“Há uma teoria afirmando que, se qualquer pessoa um dia descobrir o que é o universo e porque ele está aqui, ele vai imediatamente desaparecer e ser substituído por algo ainda mais bizarro e inexplicável. Existe também outra teoria afirmando que isso já aconteceu.
— Douglas Adams, O Guia do Mochileiro das Galáxias.
Em artigos anteriores vimos que nossos mecanismos de percepção, incluindo os órgãos sensórios, nosso processamento cerebral das informações obtidas e memória são sofisticados e eficientes mas não infalíveis. Resumimos essas afirmativas como:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Estas características humanas têm grande impacto quando se tenta fazer pesquisa científica e por isso a questão é tratada com bastante cuidado. Nossos sentidos são ampliados por meio de receptores mais gerais ou mais potentes, tais como telescópios que permitem colher uma quantidade maior de luz e com maior resolução, mostrando objetos que estão longe, microscópios para ver de perto coisas pequenas, aceleradores de partículas para ver coisas ainda menores ou termômetros para aferição rigorosa e independente de quem lê a temperatura. Construímos aparelhos para ver o universo na faixa de ondas de rádio, os radiotelescópios, ou sensores de infravermelho para ver no escuro. A interpretação dos dados é a parte mais delicada. A informação obtida é analisada com base em modelos matemáticos que estão sendo testados, muitas vezes usando computadores. Nessa análise se busca diminuir o efeito dos vieses de cognição por meio da repetição dos experimentos, da verificação crítica da comunidade científica e tratamento estatístico de dados. A memória ou registro dos dados conta com uma linguagem de precisão, onde termos devem ser bem definidos, por meio de artigos, livros e, nos últimos tempos, os bancos de dados eletrônicos.
Em termos pessoais deveria se supor que a busca por uma visão clara (ou tão clara quanto possível) do mundo, de nosso relacionamento com ele e de nossas relações interpessoais deveria ser uma prioridade para todos. Mas, por diversos motivos, isso não ocorre. A maioria das pessoas vive envolta em uma nuvem de crenças obscuras, de informações distorcidas sobre ciência e sociedade e de má vontade para quebrar o ciclo vicioso da desinformação.
Todas essas coisas levam a destacar a necessidade de uma postura cética para processar o conteúdo que chega até nós. Essa postura faz maior diferença quando se trata da educação. Crianças são ingênuas e acreditam no que é dito. Antes de terem a menor possibilidade de discriminação lhes é ensinado qual Deus é o verdadeiro, quais preconceitos são bem vindos na sociedade em que vivem, quais devem ser suprimidos ou ocultados da convivência social. Elas vêm a discriminação de raças, por exemplo, e se tornam racistas sem que nenhum adulto tenha explicitamente ensinado isso. Elas embarcam sem questionar em uma sociedade que cultua líderes, autoridades religiosas e celebridades. E elas assistem televisão e seus programas de alta audiência que exploração a credulidade e superstição.
Em um experimento em psicologia social uma pessoa entra em uma sala de espera repleta de pessoas que se levantam toda a vez que soa um alarme. Sem saber que seus companheiros de espera são atores agindo sob combinação prévia com os experimentadores, essa pessoa estranha o fato mas passa a se levantar também. Aos poucos as pessoas vão sendo substituídas até que nenhum dos atores esteja mais na sala. Porém os que restam continuam se levantando, mesmo que, para eles, tal ato não tenha nenhum significado.
A exploração da credulidade não é inócua. Pelo contrário ela causa danos e pode levar à morte. No entanto, em tempos de veiculação rápida das ideias e das descobertas, vemos também a proliferação das pseudociências, das curas paranormais ou exploração da fé.
Considere, por exemplo, a astrologia. Ela faz afirmações concretas sobre as pessoas, sobre suas personalidades, sobre as afinidades em relacionamentos e até sobre eventos futuros na vida de um indivíduo. Uma pergunta deveria ser óbvia: alguém testou as predições astrológicas? A resposta é: claro que sim. E nenhuma correlação foi encontrada entre as afirmações de astrólogos e o que é observado. Em primeiro lugar não existe nenhum mecanismo conhecido, nenhuma interação descrita pela ciência que justifique o efeito da posição de planetas na formação e condução em vida de um ser humano. Nenhuma das proposições apresentadas pelos praticantes para justificar o mecanismo de funcionamento da astrologia pode ser testada ou refutada.
O teste é bastante difícil uma vez que nem os próprios astrólogos convergem entre si em suas afirmações. Mas, no que existe de concreto na predição dos astros, como incidência de doenças ou preferência por uma profissão por grupos de pessoas do mesmo signo, falham quando cotejada com a informação externa.
Também o estudo da parapsicologia, apesar das inúmeras afirmações em contrário, não mostrou evidências de fenômenos paranormais. Apesar disso vemos a incessante divulgação de curas miraculosas, de médiuns, adivinhos, do poder da oração. Em tempos de pandemia por Covid-19 (quando esse texto está sendo escrito) existem pastores vendendo a cura por meio de orações, feijões, água e óleos “consagrados”.
A absoluta maioria das pessoas no Brasil em 2020 acredita no poder da oração. Esse poder foi testado? Mais uma vez, claro que sim. Não se pode negar que oração e meditação podem trazer tranquilidade, reduzir o estresse, diminuir a pressão sanguínea da pessoa que ora e aumentar seu poder de autocontrole. De fato, uma grande área de pesquisa se desenvolve sobre os efeitos da mente sobre o corpo, do poder de nosso psiquismo sobre nossa saúde e bem estar. Isso é muito diferente de afirmar que um grupo de fiéis rezando para pessoas doentes pode controlar em qualquer nível a saúde dessa pessoas. Vários testes foram realizados, alguns “meta-estudos” (análise retroativa de dados anteriormente obtidos), nenhum deles sustentando a afirmação de que as preces foram eficazes. Em um deles três grupos de pessoas hospitalizadas foram acompanhadas pelos pesquisadores. O primeiro grupo recebeu orações de voluntários, pessoas de fé, e foi informado disso. O segundo grupo recebeu orações mas não foi informado. O terceiro grupo não recebeu nenhuma oração. Nenhuma diferença estatisticamente sólida foi observada. A análise desses estudos é difícil e em alguns casos se relatou “pequena margem de verificação de sucesso”. Por outro lado houve casos em que pessoas que receberam orações pioraram seu estado, quando comparadas com as demais.
“Consiga um bilhão de cristãos rezando por uma única pessoa amputada. Recomende a elas que peçam a Deus que reconstrua o membro que está faltando. Afinal, isso acontece com salamandras todos os dias, e nem necessita de orações; portanto está dentro das capacidades de Deus. Acho curioso que as pessoas de fé só rezam para pedir graças que seriam alcançadas mesmo sem nenhuma oração.”
— Sam Harris, The God Debate, RichardDawkins.net.
Em todos os estudos de eficácia de intervenções na saúde de uma pessoa deve ser considerado o efeito placebo. Se um curandeiro entra no quarto de um paciente, principalmente alguém que tenha por ele respeito, conversa com ele carinhosamente e se mostra interessado em sua cura, as chances de que ocorra uma de melhora, ainda que temporária, são significativas. Por isso todos os tipos de tratamento, inclusive medicamentosos, devem ser comparados com o efeito de um placebo.
O pior efeito das pseudosciências é encontrado nos tratamentos médicos alternativos, nas curas por medicamentos não testados, nos remédios homeopáticos, nos curandeiros e suas “terapias espirituais”, imposição de mãos tipo reiki, etc. Mesmo que a maioria desses tratamentos seja inócua e sem efeitos colaterais, eles tendem a fazer com que os pacientes abandonem os tratamentos médicos. Depositar confiança em um medicamento ou prática médica sem teste é um risco muito grande.
Remédios homeopáticos devem receber uma atenção especial. Aparentemente inofensiva a indústria farmacêutica e de tratamentos “alternativos” envolvem valores financeiros altos e escapam da regulamentação ordinária válida para o setor. Medicamentos homeopáticos são feitos de plantas, minerais e substâncias químicas em concentrações altamente diluídas em água ou em álcool, de forma que, para algumas “dinamizações” (níveis de diluição) nenhum átomo da substância original permanece na substância manipulada. Quanto maior a “dinamização de uma fórmula homeopática menor a quantidade de substância original permanece no medicamento. Novamente, não existem mecanismos conhecidos pela ciência para explicar que efeito residual pode permanecer na água ou álcool usados. Sem efeito testável o uso da homeopatia se resume à crença de quem se utiliza deles.
O caso Emily Rosa
Em 1998 Emily Rosa, uma garota com 9 anos de idade, se tornou a pessoa mais jovem a publicar um artigo em um periódico sério revisado por partes, o Journal of the American Medical Association. Emily assistiu vídeos onde praticantes do toque terapéutico se declaravam capazes de perceber “um campo de energia” emanado por seus pacientes. O toque terapéutico é uma técnica em que seus praticantes, sentindo o efeito da energia das pessoas, inclusive falhas nesse campo, se diziam capazes de reparar a saúde desses pacientes reforçando seus campos energéticos.A garota ficou curiosa e determinada a testar se 21 praticantes voluntários da técnica eram realmente capazes de perceber tal campo. Ela pediu que se sentassem em um mesa atrás de biombos. Aleatoriamente Emily colocou sua mão sobre uma das mãos dos praticantes, pedindo que eles identificassem que mão era aquela. Cada uma das pessoas testadas passou por 10 tentativas mas não obteve sucesso em mais de 4.4 vezes, na média. Os acertos não passavam daqueles obtidos por mero acaso. A menina havia mostrado que os praticantes, por mais sérios que fossem em suas afirmações, não eram capazes de detectar campos energéticos em sua mão.
Ceticismo e Religião
“E Ele é Quem desenleou os dois mares: este é doce, sápido, e aquele é salso, amargo. E fez, entre ambos, uma barreira e terminante proibição de sua mescla.”
— Alcorão 25:53
Há no Alcorão a afirmação de que a água salgada do mar e a água doce dos rios não se misturam. A afirmação vem sendo repetida há séculos, sem que a maioria das pessoas façam um teste simples. Essa afirmação resiste ao teste de um experimento?
É claro que uma sociedade livre deve preservar o direito das pessoas de crerem no que quiserem e de realizarem os cultos de sua escolha, desde que não firam as leis do grupo maior. Mas a interação entre grupos de cultos e sociedade pode ficar bastante complicada. Como deve se portar um médico que se vê impedido de fazer uma transfusão de sangue essencial para a preservação da vida de uma criança cujos pais são Testemunhas de Jeová e não autorizam a transfusão? Como deve agir o estado que se vê impedido de completar um programa de vacinação de crianças por recusa de pais apoiados em motivos religiosos ou não, quando a falta de vacinação de alguns põe em risco a sociedade toda? Ou quando uma política de redução da natalidade se faz necessário e é bloqueada por iniciativa de grupos religiosos?
Vivemos em uma cultura que valoriza, por princípio, a fé das pessoas. Em certo sentido a fé pode ser vista como algo construtivo e bom, como a esperança de que poderemos superar os problemas atuais, individuais ou do grupo, e construir tempos melhores. Mas é praxe chamar de fé a confiança em coisas que não podem ser provadas ou verificadas. Não é necessário perguntar se alguém tem fé nas leis de Newton ou na Teoria da Relatividade de Einstein pois elas podem ser verificadas. Ou você conhece essas teorias ou as ignora. Fé é a confiança implícita, muitas vezes inconsciente, em instruções não processadas pelo senso crítico.
