessoa bem intencionada pode hoje procurar e encontrar informações sobre qualquer tópico e com o nível de profundidade desejada. Ela pode analisar abordagens e ideologias diferentes, argumentos pró e contra os seus próprios, realizando daí uma dialética saudável e encontrando uma posição esclarecida. Mas isso não se concretizou por dois motivos principais. Primeiro a quantidade de informação disponível está muito acima da capacidade de processamento das pessoas, principalmente alguém sem treinamento e formação básica. Em seguida verificamos que a qualidade da informação não mantém sempre bons padrões. A internet é um meio bastante democrático onde qualquer um pode disponibilizar seu conhecimento mas também despejar seus preconceitos, erros e desinformação.
Obter um conhecimento sólido em alguma área de estudo sério exige dedicação e sempre uma dose de conhecimentos prévios. Algumas vezes os prerequisitos são eles mesmos complexos e demandam tempo de aprendizado. Nas áreas de exatas a matemática costuma ser um empecilho que nem todos conseguem superar sozinhos. Os excluídos reagem assumindo posições extremas, conspiratórias e negacionistas da ciência.
Alguém que procure se educar pela internet teria necessariamente que buscar um tutor ou cursos bem avaliados, pelo menos para se iniciar no assunto desejado. E o aprendizado sobre as formas de discurso falacioso e de pensamento crítico pode ajudar a estabelecer filtros que eliminem o pensamento enviesado. É o que buscamos fazer aqui, neste site.
Efeito Dunning-Krueger
— David Dunning.
O efeito Dunning-Krueger é outro viés de cognição que faz com que os indivíduos não saibam avaliar o seu nível de expertise em algum assunto. Verifica-se que pessoas que sabem pouco sobre um tópico se consideram especialistas, enquanto os verdadeiros especialistas questionam a profundidade e abrangência de seu conhecimento.
Em 1999 os psicólogos David Dunning e Justin Kruger identificaram o efeito, inicialmente através da consideração do caso de um assaltante de bancos que praticava assaltos com o rosto coberto por suco de limão, na expectativa de estar invisível para as câmeras de segurança. Sua crença se originou do uso de suco de limão como “tinta invisível”. Outros testes confirmaram a existência do efeito, inclusive por meio de experimentos onde pessoas eram treinadas para resolver problemas de lógica. Quanto mais treinadas melhor as pessoas conseguiam avaliar sua competência na solução dos desafios.
Nas palavras de Dunning: “Se você é incompetente você não consegue perceber que é incompetente. As habilidades de que você precisa para encontrar respostas corretas são as mesmas necessárias para reconhecer que elas estão corretas”. Apesar de cometer muitos erros as pessoas julgavam que estavam desempenhando bem nos testes.
Dunning e Kruger realizaram diversos testes com estudantes de graduação em psicologia em níveis introdutórios, testando sua habilidade para avaliarem suas habilidades intelectuais em pensamento lógico, gramática inglesa e senso de humor pessoal. Em seguida os alunos avaliaram suas posições em relação aos colegas de classe. Verificou-se que os melhores alunos não se atribuíram boas classificações bem dentro de sua turma, enquanto os alunos fracos não se viam como mal colocados nesse ranking. Os mais competentes afirmaram não se colocar no topo porque pensaram que as tarefas fáceis (para eles) fossem fáceis para todos.
Em outro experimento Dunning e Kruger pediram a 65 participantes que avaliassem a quanto eram engraçadas diversas piadas. Alguns dos participantes se mostraram péssimos na determinação do que outras pessoas considerariam uma boa piada. No entanto esses mesmos indivíduos se descreveram como bons juízes do humor.
Essa incompetência na autoavaliação pode ter impactos profundos nas crenças individuais, nas decisões e atitudes tomadas. Por exemplo, em testes de qualificação científica os pesquisadores verificaram que mulheres tiveram desempenho idêntico aos de homens, embora se avaliassem como inferiores. Acreditando que homens são mais hábeis no pensamento lógico-científico muitas alunas podem se afastar dos cursos e carreiras científicas ou de competições nessas áreas.
Testes envolvendo a compreensão linguística foram realizados em experimentos que exibiam uma série de termos em áreas como política, biologia, física e geografia. Palavras inventadas eram ocasionalmente inseridas e se perguntava aos entrevistados se eles conheciam os termos. Um dos estudos mostrou que aproximadamente 90% dos entrevistados que afirmaram conhecer um assunto também julgavam compreender as palavras inventadas associadas àquele tema.
O efeito não ocorre apenas em indivíduos com pouca formação, ignorantes no geral ou ingênuas, nem exclusivamente sobre temas técnicos-científicos. A maioria das pessoas possui pontos fracos em sua formação, à respeito de algum assunto. Por mais especializadas que elas possam ser em temas de seu domínio elas poderão exibir esse defeito de cognição. Uma forma relativamente simples de perceber o viés em grupos consiste em reunir pessoas de uma mesma comunidade, com uma base cultural comum e perguntá-los como se qualificam em relação a tópicos de interesse comum. A absoluta maioria delas se classifica como entre os 10 ou 15% dos melhores motoristas, melhores amigos, pessoas mais honestas, trabalhadores mais eficientes, etc, o que é matematicamente impossível.
