Cromer Quin
Cromer Quin, era este o nome do homem cujos restos mortais estavam a bordo do Mayflower, prestes a serem atirados ao espaço quando o resto da tripulação paralisou suas atividades e morreu. Ele era um filho da sociedade rebelde, o grupo que se desligou dos meckos durante a ocupação de Marte, no final da segunda era.
Dentro de seu caixão Cromer segurou em suas mãos ressecadas, por muitos anos, uma cópia de seu livro favorito, a saga de Jiseph e Mari Quam, o casal fundador da comunidade Odisseia. Ele continha a história da ruptura, relatada de modo superlativo e floreado que ele sabia ser exagerado para construir um mito. O texto era o fundamento do orgulho daquela comunidade que via nesse ato de rebeldia uma forma de encontrar significado em sua existência sofrida. Jiseph e Mari executaram um plano de longa duração, construindo uma extensa rede de apoio entre aqueles que, como eles, acreditavam que os meckos poderiam ter gerado um número suficiente de bebes humanos para impedir a extinção de seu grupo, mas não o fizeram. Eles foram surrupiando aos poucos equipamento das oficinas e laboratórios de Marte para construir instalações habitáveis em um ponto distante de Marte e criar seu próprio centro de reprodução humana. O casal e alguns correligionários abandonaram as instalações onde viviam e se transferiram para a cidadela rebelde. De lá eles prepararam um ataque contra seus opressores.
A invasão da cidade dos meckos, sob o comando do casal fundador, foi o feito mais heróico executado por aquelas pessoas. Eles se aproveitaram da atitude passiva dos meckos que se recusavam a matar humanos e foram, por isso, dizimados rapidamente. Os poucos que restaram vivos após o primeiro ataque fugiu do planeta se dirigindo para local ignorado levando alguns poucos humanos leais. Só mais tarde se descobriu que eles se transferiam para Europa, o satélite de Júpiter, de onde pretendiam lançar um ataque surpresa, em retaliação contra o grupo separatista. De acordo com a lenda os vencedores comemoraram por muitos dias a tomada das instalações marcianas, apesar do rancor por não terem podido exterminar por completo a ameaça dos meckos.
A comunidade Odisseia floresceu com os bebes gerados em incubadeiras artificiais nos primeiros tempos e, mais tarde, com partos naturais obtidos em ambiente controlado. Mas muito cedo perceberam que o conteúdo genético do grupo se degenerava aos poucos e que eles não poderiam contar com uma descendência sadia por muitas gerações futuras. Para completar o mal estar eles descobriram que os meckos de Europa haviam partido mais uma vez para a Terra onde pretendiam implantar mais uma comunidade humana. Então eles criaram o grande plano, um projeto para executar uma guerra na qual eles mesmos só participariam indiretamente. Para isso construiram grandes naves de combate, veículos poderosos que os próprios construtores jamais veriam em atividade. Quando as naves ficaram prontas ela foram escondidas em um um abrigo gigantesco, construído no subterrâneo na base do Monte Olimpo, dissimulado de forma a não ser visível por observadores distantes. Conscientes de que não existiam, naquele momento, humanos com capacitação para operar máquinas sofisticadas eles inventaram uma forma engenhosa para entregar uma mensagem no futuro. Uma máquina foi enviada para Terra. Ali ela se afundaria no solo do planeta e hibernaria, aguardando até que existissem humanos descontentes com a dominação dos meckos. Quando chegasse o momento ela deveria se ativar e oferecer a eles ajuda sob forma de mapas detalhados da localização das armas em Marte e farta documentação sobre a sua utilização. Seu objetivo era iniciar a rebelião para livrar os humanos da tirania dos seres artificiais.
A primeira das memórias resgatadas de Cromer, em ordem de antiguidade, não era de uma experiência direta sua mas de relatos, feitos por sua mãe, de um passeio feito em família até o monte Olimpo, em Marte. Segundo o relato seu pai recebera a missão de conferir as instalações militares na base do monte e resolvera levar junta a família, para um passeio. Afinal aquela era uma oportunidade única de visitar o maior vulcão do sistema solar. Apesar de extinto o vulcão era impressionante, com suas partes elevadas a mais de vinte quilômetros acima do nível básico do planeta. Na época a comunidade humana já minguava, dizimada pela carência de nutrientes e da fraca absorção de luz solar. Os pais estavam preocupados e não conseguiram esconder isso da criança que cresceu assistindo à decadência de seu povo e à morte de parentes e amigos que iam desaparecendo um a um até que um grupo muito reduzido restou sob o céu vermelho do planeta. Foi também neste período que ele se comprometera a lutar contra os usurpadores da vida humana. Agora, anos depois que o último mecko não transformado fora desligado, as famílias tinham dificuldades para sobreviver sozinhas, sem o auxílio deles. Mas, mesmo assim, ninguém estava arrependido.
A família demorou para atingir as partes mais altas do Olimpo. Com sua base ampla o monte não apresentava áreas íngremes de difícil escalada mas as distâncias a serem percorridas eram formidáveis para o transportador lento que usavam. Por isso a família decidiu encarar todo o percurso como um passeio. Eles se sentaram na plataforma de observação na parte superior do veículo de onde podiam ver todo o ambiente ao redor, enquanto faziam um lanche com guloseimas trazidas de casa. Do alto do monte, Cromer avistou Júpiter, aquele que seria seu destino final. Mas, criança pequena que era, ele não teve medo do espaço. Ou, pelo menos, foi o que sua mãe relatara.