A fé pode levar a conflitos e incoerências internas. Uma pessoa que estuda a Bíblia e crê no relato literal do Gênesis e, simultaneamente, conhece a Teoria da Evolução e sabe como ela é testada e confirmada por um grande número de observações, tende a construir em sua mente a imagem de um universo constituído de setores disjuntos e irreconciliáveis. Não é possível que criacionismo e evolução estejam ambos corretos em um universo consistente. E, caso ele não seja consistente e mostre faces totalmente diversas em situações diferentes então não é possível a construção da ciência. Nesse caso ela faria bem em abandonar a tentativa de entender e usar a ciência (o que, é claro, envolve a tecnologia nela baseada), ou conviver com uma hipocrisia inerente e desabilitante.
Com frequência se menciona o fato de que grandes cientistas do passado eram religiosos, e isso é um fato. Muitos dos primeiros físicos estudavam a natureza como uma tentativa de entender a divindade. Newton, por exemplo, gastou mais tempo de sua vida estudando a Bíblia e alquimia do que dedicado à física e a matemática. Ele acreditava que poderia encontrar no texto cristão algum tipo de código deixado por Deus para revelar os mistérios do universo. Ele entendia Deus como o criador cuja existência podia ser confirmada pela grandeza da “criação” e rejeitava o ponto de vista de Leibniz de que o mundo fora criado suficientemente perfeito, não mais exigindo intervenção do criador.
“Esse sistema maravilhoso formado pelo Sol, planetas e cometas só pode proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente. […] Este Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo mas como Senhor de todas as coisas; e por causa de seu domínio ele costuma ser chamado de “Senhor Deus” παντοκρατωρ [pantokratōr] ou “Governante Universal”. […] O Deus Supremo é um Ser eterno, infinito, [e] absolutamente perfeito.
A oposição à divindade é ateísmo na profissão e idolatria na prática. Por ser tão desprovido de sentido e odioso para a humanidade o ateísmo nunca teve muitos defensores.
— Isaac Newton, Principia.
No entanto, enquanto buscava “revelar e exaltar a glória de Deus”, Newton lançou os fundamentos de uma explicação científica lógica para o movimento dos astros que totalmente prescindia da intervenção divina. Para a surpresa dos pesquisadores com o desenvolvimento da mecânica uma descrição cada vez mais precisa do movimento e até da origem das coisas foi sendo desenvolvida. O relato que se segue tem veracidade histórica discutida, mas é bastante interessante e pode ter ocorrido. Quando Laplace apresentou uma cópia de sua obra a Napoleão o imperador se surpreendeu com a ausência da menção a Deus em sua explicação sobre como teria surgido o sistema solar. Laplace teria respondido que “não necessitou de tal hipótese”. Laplace havia escrito uma obra contendo a descrição do sistema solar baseada nas leis de Newton e nela não fez qualquer referência à intervenção divina.
O conceito de uma divindade foi progressivamente esquecido e relegado às causas primeiras, como um criador que colocou as coisas em movimento e depois se retirou. Essa leitura tem recebido a acusação de ser a defesa pouco racional de um “Deus das lacunas” que vai sendo empurrado para regiões cada vez mais remotas na medida em que o conhecimento se amplia.
Filosoficamente se argumenta que não se pode provar a inexistência de Deus. De fato, não se pode provar a inexistência de coisa alguma e a afirmação perverte a lógica mais elementar de que o ônus da prova recai sobre quem afirma. Pode ser que nunca saibamos por certo se Deus existe ou não. Isso não nos desobriga de perceber que esse conceito não faz parte da construção científica, pelo menos por enquanto. Progressivamente o número de cientistas e acadêmicos que se declaram religiosos tem diminuído. Como mostrado na figura, uma pesquisa da American Association for the Advancement of Science mostrou que entre cientistas o número de pessoas de fé é bem menor que entre pessoas do público em geral. Os dados são dos EUA (uma vez que não temos esses dados para o Brasil).
Apesar de estarem em menor número existem casos de cientistas notáveis que sustentam suas crenças. Um deles é o do médico-geneticista Francis Collins que liderou o Projeto Genoma Humano e descobriu vários genes associados à doenças. Collins cresceu em um ambiente religioso mas se considerou um ateu enquanto estudante universitário. Já como médico, em um diálogo com um paciente hospitalizado, ele se sensibilizou e questionou sua própria falta de fé e passou a considerar diversas abordagens para a questão. Segundo seu relato, em uma viagem para as Montanhas Cascades, admirando a beleza de uma queda d’água congelada ele se converteu, transformando-se em um “cristão sério”. Collins foi uma criança educada em ambiente cristão que retornou para sua fé após considerar o sofrimento das pessoas e a beleza da natureza, elementos fortes para induzir uma experiência religiosa pessoal mas não conclusivos como argumentação científica.
Suponha que você acredita na existência de um fenômeno paranormal de qualquer natureza. Não é o objetivo dessa argumentação mostrar que você está errada(o), e muito menos propor outra visão mais “correta ou verdadeira”. Principalmente quando o debate envolve tema de foro muito íntimo, como a existência de (digamos) uma alma imortal, que existe independente do corpo, não deveria haver uma pessoa (ou várias) capazes de confirmar ou desmentir a sua visão. Então, neste caso, ceticismo significa que você deve analisar sua percepção das coisas e descobrir se você sabe algo a respeito ou apenas acredita. Ceticismo consiste em entender que suas crenças tem uma importância relativa e devem ser mantidas sob permanente escrutínio. E, caso você decida que sabe algo (novamente, digamos) sobre a existência da alma, e pode mostrar isso, então você tem um compromisso com a humanidade inteira, demonstrando do modo inequívoco a existência dessa entidade (a alma).
Seria interessante pensar em um desafio: Como você faria para demonstrar de forma clara, inquestionável e sem necessidade de fé, que a consciência humana pode existir independentemente do corpo?
A partir de 1975, com as pesquisas de Raymond Moody e a publicação de seu livro Life After Life (A Vida depois da Vida) aumentaram muito os relatos de experiências de quase morte. Pessoas que estiveram próximas da morte, algumas vezes inconscientes e até em coma, quando voltam à consciência relatam ter passado por experiências extra-corpóreas, tendo presenciado tudo o que ocorreu em seus ambientes. Como um teste, muitos médicos e enfermeiros passaram a colocar objetos inusitados em locais inacessíveis, tais como no alto de armários, coisas que seriam vistas e notadas por alguém flutuando fora de seu corpo. Até o momento não há relato de alguém que tenha visto esses objetos.
Fé e dogmatismo não são características exclusivas da religião e dos religiosos. A política desperta paixões e defesas apaixonadas muito próximas do proselitismo religioso. Até mesmo a defesa de teses científicas podem revelar o lado mesquinho da identificação egocêntrica de um pensador com seu pensamento. A história da ciência mostra, no entanto, que todas as guerras científicas foram travadas em cima de vaidades e falta de evidências.
Concluindo
Acreditar não é saber! Mais uma vez, acreditar é inerente ao ser humano e não parece razoável esperar pessoas nem sociedades sem crenças. No entanto seria útil para a sociedade que as pessoas compreendessem exatamente (ou tanto quanto possível) o que são as suas crenças e o que é o seu conhecimento.
Você já pensou sobre por que tantas pessoas tiveram que morrer queimadas em foqueiras por serem bruxas e bruxos na idade média? Essas pessoas foram acusadas, e muitas vezes confessaram, de terem associação com o demônio. Em uma das formas de interrogatório o padre interrogante colocava a bruxa nua e a espetava com um estilete por todo o corpo procurando um ponto sem sensibilidade que era, supostamente, o ponto do demônio. Outra técnica consistia em jogar as bruxas amarradas a pedras dentro d’água. Se afundassem eram bruxas verdadeiras. Curiosamente muitas dessas pessoas se julgavam de fato feiticeiros e feiticeiras. Talvez essas tenham morrido satisfeitas julgando que estavam indo ao encontro de seu mestre.Claro que, nos primeiros tempos do cristianismo, os cristãos também gostavam de virar mártir e partir mais cedo que o necessário para encontrar um destino nobre nos céus.
Como espécie estamos enfrentando desafios totalmente novos. Aquecimento do planeta, espalhamento global de epidemias devido à circulação das pessoas, concentração excessiva de renda (com o consequente aumento da pobreza), dificuldade de assentamento, manutenção, alimentação de uma população em crescimento exponencial, são alguns deles. Seria muito bom contar com cidadãos esclarecidos e capazes de tomar decisões sensatas.
Ceticismo não significa a negação de todas as afirmações por princípio e sim a intenção de analisar essas afirmações com critério. Existe o lado reconfortante da crença mas esse conforto está em óbvia rota de colisão com a tentativa de ver as coisas com clareza. Crenças podem ser perigosas. Por exemplo, acreditar que “tudo vai dar certo no final porque tem alguém cuidando de nós” é apenas um sinal de fraqueza e de medo. Essa pode ser uma solução para a vida pessoal dos indivíduos que não querem encarar o perigo de viver, a decadência e a morte. Mas certamente não é boa postura coletiva para guiar os rumos da sociedade. Existem inúmeras ameaças concretas ao indivíduo, às comunidades em todas as escalas, à vida e até ao planeta. Ter fé em qualquer tipo de estabilidade ou segurança universal é um passo para não se tomar as atitudes necessárias para contornar esses desafios.
Bibliografia
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
Hoffman, Donald: The Case Against Reality; Why Evolution Hid the Truth from Our Eyes, WW Norton and Co., New York, 2019.
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
“O Teorema Aptidão-derrota-Verdade (Fitness-Beats-Truth, FBT) afirma que a evolução por seleção natural não favorece a exatidão de nossas percepções — frequentemente ela a conduz a sua extinção. Ao contrário, a seleção natural favorece percepções que ocultam a verdade dando prioridade para a percepção que leva a atos úteis.”
— Donald Hoffman
Você vai atravessar a rua e olha para os dois lados. Um veículo se aproxima mas você faz um cálculo rápido e percebe que há tempo suficiente para prosseguir. Confiamos em nossos olhos e em nosso cálculo mental. Aprendemos que o mundo é feito de ruas e carros, pessoas e semáforos. Pessoas e carros se movimentam de forma previsível e adquirimos uma confiança progressiva em nossos sentidos e senso comum. Concluímos que eles são bons guias de segurança e de conhecimento. Mas, será que isso é sempre verdade?
É claro que os sentidos se desenvolveram para uma melhor adaptação ao ambiente, por meio dos mecanismos de evolução conhecidos. Como exemplo, nossa visão tem maior sensibilidade na cor do Sol mais intensa (que é um amarelo esverdeado), assim como plantas de cavernas são mais escuras para captar melhor a pouca luz que recebem. Os ajustes dos sentidos foram aqueles que melhor prepararam a nós, e todas as demais espécies, para a sobrevivência em seu habitat. Dentro de uma população de qualquer espécie, indivíduos que melhor avaliam seu meio têm maior chance de se alimentar, lutar ou fugir dos predadores, e procriar.
