Universo e Multiverso

De rerum natura
Página de abertura de cópia manuscrita em 1483 do De Rerum Natura

A palavra universo é derivada do Latim universum, originada da contração poética Unvorsum usada por Lucrécio em seu livro De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Ela combina o prefixo uni (um) com vorsum que significa “o que se moveu, girou ou se alterou”. O imagem do todo se movendo como unidade em círculos tem raiz no pensamento grego antigo que visualizava as estrelas e objetos celestes fixos sobre esferas girando em torno do observador humano.

A descrição moderna do universo e sua história é baseada principalmente na Teoria da Relatividade Geral (TRG) de Einstein que descreve a gravitação por meio da curvatura do espaço-tempo. Em escalas cósmicas a gravitação é a única força relevante e a TRG é a ferramenta apropriada para descrever o universo como um todo. Sob a restrição de algumas hipóteses básicas, tais como a de ser a matéria uniformemente distribuída pelo espaço em grande escala, a teoria indica que o universo não pode ser estático – ele deve estar se contraindo ou expandindo. A verificação observacional desta afirmação se deu com a descoberta de Edwin Hubble, em 1029, de que todas as galáxias, exceto aquelas que estão muito próximas da nossa, estão se afastando e a velocidade de afastamento é proporcional à sua distância. As medidas da velocidade de afastamento permitem calcular a quanto tempo toda a matéria e energia estavam condensadas em um volume muito pequeno, denominado de Big Bang ou Grande Explosão, o que ocorreu a aproximadamente 14 bilhões de anos. As hipóteses iniciais, a distribuição uniforme da matéria por exemplo, são verificadas com alto grau de precisão e o modelo ganhou o título de Modelo Padrão por explicar grande número de características hoje observadas.

Embora eficiente para explicar muitas coisas observadas ele não é completo. Não é possível, por exemplo, explicar porque a matéria, a energia e a temperatura estão distribuídas de forma tão uniforme pelo espaço. Não existe uma explicação natural do porque a explosão ocorreu em um determinado momento e nem de onde vem toda a energia necessária para provocar o surgimento de tudo o que vemos hoje. Além disto, entre outros problemas, não temos indicações do motivo de serem as constantes da física finamente ajustadas como são, o suficiente para permitir o surgimento da matéria como a conhecemos e a evolução hoje verificada.

Para descrever o conteúdo material deste universo é necessário lançar mão das teorias existentes da matéria, em particular a teoria quântica das partículas e campos. Estes campos serviram para explicar uma expansão muito rápida em um universo jovem (dentro do primeiro segundo após o Big Bang), no que consiste o modelo inflacionário. A rápida expansão tem o efeito de explicar a homogeneidade, além de estar em plena conformidade com a descrição de como pequenas ondulações ou desvios desta homogeneidade deram origem às grandes estruturas, galáxias e aglomerados. A energia escura foi adicionada mais tarde, sem uma motivação ou esclarecimento teórico mais profundo, mas necessária para explicar a aceleração hoje observada.

Apesar de que, por definição, a palavra Universo expresse um conceito que engloba todas as coisas que existem, em algumas situações surgem na física propostas de inclusão da existência de partes do Universo ou mesmo de outros Universos que poderiam não estão em conexão direta com a nossa realidade. Muitas destas propostas visam corrigir os defeitos do modelo cosmológico padrão. Observe, entretanto, que o conceito de multiversos é altamente especulativo e não deve ser tomado como parte integrante das teorias testadas e aceitas pela comunidade científica.

É importante compreender que a ciência lida com objetos que podem ser verificados por meio da experimentação ou da observação. Qualquer afirmação, esteja ela correta ou não, que não possa ser refutada ou confirmada permanece fora da fronteira do que se pode considerar científico. Desta forma a afirmação de que existem universos paralelos que não interferem em nada com o universo observável constitui uma proposta metafísica ou filosófica até que a sua verificação possa ser efetuada. Esta é a posição de muitos pesquisadores atuais, entre eles o físico inglês Paul Davies, atualmente professor na Universidade do Arizona, que afirmou: “Explicações radicais sobre o multiverso são uma reminiscência de discussões teológicas”.

(1) Como todo sinal ou interação entre partículas se dá, no máximo, com a velocidade finita da luz, dois objetos podem estar separados de tal forma que um não poderá jamais interagir com o outro, causando nele qualquer alteração. Estas são as chamadas separações tipo-espaço. Nada do que ocorre em uma região deste tipo pode ser percebido por nós.