Mesmo assistindo a decadência de sua comunidade Cromer considerava que vivia em um momento áureo da existência de seu povo, desde que seus antepassados tomaram o poder no que restou da colônia Odisseia. Nascido em uma comunidade que padecia de baixa autoestima crônica por considerar pouco nobre a própria origem em um ambiente repleto de limitações, e com final melancólico previsível, sua maior mágoa estava na ausência de uma meta ou de um futuro para a comunidade. A manutenção da vida em Odisseia se tornara difícil para aqueles indivíduos submetidos a degradação óssea causada pela baixa gravidade local, ao frio e baixa intensidade da luz solar. Além destes desafios ainda existia a alta incidência de partículas cósmicas capazes de atingir o solo marciano, um sério perigo para o DNA humano.
Segundo a história, orgulhosamente relembrada pelos membros mais idosos da comunidade, quando os humanos de Odisseia tomaram o poder na comunidade marciana eles conseguiram aprisionar alguns meckos que não tiveram tempo para embarcar nas naves que fugiam do ataque. Mais tarde eles aprenderam a tecnologia para fabricar criaturas semelhantes a meckos, destituídas das partes mais sofisticadas e transformadas em armas mortíferas que seriam empregadas no momento correto. A última missão consistia em transferir estas armas para o seu destino. O grande projeto de interferir em uma humanidade futura se tornou motivação suficiente para que eles levassem o plano até o final, apesar do alto custo. Cromer, embora soubesse que não estava de fato qualificado para a missão até Europa, se
apresentou como voluntário. Para sua surpresa, por causa da falta de pilotos sadios e capacitados, foi incluído na tripulação.
Quando as posições planetárias foram favoráveis o grupo de guerreiros de Odisseia partiu, a bordo da nave Mayflower, para aplicar em Europa o último golpe de sua estratégia. A arma deveria ser aplicada nos oceanos do satélite onde ficaria inativa por algum tempo, absorvendo energia e se preparando para o ataque final. Ao ser disparada ela deveria destruir todos os seres orgânicos ou estruturas complexas que estivessem na superfície ou nos mares, para inviabilizar novas tentativas de meckos de colonização dos humanos.
A viagem até Júpiter foi difícil. Muitos companheiros morreram no percurso e os que restaram se esforçaram para resistir até o momento final. Percebendo que não teriam tempo de vida suficiente para concluir a missão eles decidiriam entrar em processo de hibernação. No entanto não esperavam que, deixada aos cuidados do piloto automático, a nave demorasse mais tempo que o previsto para alcançar seu destino. Quando saíram de seus estados de suspensão encontraram sua nave ainda muito afastada do destino e não conseguiram determinar, com os parcos recursos que ainda funcionavam à bordo, quanto tempo estiveram hibernados. Sem ter outras alternativas eles despejaram em Europa o conteúdo dos grandes contêineres que transportavam.
Apesar de estar com a saúde debilitada Cromer participou da operação de despejar no mar de Europa a carga que, como acreditavam, deveria aplicar um golpe mortal sobre as operações dos meckos. Finalizada a descarga do armamento eles começaram a dispor dos diversos caixões com os corpos daqueles que não resistiram até o final. Para a sua própria cerimônia Cromer planejou uma operação simples procurando não dar trabalho para os que ainda restavam com vida. Ele trouxe a urna funerária até a capela mortuária e executou, sozinho, os rituais de despedida, depositando seus pertences favoritos dentro dela. Dentro da urna ele resistiu por algumas horas e morreu solitário, satisfeito por ter cumprido até o final a sua missão. Restava aos companheiros da tripulação apenas ejetar a urna para o espaço. Mas nem mesmo esta cerimônia simplificada foi concluída. Quando seu corpo foi encontrado na capela, próxima à escotilha de ejeção, todos os demais membros do grupo estavam muito fracos e não conseguiram cumprir as obrigações de disposição de corpos. Por isso resolveram que seria lícito, sob as circunstâncias extremas do momento, abandonar toda e qualquer preocupação com os rituais. Eles se deitaram sob o piso e esperaram que a vida se extinguisse em seus corpos enfraquecidos.
A morte do último tripulante da Mayflower foi também o fim de uma civilização. Eles eram os orgulhosos humanos rebelados de Marte, que se afastaram dos meckos, os atacaram e derrotaram movidos pelo ideal de construir uma sociedade altiva e independente. E que agora procuravam se eternizar com uma obra que seria lembrada. Seu resultado deveria florescer na Terra, o mundo de origem onde eles nunca habitaram. Além de promover a dissensão dentro da comunidade terrestre eles pretenderam extinguir os meckos instalados em Europa, bem como toda a sua engrenagem de montagem de futuras povoações. Mas não previram que a Mayflower atingiria seu alvo com tamanho atraso, quando meckos já haviam partido de volta para a Terra, levando as sementes de uma nova civilização.
A nave continuou em funcionamento por muitos anos executando uma órbita excêntrica em torno de Júpiter, ricocheteando entre as atrações exercidas pelos satélites. Quando o combustível se esgotou as
baterias solares mantiveram ativo um campo gravitacional fraco até que ela foi interceptada pela Orion.