Mas, mesmo reconhecendo que nossos mecanismos de contato com o mundo foram finamente ajustados para a sobrevivência, temos muitas indicações de que nossos instrumentos sensoriais não são perfeitos para nos informar sobre o que existe no mundo. Eles podem falhar de maneiras e níveis diversos e nos iludir em várias situações. Por isso uma análise dessas falhas devem ser parte importante de qualquer tentativa de compreender, com algum grau de objetividade, o que está em nosso ambiente.
O grau de objetividade de nossa percepção vem sendo discutida há muito tempo. É esse, afinal, o objetivo de Platão em sua alegoria da caverna. Nela Platão descreve um grupo de filósofos presos dentro de uma caverna, vendo apenas as sombras que a realidade externa projeta em suas paredes. Por mais que tentem apreender o que está no mundo eles só vêm suas sombras, como informações parciais e distorcidas de uma suposta realidade objetiva.
A física da ilusão
Os pensadores gregos foram bons no desenvolvimento do raciocínio lógico e da matemática, mas não avançaram muito em física (ou ciências, em geral). Por pura observação do cotidiano os gregos concluíram que objetos em movimento tendem a perder velocidade até parar e que o estado parado é o natural dos corpos. Foram necessárias várias reviravoltas históricas até que, no século 16, Galileu Galilei introduziu o conceito de experimentação na ciência, algo ausente no pensamento grego. Galileu concluiu em seus experimentos, e na racionalização sobre eles, que objetos em movimento permanecem em movimento até que uma força atue sobre eles. Com o aperfeiçoamento do conhecimento sobre mecânica, Newton mostrou que não existe nada especial sobre o estado de estar parado e que, na verdade, estar parado ou em movimento retilíneo uniforme são estados completamente equivalentes, dependendo apenas do referencial de observação.
Temos uma grande dificuldade para interpretar o movimento. Uma pessoa dentro de um trem que parte sem solavancos terá a impressão de que a plataforma de embarque está se afastando para trás, assim como as pessoas antes de Kepler e Galileu achavam que o Sol, os planetas e as estrelas giravam em torno da Terra. O abandono dessa visão primitiva foi um processo lento e doloroso, incluindo a morte daqueles que ousaram abandonar o consenso da época. Do ponto de vista científico moderno esse debate é de todo irrelevante. Qualquer referencial pode ser usado para descrever o movimento do sistema solar. Ocorre que um referencial centrado no Sol (embora não exatamente em seu centro) e se movendo junto com ele torna a descrição matemática muito mais simples.
Parte dessa ilusão se deve à lentidão de nossos sentido e da forma como eles devem se focar sobre o objeto considerado, desprezando a visão ampla do examinado. Quando assistimos a um filme, por exemplo, estamos expostos a uma sequência de imagens estáticas mas as interpretamos como estando em movimento contínuo. Um ponto de luz em rápido movimento circular (como uma brasa amarrada na ponta de uma corda sendo girada) se parece com uma circunferência pois pontos acessos na retina demoram a se apagar de forma que vemos um círculo inteiro quando apenas um ponto está iluminado.
Na mecânica desenvolvida por Newton os eventos e o movimento ocorrem em um espaço de 3 dimensões (o espaço Euclidiano da experiência comum composto por largura, altura e profundidade) acrescido da dimensão tempo que é independente das 3 primeiras e flui de modo uniforme e sem qualquer relação com o que acontece nelas. Nesse espaço as distâncias espaciais (como o comprimento de uma barra rígida) é invariante, o que significa que é o mesmo para todos os observadores inerciais, com qualquer velocidade. A Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, TRR, substitui o conceito de espaço Newtoniano pelo espaço-tempo onde as 4 dimensões (3 espaciais mais 1 dimensão que é o tempo) estão interligadas. No espaço-tempo são invariantes a separação entre dois eventos, onde evento é definido como o local e o momento em que algo ocorreu.
O estudo físico do movimento revelou níveis mais profundos de incompreensão de nossa visão ordinária. Em movimentos rápidos (quando comparados à velocidade da luz) muito efeitos extraordinários se manifestam. Esse é o objeto da TRR, responsável pelo entendimento de que distâncias no espaço e no tempo (intervalos) não são os mesmos para observadores em diferentes velocidades. A TRR introduz o conceito de espaço-tempo, totalmente inesperado para nossos sentidos e cognição uma vez que não interagimos rotineiramente com esse tipo de entidade. Além disso ela mostra que existe uma relação entre matéria e energia, algo inesperado e pouco intuitivo para o senso comum e, no entanto, capaz de transformar totalmente nossa visão de mundo e tecnologia.
Outra revolução no entendimento físico das coisas ocorreu com a teoria quântica. Nesse caso fenômenos ainda mais exóticos são expostos, entre eles a impossibilidade de se localizar uma partícula e simultaneamente afirmar sua velocidade com precisão. A mecânica quântica, apesar de distante dos sentidos e experiências comuns, é responsável pelo entendimento de muitos fenômenos a que estamos rotineiramente expostos. Para entender porque uma barra de ferro parece ser mais fria ao toque do que uma peça de madeira, porque o vidro é transparente ou as coisas tem cores, porque uma lâmpada de filamentos ou uma de led se acendem, porque o Sol brilha e é quente, porque o gelo boia na água líquida, etc, você precisa da mecânica quântica. Observe que a linguagem usada nesse parágrafo foi propositalmente pouco precisa. Solidez é o que sentimos na interação eletromagnética, matéria é o conjunto de partículas e seus campos.
Sabemos, por meio da mecânica quântica, que uma parede sólida possui mais espaço vazios entre seus átomos que matéria, no sentido da palavra usado no dia a dia. Considere um portão rígido de ferro. Os átomos de ferro se agrupam de forma cristalina, com espaçamento regular entre os átomos. Os núcleos (26 prótons e o mesmo número aproximado de nêutrons) ficam distantes uns dos outros e o espaço intermediário é preenchido com nuvens eletrônicas que carregam pouquíssima massa. Pode-se assim dizer que uma chapa de ferro é como uma peneira. No entanto você não deve socar essa chapa pois as partículas de sua mão sofrerão interação eletromagnética com as do aço e você se machucará. Curiosamente, nenhuma partícula de sua mão colidirá diretamente com as da placa metálica exceto por meio da interação elétrica e magnética. Portanto, o sentido do tato nos informa que a placa é uniformemente sólida. Nossa visão dará a mesma informação pois a luz será absorvida nesse “interstício vazio de matéria” fazendo a placa ser opaca.
Os últimos exemplos mostram como falhamos na compreensão de coisas diminutas, como núcleos, elétrons, fótons (as partículas da luz) e suas interações. Não temos nenhum senso comum apropriado para pensar sobre fenômenos no mundo das partículas. Isso é natural pois não experimentamos nada disso em nosso processo evolutivo. Não temos ferramentas sensoriais naturais nem estrutura cognitiva cerebral para lidar com essas coisas. Por isso a mecânica quântica causou tanta surpresa em sua descoberta. O mundo microscópico não funciona como o mundo cotidiano de carros e pedestres.
Uma mostra adicional de como nosso senso comum é insuficiente para captar as nuances do mundo microscópico está no chamado problema da seta do tempo. No nível microscópico não é claro o motivo do tempo fluir do passado para o futuro. Se assistirmos a filmes de interações entre partículas não seremos capazes de dizer se o filme roda na direção natural do tempo ou se foi invertido. Nossa intuição sobre tempo se refere à um fenômeno macroscópico, ligado à entropia que, por sua vez, está conectada à probabilidade de ocorrência de certos eventos.
Nossos cérebros recebem do mundo informações sobre uma parcela muito pequena dos fenômenos ao nosso redor. Nossos sentidos nos enganam.
Da mesma forma o universo em grande escala, no nível das galáxias e aglomerados galáticos, não se comporta como dita nossa intuição. Existe uma relação intrínseca entre a massa dos objetos dentro do espaço e a própria geometria desse espaço (a forma como se mede distâncias e ângulos). A matéria (e energia) modificam o espaço que, por sua vez, modifica o movimento dos corpos naquele espaço.
A psicologia da ilusão
No entanto não precisamos apelar para o mundo das coisas microscópicas ou dos objetos em alta velocidade ou grandes escalas para perceber a ilusão. Nosso cérebro está enclausurado na caixa craniana e só entra em contato com o mundo através de impulsos elétricos que chegam dos órgãos sensoriais, levados até ele por neurônios e sinapses. No entanto existem muitas evidências de que as percepções integradas que temos do ambiente externo são mais uma composição processada pelo cérebro do que uma fotografia exata.
Uma parte importante de nossa recepção do mundo externo nos vem através da visão e interpretação das cores. No entanto enxergamos uma faixa muito estreita do vasto espectro eletromagnético, do vermelho até o violeta (o que chamamos de luz visível!) Todas as demais frequências, as ondas de rádio, do infravermelho, do ultravioleta, raios X e raios gama são invisíveis para nós porque não temos sensores capazes de entrar em ressonância com essas vibrações. Essa limitação não é igual para todos os seres vivos: Abelhas podem ver na faixa do ultravioleta (uma “cor” que existe em flores) e cobras podem perceber o infravermelho, a radiação emitida por corpos em temperatura ambiente na Terra. Elefantes ouvem ruídos na faixa do ultrassom, ursos podem sentir cheiros de animais mortos em lugar distante, tubarões percebem campos elétricos e pombos se orientam por esses campos.
Neurocientistas usam os enganos da percepção para aprender mais sobre esse mecanismo e suas falhas. As mesmas pesquisas também são úteis para ajudar na construção de sistemas inteligentes que realizam tarefas usualmente atribuídas a humanos, tais como o reconhecimento facial.
O que vemos não é uma representação fiel do está no mundo exterior. Para compreender o cérebro faz suposições usando uma quantidade mínima de informações. A rica experiência que acumulamos olhando uma paisagem ou um belo quadro é uma reconstrução e não um mapeamento direto do observado. O cérebro sadio erra, gerando percepções falsas, ilusórias. Pacientes portadores de patologias neurológicas e cerebrais são expostos à ilusões ainda mais sérias.
Muita complexidade existe em nossa percepção de formas, cores e contrastes em áreas mais ou menos escuras. Observe que, dependendo da iluminação ambiente, as cores podem ter aparências totalmente diversas. Essa variação é corrigida por processamento cerebral. Somos obrigados a reconhecer que os sentidos não são uma aferição rigorosa do mundo exterior, como se fossem instrumentos de laboratório bem calibrados. Eles são os mecanismos adaptados para uma vida segura e eficiente, no sentido evolutivo.
Observe a figura mostrada. Qual dos quadrados A ou B é mais escuro?
Ocorre que eles são exatamente do mesmo tom de cinza. Como o quadrado em B está dentro de uma sombra construímos mentalmente uma diferença de tons.
A pesquisa em neurociência tem mostrado que boa parte das imagens capturadas pela visão são mais devidas à uma reconstituição processada no cérebro do que imagens objetivas e diretas do mundo exterior. A construção das cores é um bom exemplo disso. O que chamamos de azul ou vermelho são as representações montadas pelo cérebro à partir das frequências de luz recebidas. Os olhos transformam imagens em sinais elétricos que são enviados para o cérebro que, por sua vez, constrói a cor. Nas palavras de Kim e seu grupo de pesquisa (veja referências):
“Não existe cor na luz. A cor está no percebedor, não no estímulo físico. Essa distinção é crítica o entendimento das representações neurais que devem passar de um conceito de mera formação física da imagem na retina para a construção mental do que vemos. […] Essa distinção entre dois modos de representação neural representa um avanço do nosso entendimento da codificação visual no cérebro.”