No entanto, mesmo modelos do universo bastante conservadores podem incluir regiões desconectadas umas das outras. Até mesmo em um universo simples que satisfaz apenas à Relatividade Restrita, um mundo sem curvaturas nem dimensões extraordinárias, existem regiões causalmente desconectadas1. O cosmólogo sueco Max Tegmark, professor do Instituto de Tecnologia de Massachussets, preparou uma classificação de teorias que incluem universos com partes ou setores fora do alcance de nosso universo observável. Fazem parte deste grupo de hipóteses os modelos inflacionários onde pequenas regiões do espaço poderiam entrar em uma rápida expansão causada por campos quânticos locais formando novos universos como bolhas desconectadas do universo matriz. Estas bolhas possuem interesse teórico por permitirem a possibilidade da existência de muitos universos, cada um contendo valores diferentes para as diversas constantes cujos valores não podem ser ainda explicadas pela física. Entre muitos universos o nosso seria aquele onde as constantes são exatamente ajustadas para permitir surgimento da matéria e sua evolução em elementos de números atômicos crescentes, depois para o surgimento da vida e, finalmente, da consciência.

Outra possibilidade de multiversos é encontrada em modelos cíclicos, com a possibilidade de nosso universo interromper sua expansão e entrar em fase de contração, seguida de colapso e uma eventual nova explosão, em ciclos eternos. Este modelo esbarra na verificação recente de que o universo atual não está em processo de desaceleração e sim de expansão acelerada.

Um multiverso diferente mas igualmente intrigante é sugerido por uma curiosa interpretação da física quântica chamada interpretação de muitos mundos, uma das diversas tentativas de se encontrar a explicação por trás do mecanismo probabilístico no mundo quântico. Resumidamente este modelo sugere que os vários resultados possíveis de um experimento ocorrem em mundos diferentes. Um exemplo pode esclarecer a questão: o spin de um elétron é uma propriedade quântica que ocorre em dois estados, geralmente denominados para baixo e para cima (up e down). Antes de medir um spin não se sabe em que estado ele se encontra. Se uma medida é realizada verificamos que ele se encontra em um dos estados, digamos, com o spin para cima. Na interpretação de muitos mundos existe um outro universo onde o elétron está com o spin para baixo e a nossa medida teria provocado a escolha por um dos mundos possíveis.

Neil Turok

O conceito de multiverso ganhou um impulso importante na década de 2000 com a proposta de Paul Steinhardt, professor de astrofísica na Universidade de Princeton, e Neil Turok, professor de física matemática em Cambridge. Steinhardt e Turok buscavam explicar as características atuais observadas, principalmente a homogeneidade e a ação de energia e matéria escuras. Eles sugeriram um universo eterno e cíclico sem a necessidade da contração e colapso do universo atual.
O modelo matemático proposto é complexo mas fornece imagens interessantes. O universo seria composto por duas folhas paralelas e infinitas separadas por uma distância microscópica. Em uma das folhas está o espaço-tempo onde vivemos. A separação entre elas se dá em uma dimensão extra que não podemos ver nem testar experimentalmente com a tecnologia hoje existente. As folhas estão se expandindo em acordo com o modelo padrão. A temperatura ou densidade de matéria nunca seriam infinitas como sugere o modelo padrão. Em cada um dos ciclos o universo se inicia com uma explosão, com alta densidade de matéria-radiação e atravessa um período de expansão e resfriamento similares ao que ocorre no modelo padrão e que explica muitas características hoje observadas. Este modelo substitui a energia escura e o campo inflacionário por um único campo que oscila de forma a provocar a expansão e, mais tarde, sua desaceleração. Por isso ele requer menor quantidade de hipóteses, o que é visto como algo positivo pela mentalidade científica. Ele combina conceitos físicos bem estabelecidos com outros que são teoricamente bem aceitos mas ainda não verificados na observação, tais como a teoria das cordas e membranas, ambas destinadas a solucionar o problema da unificação entre o campo gravitacional e os demais campos.

(2) A decaimento da energia armazenada em um campo sob forma de matéria ou radiação é previsto na Relatividade Especial, e é dada pela equação E = mc2.