Dunning e Kruger sugeriram que o efeito é causado por uma “dupla deficiência”. A incapacidade em compreender o assunto em questão também age para dificultar a autoavaliação. Pessoas incompetentes tendem a superestimar a própria competência, ser incapazes de encontrar seus erros e falta de habilidade e não reconhecem a competência de pessoas qualificadas, quando as encontram. As pessoas mais afetadas pelo efeito Dunning-Kruger exibem maior dificuldade com a metacognição, a capacidade de obter uma visão abrangente sobre o próprio comportamento e habilidades.
Por outro lado, indivíduos com altos níveis de realização (em uma determinada área) sabem que estão acima da média mas não sabem se graduar em relação aos demais. Além de conhecer as meandros do tema em que se especializaram, e saber que há muito mais a ser conhecido, eles tendem a julgar que as outras pessoas conhecem tanto quanto eles.
Em 1980 o extraordinário pensador, conhecedor de ciência e escritor de ficção científica Isaac Asimov fez uma observação que parecia antever os tempos de obscuridade e incerteza que vivemos hoje. Ele se referia aos EUA, mas não é difícil traduzir para o espírito de nossa época e nosso país.
O que podemos fazer sobre os nossos olhares enviesados?
Mesmo que você seja uma pessoa de mente muito aberta, é útil reconhecer como funciona o viés de confirmação e o efeito Dunning-Krueger. Todos nós apresentamos tendências e inclinações das quais podemos ou não estar conscientes. Entender esse mecanismo e estar atentos para seu funcionamento, fazendo uma metacognição, ou pensar sobre a cognição, pode ser importante para desenvolvermos uma atitude mais isenta.
Na atualidade enfrentamos um desafio social gigantesco (e global) que consiste na radicalização de posições estimuladas pelas mídias sociais. As notícias hoje são dirigidas para o perfil esperado do consumidor da informação. Seu perfil é analisado pelos algoritmos de inteligência artificial e tudo o que você recebe está filtrado pelo que você (e seus amigos, em certa medida) escolheram ver anteriormente. Uma pessoa que gosta de armas verá notícias e propagandas sobre armas e será dirigido para o encontro com outros apreciadores de armas. Sua preferência por um político ou ideologia social será explorada ao máximo, até você achar que a maioria das pessoas concordam com você. Nesse sentido estamos todos sob um processo de manipulação muito mais poderoso do que já estivemos, em qualquer tempo passado.
Psicólogos sociais identificaram duas tendências interessantes, ambas alimentadas por viés de confirmação, na forma como as pessoas buscam ou interpretam as informações que têm de si mesmas. Auto-verificação é o empenho para reforçar a imagem própria, e auto-reforço é a busca por feedback positivo. Nos experimentos as pessoas tendem a não se envolver ou se lembrar daquelas informações que conflituam com suas autoimagens. Eles se esforçam para diminuir o efeito dessas informações interpretando como não-confiáveis. Efeito oposto ocorre quando recebem um feddback positivo.
Compreender o efeito Dunning-Krueger também é importante, particularmente nos dias de hoje, quando as pessoas se consideram especialistas depois de consultar alguns sites na internet. O estudos dos mecanismos psicológicos do autoengano e de como eles podem ser alvos de metacognição podem ajudar. Manter uma mente aberta e disposição para novos aprendizados é essencial. Você pode pedir a avaliação de terceiros desde que, é claro, encontre pessoas que conheçam o tema onde você deseja ser avaliado. E, finalmente, você deve manter um postura de questionar o que conhece. Uma dose de ceticismo é necessária, junto com o esforço para escapar do viés de confirmação e busca por informações que contradigam seu paradigma mental e suas crenças.
Adendo: O Teste de Wason
Apenas como uma ilustração segue o teste de Wason usado para testar competência de seus sujeitos (as pessoas testadas). No estudo original, feito em 1966, apenas 10% dos testados acertavam a resposta. Quatro cartas estão dispostas em uma mesa à sua frente mostrando A
, 7
, D
e 4
.
Você recebe a informação de que cada uma delas contém uma letra em uma face, um dígito na outra. Você deve verificar a seguinte hipótese: todas as cartas que contém uma vogal contém um número par. Quais cartas devem ser levantadas para verificar a hipótese?
Pense um pouco e tente resolver este teste. Só depois olhe a resposta.
Bibliografia
- Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
- Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
- verywell mind; What is a Confirmation Bias?, acessado em maio de 2020.
- verywell mind; An overview of the Dunning-Kruger effect, acessado em maio de 2020.
- ThoughCo.; What is Confirmation Bias, , acessado em maio de 2020.
- Wikipedia; Confirmation bias, acessado em maio de 2020.
- Wikipedia; Dunning Kruger Effect, acessado em maio de 2020.