— Kim, I; Hong, S., Shevell, S., Shim W.; Neural representations of perceptual color experience ..
Imagem e cor são reconstruções feitas pelo cérebro em um processo muito parecido com o que é feito nas belas fotos do Hubble e de radiotelescópios onde uma determinada faixa de frequência é convertida em cor visível para a nossa apreciação (e para a análise científica dos dados). A pesquisa mostra que há uma tentativa de economizar recursos e que o cérebro pode decidir pela cor de um objeto com muito pouca informação. Uma vez reconhecida a cor (mesmo que o reconhecimento esteja incorreto) o cérebro preencherá a imagem com aquele tom.
Além da faixa restrita de frequências de ondas que podemos captar, nossa visão só é nítida em uma região muito pequena do campo visual, e desfocada no entorno. Se você esticar o braço e levantar o polegar o tamanho da unha em seu polegar é aproximadamente o mesmo da região onde você enxerga claramente. A imagem periférica é borrada e imprecisa e a noção de que estamos olhando uma imagem ampla e detalhada é construída. (Experimente fixar os olhos em uma parte desse texto e ler as palavras que estão fora de seu olhar direto!) Quando você muda o foco de visão o ponto que recebe sua atenção se ilumina e se torna mais definido enquanto as demais partes da imagem são alimentados pelo cérebro usando a memória e cálculo.
Para mostrar que, da mesma forma, as pessoas enxergam cores apenas em uma parte pequena de sua visão, pesquisadores apresentaram imagens que iam perdendo colorido gradualmente (desaturando a cor) na periferia do campo visual. Algumas pessoas não perceberam a dessaturação na periferia mesmo quando quase toda a cor (até 95%) foi removida. Se você está olhando para um objeto na parede e seu cachorro caramelo entra na sala é bem possível que você enxergue a cor de seu pelo, mas apenas porque você a conhece de antemão. Caso contrário só conhecerá a cor do animal se olhar diretamente para ele.
Em testes de laboratório pesquisadores descobriram que ilusões que aparecem em sentidos diferentes podem usar os mesmos circuitos cerebrais. Por exemplo, uma pessoa olha para objetos que se movem em uma direção. Se ela troca o foco do olhar para objetos imóveis ela tem a impressão de que esses estão se movendo na direção oposta. Se, ao invés de olharem coisas imóveis, eles receberem estímulos táteis estacionários as pessoas os percebem como se movendo na direção oposta. A sensação de estímulos táteis em movimento também fez com que os participantes percebessem cenas visuais se movendo na direção oposta. Esses resultados indicam que o cérebro usa o mesmo sistema para processar movimentos visuais e táteis.
A percepção do tempo não é linear e pode ser manipulada em experimentos. Qualquer coisa que aconteça e receba toda a nossa atenção parece fluir mais lentamente. Há um experimento que exibe para os sujeitos de teste uma série de imagens contendo discos de cores diferentes, a maioria deles com o mesmo tamanho na tela. Todas as imagens ficam visíveis pelo mesmo tempo. Quando os discos aumentam de tamanho os observadores têm a impressão de que eles ficam visíveis por tempo maior. Uma sugestão para entender isso é a de que os discos que crescem parecem se aproximar do observador e que, evolutivamente, objetos que se aproximam merecem atenção mais detalhada.
Eagleman (veja referências) sugere um exercício: Olhando seu rosto de perto em um espelho tente alternar o foco de sua atenção entre o olho esquerdo e o direito. Há uma certa demora (mesmo que pequena) durante a troca de foco de um olho para outro mas esse intervalo não é percebido. Você não vê nada exceto sua visão pulando instantaneamente de um olho para outro. De fato nosso cérebro apaga a imagem borrada durante o movimento e, possivelmente altera sua percepção de tempo nesse intervalo.
Na descrição de Hoffman o ato de perceber requer uso considerável de energia. Cada caloria despendida nesse ato deverá ser reposta por meio de alimentação. Por mais fácil que seja na modernidade conseguir uma refeição isso não foi sempre assim. No passado era dispendioso, às vezes perigoso, conseguir sua alimentação. Por esse motivo o gasto de energia foi minimizado nas percepções e suas interpretações. Sempre que pode empregar um atalho para nos passar uma visão funcional do objeto que olhamos o cérebro o faz. Essa é a causa básica das inúmeras ilusões de óticas que encontramos, com imagens que parecem se mexer ou construções que não fazem sentido após um exame mais minucioso.
O neurocientista Donald Hoffman (The Case Against Reality) sugere uma alegoria interesssante. Um ícone em sua área de trabalho no computador não é o arquivo nem o aplicativo que ele representa. Na verdade ele está ali para simbolizar um objeto muito mais complexo que está armazenado eletronicamente em seu disco rígido. Ele guarda muitas informações e oculta a maioria delas do olhar do usuário. De fato ele oculta muito mais do que mostra, servindo como um mero atalho para que você encontre e use seu arquivo.
Da mesma forma chamamos cobra de cobra, mas isso nem de longe carrega todo o conteúdo que o animal, em si, possui. A palavra cobra não contém, por exemplo, a sequência de DNA necessária para formar o animal. Ela também não carrega o perigo e o medo que sentimos ao avistar uma verdadeira serpente. Cobra é um ícone que, dependendo da situação, faz o indivíduo correr para se afastar do local de sua aparição. Imagine que uma pessoa esteja saindo de um riacho, em uma região com cobras em abundância, e pisa em uma corda molhada. Seus sentidos o alertam para o perigo informando que há uma cobra debaixo de seu pé. É muito mais útil tirar o pé rapidamente e se afastar do que agir filosoficamente para investigar a natureza do objeto pisado. Essa é uma forma de heurística mental, um atalho que gera um ato reflexo imediato. Nossos sentidos agem para preservar nossa vida, não para que entendamos o universo.
Por argumentos desse tipo compreendemos que nossa percepção não é uma janela para a realidade mas um atalho para a sobrevivência. Mas qualquer consideração sobre o tema seria desonesta se omitisse os fatos: (1) não sabemos sequer se existe uma realidade externa, algo se movendo fora da caverna de Platão; (2) nossa interação com seja lá o que existe, por meio de cognição, é algo sobre o que sabemos muito pouco. Mesmo assim a discussão sobre o tema é essencial se desejamos ter alguma noção sobre a realidade objetiva.
Plasticidade Cerebral
Apesar das limitações de nossos sentidos uma grande área de pesquisa hoje explora a possibilidade de ampliar nossas percepções e da expressão de nossa consciência através de membros e sensores artificiais acoplados ao cérebro. Um experimento transforma uma imagem em pontos de pressão, aplicados sobre alguma parte do corpo. Na figura à esquerda uma matriz de pontos contendo a imagem exerce pressão sobre a testa de uma pessoa deficiente visual. Com um pouco de treino a pessoa passa a identificar objetos que são a ela expostos, como se “enxergassem” pelo tato. Embora existam regiões do cérebro especializadas em realizar uma determinada tarefa ele pode realocar recursos, se necessário, desenvolvendo uma funcionalidade onde ela não existia. É o que ocorre com pessoas acidentadas que perderam ou danificaram parte de seu cérebro e que, no entanto, conseguem superar suas limitações através da plasticidade cerebral.
O mesmo efeito se verifica nos implantes mecânicos, tais como um exo-esqueleto. Se o operador recebe um feedback (uma informação de retorno da máquina) ele pode aprender a operá-la como se fosse um de seus membros naturais. É o que explora o cientista brasileiro Miguel Nicolelis com sua tecnologia cérebro-máquina. Na Universidade de Duke, EUA, Nicolelis e seus colegas implantaram eletrodos no cérebro de um macaco capazes de controlar e receber retorno de um braço mecânico. Inicialmente o macaco usava o braço artificial para mover um joystick que movimentava uma figura em um videogame. Depois de um tempo o macaco aprendeu que bastava pensar no movimento da figura, dispensando o braço mecânico.
Na abertura da Copa do Mundo de futebol em 2014 um homem paraplégico se levantou e deu o primeiro chute na bola usando um exoesqueleto controlado por seu cérebro, como parte do Walk Again Project, um esforço colaborativo de 150 pesquisadores coordenados por Nicolelis.
Nossa vaga memória
A memória é um dos processos mais importantes na definição de quem somos e na compreensão do que vemos no mundo. Nenhum valor teriam instrumentos de percepção ultra sofisticados se não tivéssemos conhecimentos prévios sobre o que vemos guardados na memória. Sem ela teríamos que reinventar a roda a cada momento, partir sempre do zero. Na ciência, além da memória individual, é necessário estabelecer uma linguagem comum, não ambígua e de precisão, que dure muito mais que o prazo de vida de cada pesquisador.
A memória pessoal não é um fenômeno único mas sim um aglomerado de efeitos. Existe a memória de curta duração que mantemos ativa por alguns segundos, como a que usamos quando lemos um número de telefone em um anúncio e o discamos imediatamente. Também temos memória de longo prazo que são divididas em duas categorias: memória declarativa ou explícita e memória não declarativa ou implícita. Memórias não declarativas são responsáveis por hábitos e habilidades adquiridas, tais como saber manusear talheres, nadar ou andar de bicicleta. Com o uso essas habilidades se tornam automáticas e pode ser usadas com muito pouco esforço. A memoria declarativa é responsável pelo armazenamento de eventos que ocorreram em nossas vidas. Elas são também chamadas biográficas ou episódicas, contendo o conteúdo de nossas vivências e praticamente definem quem somos.
Sabemos que memórias de tipos diferentes são armazenadas em diferentes regiões do cérebro. Essas regiões foram descobertas primeiro através do estudo de pessoas que sofreram danos em partes diversas do cérebro, por doenças, acidentes ou cirurgias. Hoje os instrumentos de ressonância magnética permitem ver que partes do cérebro estão mais ativas quando o paciente é sujeito a cada tipo de experiência. Pacientes com amnésia clássica podem perder a habilidade de registrar novas memórias de curta duração e se esquecer de eventos do passado. Mesmo assim eles continuam sabendo quem são e quem são seus familiares, diferente do que acontece em um tipo de demência onde a pessoa perde a noção de sua individualidade.
Na formação de uma memória vários elementos separados são armazenados. Um evento composto de formas, cores, cheiros e emoções podem ser recapturados com muito mais facilidade que uma noção pura. Textos associados à imagens e até o estudo de coisas teóricas são melhor memorizados se associados a alguma sensação. Apesar de existir ainda muita dúvida sobre como funciona a memória, é sabido que ela não é guardada no cérebro da mesma forma que um arquivo é gravado em um disco rígido. Pelo contrário, a cada requisição de uma informação o evento que se pretende recuperar é reconstruído à partir de partes lembradas, associadas aos vários sentidos.
Considere os seguintes casos envolvendo memórias:
Um grupo de pessoas testemunha um acidente entre automóveis. Um policial as interroga perguntando para algumas delas: (a) Qual era a velocidade do carro quando colidiram? (b) Qual era a velocidade do carro quando se esbarraram? Pessoas do grupo (b) relatam velocidades menores que aquelas do primeiro grupo. A forma em que a pergunta foi feita altera a reconstrução do evento.