Quando o universo atinge aproximadamente a idade atual, 14 bilhões de anos após a explosão, a expansão é acelerada. Isto resolveria um dos principais problemas do modelo padrão onde um universo constituído apenas de matéria comum só poderia se desacelerar, uma vez que a gravitação é apenas atrativa e cada galáxia atrai todas as demais, contrariamente ao que hoje se observa. Trilhões de anos mais tarde o universo com o mesmo conteúdo de matéria-energia tem um volume muito grande e, por isto, baixa densidade e temperatura, e a expansão é interrompida. Neste ponto, segundo o modelo, um campo de energia que existe por todo o universo decai2 sob a forma de matéria e radiação, dando origem a um novo big-bang e um novo ciclo dai decorrente. As folhas interromperão sua expansão e começarão a se aproximar uma da outra com o colapso da quinta dimensão (que começará a se encolher). Elas entram em colisão de forma não completamente homogênea, uma vez que as oscilações quânticas provocam ondulações no espaço, e se repelirão, como se rebatidas ou quicadas, um efeito também quântico. O impacto da colisão transferirá sua energia para preencher mais uma vez o espaço com a matéria-energia quente e densa, em um novo Big Bang. A explosão provoca a retomada da expansão e um novo ciclo de resfriamento, aglutinação de estrelas e galáxias e formação de um novo universo similar ao atual.

O modelo Steinhardt e Turok

Não é fácil compreender o significado da expansão do espaço-tempo. Se for infinito ele não fica maior mas a separação entre pontos deste espaço é crescente, o que é percebido pelo afastamento das galáxias. As folhas ou membranas não são universos paralelos, como propõem outro grupo de teorias. Elas são partes de um mesmo universo, uma delas contendo a matéria comum que conhecemos e a outra com conteúdo que permanece, por enquanto, desconhecido. As duas folhas interagem apenas por meio da gravidade, objetos com massa em uma folha atraindo a matéria que se encontra na outra, algo que poderá vir a ser uma explicação para a presença da matéria escura, cujo efeito sobre a matéria comum é observado no universo atual e modifica o movimento dos objetos celestes.

Alguns pesquisadores consideram este modelo um avanço por ele fornecer respostas, ou pelo menos indicações de respostas, para problemas não resolvidos no modelo padrão. No panorama atual não há qualquer indicação sobre o que existia antes da Grande Explosão, sobre o que deu origem à matéria hoje observada, ou porque e como o campo primordial entrou em relaxamento cedendo sua energia para a formação da matéria. Além disto o modelo reproduz corretamente a descrição padrão no intervalo de tempo entre o Big Bang e o presente. Mas ainda não se pode concluir que suas demais previsões estejam corretas. Ele permanece como uma conjectura bastante especulativa, mas uma possibilidade que pode um dia ser comprovada ou levar à novos paradigmas do entendimento.

(3) Para uma diferenciação entre modelos, teorias especulativas e teorias comprovadas leia Teoria, Hipótese e Modelo em Física.

Historicamente os grandes avanços proporcionados pelo sucesso teórico de Einstein levaram muito estudiosos a investir tempo e esforço em propostas especulativas, muitas vezes distanciadas do observado e que permanecem muitos anos sem serem verificadas ou descartadas. Infelizmente a divulgação científica em nosso país é deficiente e notícias sobre modelos especulativos, como o de Turok, acabam por criar confusão para aqueles que buscam se informar sobre ciência moderna. A especulação é válida, interessante e pode ensinar muito sobre o avanço científico. No entanto, divulgadores e leitores devem manter em mente uma clara distinção entre as abordagens especulativas e o conteúdo científico verificado e aceito3.

Resta aos proponentes deste modelo aperfeiçoá-lo e extrair dele novos comportamentos que possam ser observados e que não são explicados por nenhuma das demais teorias candidatas. O fato de que existe um modelo matemático internamente consistente é uma boa motivação para que novos pesquisadores se dediquem a aprofundar o entendimento deste modelo, refazendo alguns aspectos e explorando suas consequências. No entanto a consistência lógica e matemática não é suficiente. Ela deve ser extendida para o domínio da verificação empírica antes que esta seja considerada uma teoria física aceita. E aos pesquisadores motivados e entusiasmados com seus próprios projetos de deve pedir que saibam diferenciar, para o grande público, a especulação da teoria aceita.

O modelo ou hipóteses aqui descritos são, até o momento, especulativos, tentativas de se explicar diversos problemas no modelo do Big Bang padrão.

Para uma diferenciação entre modelos, teorias especulativas e teorias comprovadas e aceitas leia: Teoria, Hipótese e Modelo em Física. Leia mais sobre cosmologia.

É importante compreender que a ciência lida com objetos que podem ser verificados por meio da experimentação ou da observação. Devemos acreditar na ciência?

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