Você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”, etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
Diversos experimentos realizados pela polícia e por pesquisadores mostram que o resultado da identificação de criminosos onde a vítima escolhe um entre uma fila de vários suspeitos é pouco confiável. Há a tendência da vítima escolher uma pessoa mal encarada, um negro em comunidades onde há muito racismo, etc. Por isso essa técnica vem sendo abandonada.
Quando se pergunta às pessoas em diversos países: “Onde você estava quando ocorreu o ataque às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001”, a maioria delas se lembra com detalhes de sua localização e das sensações que tiveram naquele momento. Um estresse emocional forte tende a se tornar uma boa âncora para a reconstrução de uma memória.
Os exemplos mostram que uma memória pode ser plantada com alguma antecedência ou até mesmo na hora em que se faz a pergunta. Além disso é possível termos falsas memórias, quando partes de uma memória verdadeira se conectam incorretamente, levantando um quadro falso do que aconteceu. É esse o caso quando você julga que foi o protagonista de uma evento que, na verdade, foi relatado por uma terceira pessoa.
Outro exemplo comum é de pessoas que passaram por situações traumáticas e que buscam apoio em terapias de recuperação de memórias reprimidas. Em alguns casos se mostrou que as memórias recuperadas não passavam de sugestões, algumas vezes do próprio terapeuta, sonhos ou imaginação do paciente. Uma memória falsa pode ter o mesmo efeito de uma verdadeira, inclusive despertando felicidades, tristezas e até traumas. O cérebro reage de forma parecida, senão igual, a memórias de experiências vividas ou imaginadas, da mesma forma que fazer exercícios físicos ou pensar neles estimula as mesmas partes do cérebro.
Finalmente, nossas memórias podem, e são, reajustadas para fazer sentido ou afirmar as narrativas que temos de nós mesmos ou de eventos que presenciamos. O caso clássico são de pessoas que estiveram em coma por um tempo, sem atividade cerebral, mas acordam se lembrando de experiências fora do corpo, em algum tipo de céu religioso, etc.
Concluindo
Procurei argumentar que faz sentido o que foi proposto em Vieses de Cognição e artigos subsequentes:
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Por isso:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Claro que essa discussão não esgota o assunto e apenas indica uma direção a ser considerada. Dessas considerações se conclui pela necessidade de uma atitude de ceticismo, a ser explorada no próximo artigo.
Bibliografia
Shaw, Julia, The Memory Ilusion, Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory, Penguin Random House, New York, 2016.
Hoffman, Donald: The Case Against Reality; Why Evolution Hid the Truth from Our Eyes, WW Norton and Co., New York, 2019.
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
Site BrainFacts.org, Speert, D.; Sensory Ilusions, acessado em maio de 2020.
Site David Eagleman; Brain Time, acessado em maio de 2020.
Este artigo é continuação de Vieses de cognição, mas pode ser lido independentemente.
Viés de Confirmação
“Ouvimos e apreendemos apenas aquilo que parcialmente já sabíamos”
— Henry David Thoreau
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância — é a ilusão de conhecimento.”
— Daniel J. Boors
“A ignorância gera confiança com maior frequência que o conhecimento.”
— Charles Darwin, The Descent of Man.
Como vimos em Vieses de Cognição os processos de percepção e pensamento humano são poderosos mas falhos. Psicólogos estudam esses vieses cognitivos e padrões heurísticos para entender essas falhas e sugerir possíveis correções. Um dos efeitos mais importantes é o chamado viés de confirmação que consiste na tendência de se escolher entre as dados captados no mundo externo apenas aqueles que dão sustentação às nossas crenças. O efeito pode se manifestar em uma mera seleção de tópicos para debate até uma completa rejeição do dado conflitante sob forma de não enxergá-lo, de negá-lo com veemência ou de esquecê-lo. Existe também a tendência a interpretar resultados ambíguos como se fossem favoráveis.
A maioria das pessoas acredita que suas crenças e convicções são racionais, obtidas durante muitos anos de análise imparcial das coisas que são apresentadas, das informações disponíveis. O estudo desse viés mostra que isso não ocorre. Ele é perigoso porque impede que reformulemos nossa visão de mundo em face a dados conflitantes, ou nos leva a avaliar incorretamente nossa limitação e crer que conhecemos muito sobre um assunto porque as evidências todas (que percebemos) parecem confirmá-lo. Nesse último aspecto ele reforça o efeito Dunning-Krueger (de que já trataremos). Esse viés aparece em experiências cotidianas simples ou em elaborados experimentos científicos.
O termo Viés de Confirmação foi proposto pelo psicólogo inglês Peter Wason, em um experimento que ele relatou em 1960. Wason realizou uma série de experimentos onde as pessoas eram requisitadas a encontrar padrões, recebendo gradualmente informações sobres esses padrões. Ele foi um dos precursores no estudo das falhas comuns da racionalidade entre humanos. Teste de Wason.
Alguns exemplos
Como mencionado no artigo anterior, existem pessoas que usam sempre a mesma camisa para assistir a uma partida de futebol acreditando que essa atitude facilitará de alguma forma a vitória de seu clube. É claro que essa crença não possui nenhum embasamento lógico, nem pode ser verificada experimentalmente. Mas, ao longo dos meses, seu clube é vitorioso algumas vezes, outras não. A pessoa tende a considerar importante os dias em que o mecanismo obscuro funcionou, e a relevar os momentos em que não funcionou.
Considere que alguém mantém a crença de que pessoas homossexuais são mais criativas do que héteros. Se ela encontra um homossexual altamente criativo esse dado servirá para corroborar e tornar mais forte a sua crença. Provavelmente ela poderá encontrar vários homossexuais com criatividade regular ou até abaixo da média. Mas ela tenderá a ignorar essas observações.
O mecanismo tem uma influência forte em nossa vida social. O debate sobre a liberação de armas para a população, versus uma legislação que restringe a posse de armas, se tornou politicamente envolvente, dificultando muito o atingimento de posições racionais e desapaixonadas. Um defensor do desarmamento tende a buscar, ou a prestar mais atenção, nos casos em que a posse de armas resultou em tragédias e mortes. Alguém do lado oposto coleciona informações sobre eventos onde as armas foram úteis e salvaram vidas.
O viés de confirmação age para aumentar estereótipos e preconceitos. Se você desenvolveu a noção de que pessoas argentinas são arrogantes, cada argentino arrogante que você encontrar reforçará seu preconceito. Os muitos argentinos simpáticos e gentis que você conhecer passarão ignorados e não serão contabilizados em sua contagem de confirmação. O mesmo efeito pode levar um médico a diagnosticar incorretamente um paciente que valorizou mais um sintoma sobre outro, talvez porque já tenha decidido qual é a sua doença.
Muitas vezes, na história da ciência, um fenômeno novo interessante foi observado mas descartado por não ser compreendido. Um pesquisador pode descartar resultados que ele considera absurdos (de acordo com sua crença corrente) julgando que se tratam apenas de erros. Há um problema atual não resolvido com a tendência em não publicar (ou não valorizar) resultados negativos, que poderiam ser instrutivos para a comunidade de pesquisadores.
O efeito de confirmação enviesada tem papel importante nos fenômenos de ilusão de massa. No ano de 1940 em Seattle, EUA, alguns moradores notaram e espalharam a notícia de que estavam encontrando uma quantidade excessiva de perfurações e defeitos nos parabrisas de seus carros, atribuindo o problema a uma causa comum. Proprietários de veículos, naturalmente, verificaram seus próprios parabrisas, muitos deles encontrando defeitos. Muitas teorias surgiram, inclusive a de que os danos eram causados por raios cósmicos. Uma análise da polícia concluiu que 95% dos relatos não passavam de histeria coletiva.
Claro que o mesmo fenômeno age sobre a crença no paranormal e na religiosidade. Um especialista em leitura fria (cold reading), observando as reações das pessoas na platéia despeja uma descrição com extenso conteúdo, quase sempre elogioso. A pessoa que recebe a leitura aceita e recorda os acertos, ignorando os erros do “clarividente”. Um fiel que passou toda a vida rezando para passar em uma prova, para melhorar de uma doença mais ou menos séria, certamente se lembrará das situações em que obteve resultado e “suas preces foram atendidas”.
Recentemente, em 2010, foi descrito o efeito backfire (algo como tiro pela culatra) que é uma radicalização do viés de confirmação e de apego à ideias preconcebidas. Uma pessoa que defende teorias da conspiração, por exemplo a hipótese da terra plana, pode se apegar com mais rigor a suas crenças quando confrontadas com evidências fortes de que está errada. Quando o EUA invadiu o Iraque em 2003 algumas autoridades defendiam que Saddam Russein tinha um grande arsenal de armas de destruição em massa. Incapazes de encontrar essas armas as autoridades se justificaram com espanto sobre a capacidade dos iraquianos esconderem suas armas.
Alguns tópicos em debate, tais como posse de armas e pena de morte, sobre diferenças entra pessoas de grupos étnicos variados ou de gêneros opostos, são muito difíceis de serem resolvidos e um estudo sério à respeito deve envolver uma coleta de muitos dados e análise isenta e rigorosa. É muito difícil que uma pessoa não treinada em pesquisa faça sozinha essa coleta de dados e análise. Por esse motivo é importante entendermos que, embora todos tenham direito a suas opiniões, elas nem sempre são assim tão importantes.
Para a sua consideração: o que você pensa disto?
Todos têm direito à suas opiniões e também a obrigação de entender que suas opiniões não são extraordinariamente importantes.
Uma análise do viés de confirmação mostra que ele surge principalmente da dificuldade básica do ser humano em avaliar probabilidade e o efeito do acaso.
Sobrecarga de Informações
Com o advento da Internet seria esperado um efeito importante sobre a educação dos cidadãos e sua capacidade de decidir. Uma pessoa bem intencionada pode hoje procurar e encontrar informações sobre qualquer tópico e com o nível de profundidade desejada. Ela pode analisar abordagens e ideologias diferentes, argumentos pró e contra os seus próprios, realizando daí uma dialética saudável e encontrando uma posição esclarecida. Mas isso não se concretizou por dois motivos principais. Primeiro a quantidade de informação disponível está muito acima da capacidade de processamento das pessoas, principalmente alguém sem treinamento e formação básica. Em seguida verificamos que a qualidade da informação não mantém sempre bons padrões. A internet é um meio bastante democrático onde qualquer um pode disponibilizar seu conhecimento mas também despejar seus preconceitos, erros e desinformação.
Obter um conhecimento sólido em alguma área de estudo sério exige dedicação e sempre uma dose de conhecimentos prévios. Algumas vezes os prerequisitos são eles mesmos complexos e demandam tempo de aprendizado. Nas áreas de exatas a matemática costuma ser um empecilho que nem todos conseguem superar sozinhos. Os excluídos reagem assumindo posições extremas, conspiratórias e negacionistas da ciência.
Alguém que procure se educar pela internet teria necessariamente que buscar um tutor ou cursos bem avaliados, pelo menos para se iniciar no assunto desejado. E o aprendizado sobre as formas de discurso falacioso e de pensamento crítico pode ajudar a estabelecer filtros que eliminem o pensamento enviesado. É o que buscamos fazer aqui, neste site.
Efeito Dunning-Krueger
É curioso que, em muitos casos, a incompetência não deixa as pessoas desorientadas, perplexas ou cautelosas. Pelo contrário, os incompetentes são com frequência dotados de uma confiança inadequada, estimulada por alguma coisa que para eles parece conhecimento.
— David Dunning.
O efeito Dunning-Krueger é outro viés de cognição que faz com que os indivíduos não saibam avaliar o seu nível de expertise em algum assunto. Verifica-se que pessoas que sabem pouco sobre um tópico se consideram especialistas, enquanto os verdadeiros especialistas questionam a profundidade e abrangência de seu conhecimento.
Em 1999 os psicólogos David Dunning e Justin Kruger identificaram o efeito, inicialmente através da consideração do caso de um assaltante de bancos que praticava assaltos com o rosto coberto por suco de limão, na expectativa de estar invisível para as câmeras de segurança. Sua crença se originou do uso de suco de limão como “tinta invisível”. Outros testes confirmaram a existência do efeito, inclusive por meio de experimentos onde pessoas eram treinadas para resolver problemas de lógica. Quanto mais treinadas melhor as pessoas conseguiam avaliar sua competência na solução dos desafios.
Nas palavras de Dunning: “Se você é incompetente você não consegue perceber que é incompetente. As habilidades de que você precisa para encontrar respostas corretas são as mesmas necessárias para reconhecer que elas estão corretas”. Apesar de cometer muitos erros as pessoas julgavam que estavam desempenhando bem nos testes.
Dunning e Kruger realizaram diversos testes com estudantes de graduação em psicologia em níveis introdutórios, testando sua habilidade para avaliarem suas habilidades intelectuais em pensamento lógico, gramática inglesa e senso de humor pessoal. Em seguida os alunos avaliaram suas posições em relação aos colegas de classe. Verificou-se que os melhores alunos não se atribuíram boas classificações bem dentro de sua turma, enquanto os alunos fracos não se viam como mal colocados nesse ranking. Os mais competentes afirmaram não se colocar no topo porque pensaram que as tarefas fáceis (para eles) fossem fáceis para todos.
Em outro experimento Dunning e Kruger pediram a 65 participantes que avaliassem a quanto eram engraçadas diversas piadas. Alguns dos participantes se mostraram péssimos na determinação do que outras pessoas considerariam uma boa piada. No entanto esses mesmos indivíduos se descreveram como bons juízes do humor.
Essa incompetência na autoavaliação pode ter impactos profundos nas crenças individuais, nas decisões e atitudes tomadas. Por exemplo, em testes de qualificação científica os pesquisadores verificaram que mulheres tiveram desempenho idêntico aos de homens, embora se avaliassem como inferiores. Acreditando que homens são mais hábeis no pensamento lógico-científico muitas alunas podem se afastar dos cursos e carreiras científicas ou de competições nessas áreas.
Testes envolvendo a compreensão linguística foram realizados em experimentos que exibiam uma série de termos em áreas como política, biologia, física e geografia. Palavras inventadas eram ocasionalmente inseridas e se perguntava aos entrevistados se eles conheciam os termos. Um dos estudos mostrou que aproximadamente 90% dos entrevistados que afirmaram conhecer um assunto também julgavam compreender as palavras inventadas associadas àquele tema.
O efeito não ocorre apenas em indivíduos com pouca formação, ignorantes no geral ou ingênuas, nem exclusivamente sobre temas técnicos-científicos. A maioria das pessoas possui pontos fracos em sua formação, à respeito de algum assunto. Por mais especializadas que elas possam ser em temas de seu domínio elas poderão exibir esse defeito de cognição. Uma forma relativamente simples de perceber o viés em grupos consiste em reunir pessoas de uma mesma comunidade, com uma base cultural comum e perguntá-los como se qualificam em relação a tópicos de interesse comum. A absoluta maioria delas se classifica como entre os 10 ou 15% dos melhores motoristas, melhores amigos, pessoas mais honestas, trabalhadores mais eficientes, etc, o que é matematicamente impossível.
Dunning e Kruger sugeriram que o efeito é causado por uma “dupla deficiência”. A incapacidade em compreender o assunto em questão também age para dificultar a autoavaliação. Pessoas incompetentes tendem a superestimar a própria competência, ser incapazes de encontrar seus erros e falta de habilidade e não reconhecem a competência de pessoas qualificadas, quando as encontram. As pessoas mais afetadas pelo efeito Dunning-Kruger exibem maior dificuldade com a metacognição, a capacidade de obter uma visão abrangente sobre o próprio comportamento e habilidades.
Por outro lado, indivíduos com altos níveis de realização (em uma determinada área) sabem que estão acima da média mas não sabem se graduar em relação aos demais. Além de conhecer as meandros do tema em que se especializaram, e saber que há muito mais a ser conhecido, eles tendem a julgar que as outras pessoas conhecem tanto quanto eles.
Em 1980 o extraordinário pensador, conhecedor de ciência e escritor de ficção científica Isaac Asimov fez uma observação que parecia antever os tempos de obscuridade e incerteza que vivemos hoje. Ele se referia aos EUA, mas não é difícil traduzir para o espírito de nossa época e nosso país.
“Existe um culto à ignorância nos Estados Unidos, e sempre houve. A tensão do anti-intelectualismo tem sido um fio constante na nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que democracia significa que ‘a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento“.
O que podemos fazer sobre os nossos olhares enviesados?
Mesmo que você seja uma pessoa de mente muito aberta, é útil reconhecer como funciona o viés de confirmação e o efeito Dunning-Krueger. Todos nós apresentamos tendências e inclinações das quais podemos ou não estar conscientes. Entender esse mecanismo e estar atentos para seu funcionamento, fazendo uma metacognição, ou pensar sobre a cognição, pode ser importante para desenvolvermos uma atitude mais isenta.
Na atualidade enfrentamos um desafio social gigantesco (e global) que consiste na radicalização de posições estimuladas pelas mídias sociais. As notícias hoje são dirigidas para o perfil esperado do consumidor da informação. Seu perfil é analisado pelos algoritmos de inteligência artificial e tudo o que você recebe está filtrado pelo que você (e seus amigos, em certa medida) escolheram ver anteriormente. Uma pessoa que gosta de armas verá notícias e propagandas sobre armas e será dirigido para o encontro com outros apreciadores de armas. Sua preferência por um político ou ideologia social será explorada ao máximo, até você achar que a maioria das pessoas concordam com você. Nesse sentido estamos todos sob um processo de manipulação muito mais poderoso do que já estivemos, em qualquer tempo passado.
Psicólogos sociais identificaram duas tendências interessantes, ambas alimentadas por viés de confirmação, na forma como as pessoas buscam ou interpretam as informações que têm de si mesmas. Auto-verificação é o empenho para reforçar a imagem própria, e auto-reforço é a busca por feedback positivo. Nos experimentos as pessoas tendem a não se envolver ou se lembrar daquelas informações que conflituam com suas autoimagens. Eles se esforçam para diminuir o efeito dessas informações interpretando como não-confiáveis. Efeito oposto ocorre quando recebem um feddback positivo.
Compreender o efeito Dunning-Krueger também é importante, particularmente nos dias de hoje, quando as pessoas se consideram especialistas depois de consultar alguns sites na internet. O estudos dos mecanismos psicológicos do autoengano e de como eles podem ser alvos de metacognição podem ajudar. Manter uma mente aberta e disposição para novos aprendizados é essencial. Você pode pedir a avaliação de terceiros desde que, é claro, encontre pessoas que conheçam o tema onde você deseja ser avaliado. E, finalmente, você deve manter um postura de questionar o que conhece. Uma dose de ceticismo é necessária, junto com o esforço para escapar do viés de confirmação e busca por informações que contradigam seu paradigma mental e suas crenças.
Adendo: O Teste de Wason
Apenas como uma ilustração segue o teste de Wason usado para testar competência de seus sujeitos (as pessoas testadas). No estudo original, feito em 1966, apenas 10% dos testados acertavam a resposta. Quatro cartas estão dispostas em uma mesa à sua frente mostrando A, 7, D e 4.
Você recebe a informação de que cada uma delas contém uma letra em uma face, um dígito na outra. Você deve verificar a seguinte hipótese: todas as cartas que contém uma vogal contém um número par. Quais cartas devem ser levantadas para verificar a hipótese?
Pense um pouco e tente resolver este teste. Só depois olhe a resposta.
A resposta correta é que você só precisa levantar as cartas com A e 7. Deve haver um número par na primeira e uma consoante na segunda, caso contrário a hipótese está incorreta. Os reversos das cartas com D e 4 são irrelevantes, pois nada têm a ver com a hipótese formulada.
Apenas as duas primeiras cartas podem falsear a hipótese. As duas últimas não servem para testá-la. A maioria das pessoas decide olhar as quatro cartas pois, instintivamente procuram por evidências que confirmem sua suposição. Mas um teste mais eficaz consiste em tentar provar que a suposição é falsa. Se não for possível, então ela deve ser verdadeira.
Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
“Nossas crenças não repousam pacificamente em nossos cérebros esperando serem confirmadas ou negadas pela informação que recebemos. Pelo contrário, elas agem ativamente modificando a forma como vemos o mundo.
—Richard Wiseman
Introdução e Conclusão
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Pretendemos aqui explorar os argumentos que indicam as seguintes conclusões:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Em seguida, dentro da suposição de que queremos conhecer as coisas com algum grau de confiança, pretendemos argumentar que existe uma forma de contornar, em algum nível, essas limitações. Ela consiste em analisar o próprio mecanismo, algo que vem sendo chamado de metacognição. Além disso, de muitas formas diferentes, o método científico foi desenvolvido para anular (ou minorar) o efeito do erro cognitivo e nos permitir um vislumbre de como funciona a natureza.
Para efeito de discussão é praxe se estabelecer uma distinção entre órgãos sensoriais, dos quais os mais óbvios são a visão, audição, tato, olfato e paladar, e nosso mecanismo de processamento dos dados que obtemos por meio deles. Esse processamento ocorre principalmente no cérebro com seu poder de análise e memória. No entanto a divisão não é perfeita pois nosso cérebro se ajusta à limitação dos sentidos. Não conseguimos pensar em quatro dimensões porque só vemos duas (e calculamos uma terceira). Não podemos planejar um ato ou movimento que nosso cérebro sequer possa imaginar. A metáfora do cérebro como um computador composto de hardware e software pode ser útil até um ponto mas quebra quando pensamos que o cérebro tem plasticidade e se modifica de acordo com o conteúdo a ele apresentado. Naturalmente um cérebro ampliado pode ter pensamentos ampliados e essa dinâmica não tem fim. A modificação dos sentidos também age sobre a capacidade de processamento. Em nós, hardware e software se confundem.
O que é Viés de Cognição?
Apesar da complexidade e eficiência de nosso cérebro, com frequência ele toma atalhos para responder mais rapidamente à demandas do cotidiano. Por exemplo, no passado remoto, nas savanas, o movimento de folhas e barulho de passos deveria ser rapidamente interpretado como a aproximação de um animal perigoso que exige a postura de defesa ou fuga. Essa é uma característica evolutiva pois indivíduos “corajosos” certamente eram mortos mais cedo por predadores.
Uma forma clara de percebermos essas “imprecisões” nos sentidos está nas ilusões óticas, imagens fixas que parecem se mover ou que mostram coisas totalmente diferentes dependendo como se olha. Mágicos compreendem bem esse efeito e se utilizam dele para realizar suas façanhas. Eles sabem, por exemplo, que nossos olhos não conseguem gerar imagens nítidas de objetos em movimentos. Se olhamos fixamente para o rosto do mágico não conseguimos ver o que ele faz com as mãos em movimento.
Parte do problema está em que tudo o que vemos (ou ouvimos, etc) é construído no cérebro e não uma mera imagem objetiva do mundo exterior. Muitos exemplos interessantes podem ser listados: possuímos um mecanismo de identificação de fisionomia, algo como um aplicativo interno que reforça traços no rosto das pessoas para que as identifiquemos. Um prova disso é o efeito de pareidolia que é a tendência de ver rostos e formas humanas em manchas, nuvens e borrões. Se você olha para um lado da sala onde está, e move rapidamente os olhos para o outro lado, você não deixa de ver a sala durante o movimento dos olhos. No entanto, fisicamente essa imagem está borrada pelo efeito do movimento. Nosso cérebro consegue apagar a imagem borrada e substituí-la por outra da sala que é calculada e montada à partir de memórias que temos do ambiente.
O conceito de viés de cognição foi proposto por Amos Tversky e Daniel Kahneman em 1972. Depois deles muitos pesquisadores estudaram e descreveram tipos diferentes de vieses que afetam nossa percepção e análise das coisas e capacidade de decisões e julgamentos em questões diversas como no comportamento social, financeiro econômico, na educação, etc.
Você já se perguntou a razão de as lojas colocarem preços fracionários em seus produtos. Que diferença faz um item de mercado a R$39,99 ou R$40,00? Em compras desse tipo quantas vezes você recebeu 1 centavo de troco? Ocorre que temos uma tendência de nos balizar pela análise do primeiro dígito à esquerda. Esse atalho, que economiza o cérebro de um processamento mais dispendioso, pode ser útil algumas vezes mas gera essa prática exploratória comum do consumidor, simples, ingênua mas efetiva, em alguns casos.
Todas as pessoas estão sujeitas a erros por viés de cognição. Ele ocorre, por exemplo, quando você só aceita ler artigos em jornais ou assistir vídeos ou canais de TV que concordam com você, ou só considerar novidades que apoiam sua visão de mundo. Ele ocorre quando você aprende um pouco sobre algum tópico e já se considera um especialista na área (o Efeito Dunninham-Krueger).
Algumas formas de vieses de cognição são listadas a seguir. Mais tarde analisaremos alguns deles com maiores detalhes.
Cherry picking, ou escolher a cereja do bolo, é uma forma sutil de fazer isso. Você entra em contato com um volume grande de informações mas só registra aquelas que te interessam. Você lê um livro recheado de informações polêmicas mas recolhe e registra apenas aquelas que interessam ao seu alvo intelectual, ideológico ou de fé.
Viés de ancoragem é a tendência de atribuir maior confiança às primeiras informações que você recebe. Por exemplo, alguém te informa que o preço médio de um carro é de um determinado valor (e a informação pode estar certa ou não). Se encontrar ofertas abaixo dessa esperada você julgará que o ítem está com ótimo preço. Esse viés é usado na propaganda que coloca em primeiro lugar os preços mais altos.
Viés de atenção é a tendência de focar sua atenção em alguns aspectos e ignorar outros. Ao procurar um carro para comprar você se preocupa apenas com a aparência e ignora todos as outras características que dão valor (ou depreciam) o item. Associada a esse viés as pessoas costumam dar mais valor àquelas coisas de que se lembram mais facilmente. Por exemplo, após o atentando ao World Trading Center em 11 de setembro de 2001, os americanos passaram aproximadamente um ano se recusando a viajar de avião. Mortes causadas por acidentes com automóveis em estradas de rodagem superaram muitas vezes o número de mortes no atentado. Humanos são notórios pela sua imprecisão em avaliar riscos.
O efeito do falso consenso é a tendência de superestimar o quanto as pessoas concordam com você. Ele está associado ao cherry picking e ao viés de confirmação (de que já trataremos). Humanos são seres altamente sociais e precisam de se sentir aceitos e acolhidos. Para isso tendem a se agrupar por interesses comuns e convergência de opiniões, facilmente adaptando suas próprias opiniões às do grupo. Um escrutínio mais rigoroso pode mostrar que o grupo não é tão uníssono como parece.
A Fixação funcional é a tendência de ver os problemas sob a ótica única das ferramentas que você possui. “Para quem só tem um martelo, todo problema se parece com um prego” (Abraham Maslow). Alguém que domine o conhecimento da teoria evolucionária pode tender a julgar que apenas ele á necessária para explicar todas as situações do mundo moderno.
O Efeito Halo ou da impressão difusa faz com que você julgue todo um indivíduo (ou situação) baseado na sua impressão geral sobre ele (ou ela). Isso acontece, por ex., quando você conhece uma pessoa bonita e simpática, e a considera honesta e confiável, ou um homem vestido com um terno elegante e com uma fala convincente entra com facilidade em um banco para assaltá-lo. É impressionante a quantidade de efeitos sociais importantes, como na discriminação de raça, onde uma mera primeira impressão pode determinar comportamentos.
O Efeito de desinformação é a tendência de que informações que circulam após um evento modificam completamente a memória do evento original. Nossa memória é facilmente influenciada pelo que ouvimos de outras pessoas. Por isso as pessoas que presenciaram um crime não devem conversar entre si antes de prestarem depoimento à polícia. O mesmo fenômeno faz com que informações de testemunhas oculares esteja em descrédito nos dias de hoje.
Há uma história clássica sobre esse efeito: você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”. Etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
O Viés de otimismo faz com que as pessoas acreditem que nunca serão vítimas de infortúnios e/ou possuem maior probabilidade de sucesso que os demais. É o caso da pessoa autoconfiante que acha que nunca será infectado por uma doença contagiosa que assola sua região.
Ilusão de controle é a tendência que as pessoas têm de superestimar a própria habilidade em controlar alguma coisa ou situação que, na verdade ocorrem independente dela. Os psicólogos sugerem que essa tendência influencia as pessoas em seus hábitos de apostar e na crença do paranormal. Uma pessoa pode julgar que é capaz de controlar um resultado que, em princípio, é aleatório, ou provocar a cura de um doente com práticas mágicas ou orações. Parte, pelo menos, do comportamento ritualístico pode ser explicado por meio desse efeito. Uma pessoa usa sempre a mesma camisa quando torce para seu time de futebol acreditando que, se essa atitude funcionou um dia, ela poderá funcionar sempre. Junto com o viés de confirmação essa tendência pode determinar fortemente o comportamento irracional de um indivíduo. Em um experimento as pessoas testadas assistiram um jogador de basquete tentando encaçapar a bola em arremessos livres. Quando se pediu aos sujeitos testados para torcer, visualizando a bola ser encestada eles relataram sentir como se tivessem participação para o sucesso do jogador.
A maldição do conhecimento é a tendência de considerar simples um assunto que já é dominado. Um professor, depois de anos estudando e ensinando um tema acha estranho que os alunos demorem tanto a entender o que ele está dizendo, o que para ele parece óbvio. Um exemplo pode ser visto na brincadeira infantil onde uma pessoa cantarola mentalmente uma música conhecida apenas marcando o ritmo com batidas, enquanto a outra pessoa tenta descobrir qual é a música. Para quem sabe, a canção usada parece muito óbvia, enquanto o outro tem dificuldades em adivinhar.
O efeito Barnum ou Forer é um fenômeno psicológico comum no qual indivíduos consideram altamente precisas descrições genéricas de suas personalidades. É possível descrever genericamente uma personalidade, geralmente em termos elogiosos e agradáveis, de forma a satisfazer um grande números de indivíduos que consideram que o texto foi escrito a seu respeito. Esse efeito fornece uma explicação, pelo menos em parte, para a ampla aceitação de práticas como astrologia, leitura fria ou de aura e alguns de testes de personalidade. O mágico inglês Derren Brown realizou várias reuniões com pessoas de diversos países sob a alegação de que faria um mapa astrológico dos participantes. Quando recebiam seus mapas as pessoas, em sua absoluta maioria, declaravam estar muito satisfeitas com a descrição de suas personalidades. Depois o mágico pedia a elas que trocassem seus mapas. Com muita surpresa os participantes descobriam que apenas um texto foi distribuído para todos.
O efeito placebo é a reação de pessoas que sentem melhoras após serem tratadas com um falso medicamento, desde que acreditem estar tomando medicamento real. Esse efeito é tão importante que a industria médico-farmacêutica precisa comparar a eficácia de seus novos medicamentos com a de placebos, geralmente pílulas de farinha ou açucar. A experiência clínica indica, que quanto maior o comprimido e quanto mais amargo, maior será seu efeito. Comprimidos grandes, triangulares ou de cores intensas funcionam melhor que pílulas pequenas, de formato comum e sem cor. Tratamentos complexos, envolvendo máquinas, correntes elétricas ou aparatos tecnológicos funcionam melhor do que uma simples massagem, a menos que o paciente atribua ao massagista ou terapeuta algum dom ou virtude extraordinária. É muito bem conhecido o efeito terapêutico sobre pacientes que recebem uma visita atenciosa de seu médico. Você pode ler mais sobre placebos nesse site.
Existem, é claro, muitos outros fenômenos que mostram a natureza enviezada de nossa percepção. Dois seles serão tratados em seguida com um pouco mais detalhamento devido à sua importância direta em nossas vidas. Eles são O efeito Dunning-Kruger que é a dificuldade das pessoas reconhecerem seu nível de expertise ou ignorância sobre um assunto, e o Viés de confirmação, o favorecimento de informações que apoiam e sustentam nossas crenças, ignorando evidências contrárias a elas.
Uma deficiência muito forte de nosso mecanismo geral de percepção e entendimento das coisas está em nossa incapacidade para lidar e compreender o acaso e aleatoriedade. Já incluímos aqui um artigo sobre o assunto: Acaso e Percepção Extrassensorial.
Vieses de cognição possuem uma associação estreita com as falácias lógicas, embora não sejam o mesmo fenômeno. Falácias são erros lógicos usados no pensamento sobre alguma questão e podem ser expostos por uma análise racionalmente precisa dos argumentos. O exposição dos vieses de cognição exige pesquisa controlada. Provavelmente uma cognição imperfeita induza a erros lógicos. Leia nesse site: Falácias Lógicas.
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Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Em 1937 a telepatia estava na moda. O botânico e parapsicólogo J. B. Rhine havia lançado há pouco o livro New Frontiers of the Mind onde apresentava alegações extraordinárias sobre os experimentos de PES (percepção extrassensorial) na Universidade de Duke. Outro autor muito conhecido do público da época, Upton Sinclair, havia lançado um livro sobre seus experimentos em comunicação psíquica bem sucedidas com a esposa. A assunto era tópico das conversas em todo o país.
A nota (1) fornece alguns detalhes extras da história do experimento.
Em setembro de 1937 a Zenith Radio Corporation, em colaboração com Rhine, iniciou um experimento ambicioso. Um programa de rádio da emissora reuniu um painel de pessoas consideradas dotadas de percepções extrassensoriais, em particular a telepatia. Na medida em que o apresentador do programa ia sorteando em uma roleta uma sequêncis de 5 resultados binários, escolhendo entre X ou O, os especialistas se concentravam com todas a suas energias para transmitir para os ouvintes a sequência escolhida. Os organizadores do evento pediram que os ouvintes também se concentrassem para receber as transmissões dos telepatas, anotando as sequências de sinais percebidas e as enviando para a emissora.
Mais de 40 mil ouvintes responderam imediatamente e milhares de outras respostas chegaram depois. Foi um experimento em grande escala. A esperança era de que, mesmo que houvesse muitos erros, um número maior de adivinhações corretas aparecesse nas análises dos resultados. De fato, era o que deveria acontecer se houvesse algum efeito de telepatia entre as pessoas e os supostos telepatas.
Em um teste com 5 sequências, três deles foram “captados” pelo público em proporção muito maior que a esperada por mera coincidência. Um deles foi a sequência OXXOX descoberta por um número muito grande de ouvintes. Esse resultado surpreendeu a todos e os proponentes da percepção extrassensorial, juntamente com os empresários da rádio, comemoraram. O programa havia se tornado muito rentável e a rádio emitiu um comunicado de imprensa informando que haviam provado a existência de fenômenos paranormais.
Uma segunda análise
O experimento chamou a atenção de um jovem psicólogo chamado Louis Goodfellow, também contratado pela rádio Zenith. Ele empreendeu seu próprio estudo para determinar se poderia haver outra explicação para os resultados do experimento. Ele descobriu que, de fato, os experimentos não revelavam a existência de PES, embora apontassem para outro resultado muito interessante.
A nota (2) discute a necessidade da análise extra realizada por Goodfellow.
Ele percebeu que sequências tais como OOXOX eram identificadas pelo público com acerto acima do acaso, enquanto sequências como OOOOO eram escolhidas pelo público com menor frequência. Quando Goodfellow pediu às pessoas que inventassem uma sequência aleatória a sequência OOXOX apareceu muito acima de 30% das vezes.
Em seu laboratório Goodfellow realizou outros testes pedindo que as pessoas imaginassem resultado de um experimento aleatório com moedas, com 5 tentativas, cada uma resultando em cara ou coroa. Ele descobriu os resultados imaginados pelos participante não eram de fato aleatórios. De fato, 78% das pessoas iniciavam suas sequências com uma carana primeira jogada de moeda. (Se os resultados fossem aleatórios 50% apenas dos resultados deveriam se iniciar desta forma.)
A partir disso Goodfellow criou a hipótese de que o sucesso do experimento da rádio Zenith não tinha nada a ver com paranormalidade. Pelo contrário, ele revelava uma incapacidade inerente aos humanos de gerar listas ou sequências realmente aleatórias. Quando as pessoas tentam fazer isso elas acabam caindo em padrões que são muito similares entre as pessoas. Por exemplo, quando se pede a alguém para fornecer uma sequência binária de 5 posições (com apenas duas escolhas para cada posição) é muito improvável que ela escolha OOOOO ou XXXXX, mesmo que essas sejam tão possíveis como qualquer outra. Na cabeça das pessoas é muito mais “aleatório” escolher OOXOX ou XXOXO, mesmo que todas essas sequências tenham a mesma probabilidade (1/32) de ocorrerem. Resumindo, as pessoas do público acertaram sequências “mais prováveis”, que eles consideravam “mais aleatórias” que outras.
Probabilidade
A probabilidade de acerto em qualquer adivinhação consiste no número de casos considerados acertos, divididos pelo número de casos possíveis. Neste caso apenas uma sequência é correta. Na escolha de 5 ocorrências de um evento binário existem 2 possibilidades para a primeira sorteada, mais 2 para a segunda, até a quinta escolha. Ou seja, existem 25 = 32 possibilidades. Logo a chance de acerto aleatório é de 1/32.
Uma roleta, dado ou moeda honesta é aquela em que seus resultados podem ocorrer com a mesma probabilidade. Uma moeda não honesta pode ter um lado mais pesado que outro, ou pode conter cara dos dois lados.
Leia mais sobre Probabilidade e Estatística.
Como existem apenas 32 combinações possíveis, se você apenas inventar uma sequência qualquer, você tem 1/32 ou aproximadamente 3% de chance de acerto. Com uma roleta “honesta” todos os resultados são igualmente prováveis.
Se as pessoas conseguissem fazer escolhas realmente aleatórias, um experimento com poucas pessoas buscando descobrir sequências desse tipo exibiria uma distribuição espalhada das escolhas, sem nenhum padrão. (Veja adiante, sobre a Lei dos Pequenos Números). Mas se o mesmo experimento for repetido com grande número de pessoas todas as possibilidades seriam aproximadamente contempladas. (A Lei dos Grandes Números).
No experimento da rádio Zenith milhares de pessoas escolheram XOXOO com frequência muito mais alta que XXXXX. Naturalmente o experimento foi refeito (muitas vezes, na verdade). Nenhum resultado paranormal foi verificado, apesar da alta taxa de adivinhações em torno das sequências consideradas “mais aleatórias” que as demais.
Você participa de um experimento que sorteia 5 bolas pretas ou vermelhas, com igual probabilidade. Denotando preto por P e vermelho por V, suponha que você adivinhou a sequência PPVPV. Antes da verificação você tem 1/32 de chance de acertar. Mas, se você tiver acertado exatamente a sequência sorteada, não cabe mais perguntar que chances você tem. O experimento foi realizado e um das resultados possíveis foi selecionado.
Considere agora outra situação onde um número muito grande de pessoas participou. Várias delas terão acertado por acaso o resultado. Se você é uma delas a tendência é que considere esse experimento extraordinário, comprovando fenômenos paranormais. Por esse motivo é necessário sempre fazer uma análise estatística desse e de qualquer outro experimento.
Cérebro humano e probabilidade
Isso mostra um fato interessante, hoje bem conhecido. Nosso cérebro não sabe lidar bem com acaso e probabilidade. Intuitivamente (e erroneamente neste caso) achamos que OOOOO ou XXXXX são menos prováveis que qualquer outra sequência. Quantas pessoas você conhece dispostas a apostar na sequência 1 2 3 4 5 6 na Mega Sena? No entanto esse palpite é tão provável como qualquer outro que você escolher.
William Poundstone, escritor de divulgação científica em seu livro Rock Breaks Scissors, explora algumas das ramificações das descobertas de Goodfellow: “Ele basicamente mostrou que muitas das nossas pequenas decisões cotidianas são incrivelmente previsíveis”. Com alguns dados e conhecimento é possível prever muitas atitudes e decisões das pessoas. Por exemplo, no jogo pedra, papel, tesoura (jokempô) homens tentem a escolher pedra com frequência maior que as outras opções. Esse comportamento humano é observável e bem documentado. Ele é explorado, por exemplo, na propaganda eletrônica, na expectativa de se aproveitar de respostas padrões das pessoas.
Recentemente os psicólogos Amos Tversky e Daniel Kahneman propuseram a chamada Lei dos Pequenos Números, uma teoria que busca explicar a inabilidade humana para lidar com o acaso e aleatoriedade. Tendemos a esperar que pequenas amostras sejam representativas de uma amostra maior, de onde a menor foi extraída.
Atirando uma moeda 5 vezes você espera verificar um resultado com 2 ou 3 caras, e 2 ou 3 coroas, com alguma variação de padrão. Apesar dessa expectativa as chances de se obter 5 caras (ou 5 coroas) são de 1 em 32, como qualquer outra combinação.
A Lei dos Pequenos Números
A Lei dos Números Pequenos se refere à falsa crença de que uma amostra pequena deve necessariamente conter os padrões da amostra maior de onde ela foi extraída. Essa crença é bastante universal entre as pessoas, atingindo pessoas comuns e especialistas nas diversas áreas do conhecimento. A lei dos pequenos números é, na verdade, a indicação de uma falácia. A Lei dos Grandes Números é conhecida e está correta: uma amostra grande, mesmo que incompleta, é representativa do conjunto maior.
Suponha que você tem uma piscina cheia com 50% de bolinhas azuis, 50% vermelhas, bem misturadas. Se você tirar poucas bolinhas ao acaso há baixa probabilidade de que 50% sejam azuis, 50% vermelhas. Se você aumentar a sua amostra também aumentam as suas chances de que metade sejam azuis, metade vermelhas.
Notas
(1) Há uma ambiguidade nos relatos históricos à respeito do experimento da Zenith Radio Corporation. Em alguns relatos se descreve que os especialistas telepatas escolhiam sem sorteio os sinais que seriam “enviados” aos ouvintes. Em outros relatos os sinais eram escolhidos através de sorteio (o que, claramente seria a coisa mais correta a se fazer).
No primeiro caso o número de adivinhações corretas seria bem maior pois a mesma escolha tendenciosa seria observada tanto na escolha como na adivinhação. No segundo caso as observações consideradas “preferidas” teriam maior quantidade de acertos.
O relato mais completo que encontrei foi dado por William Poundstone em seu livro Rock Breaks Scissors. Um trecho do livro pode ser encontrado no site Science Friday, listado nas referências. Segundo esse autor diversos tipos de experimentos foram tentados por um período prolongado de tempo. As transmissões usaram cores, como branco e preto; cara e coroa; X e O. Em alguns testes 7 escolhas eram “transmitidas” e, pelo menos uma vez, dois dos sinais foram deixados nulos, sem nenhuma transmissão. Em todos os casos as sequências “prediletas” foram bem adivinhadas pelos ouvintes. Os sinais nulos, a ausência de transmissão de qualquer informação, nunca foram percebidos por nenhum ouvinte.
(2) É claro que esses resultados foram motivos de polêmica por muito tempo. Por que Goodfellow não pode simplesmente aceitar que existe a telepatia? Ocorre que não existe, no paradigma atual científico, nenhuma justificativa ou embasamento teórico que justifique a existência de fenômenos como o da telepatia. Não há nenhum campo físico conhecido que pode ser gerado pelo cérebro humano e captado remotamente por outros.
Evidentemente esses campos podem vir a ser descobertos um dia. Pode ser que fenômenos paranormais sejam compreendidos e usados. Mas, sem nenhuma evidência teórica, o melhor a fazer é aplicar uma boa dose de ceticismo e buscar explicações alternativas que não necessitem de elementos estranhos e externos ao paradigma aceito e consagrado.
A situação é análoga à que ocorreu em 2011 no acelerador de partículas CERN, Suiça quando experimentos pareciam indicar neutrinos viajando em velocidades superiores à da luz. Tal coisa viola a bem estabelecida Teoria de Relatividade e, se confirmada, provocaria uma grande alteração na física. Cientistas desconfiados fizerem uma varredura em todo o sistema de medidas até descobrir que havia um cabo mal conectado em um dos aparelhos.
Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking, The Penguin Press, New York, 2014.
Poundstone, William: Rock Breaks Scissors, Little, Brown and Company, New York, 2014.
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Evolução
“Se chegássemos ao fim da linha, o espírito humano definharia e morreria. Mas não creio que um dia sossegaremos: aumentaremos em complexidade, se não em profundidade, e seremos sempre o centro de um horizonte de possibilidades em expansão.”
— Stephen Hawking, O Universo numa Casca de Noz.
Humanos existem no planeta há aproximadamente 300 mil anos, o que é muito pouco se comparado à idade da Terra (4,5 bilhões de anos), ou ao aparecimento das primeiras formas de vida (em torno de 3,7 bilhões de anos). Na maior parte de sua existência os humanos não foram muito diferentes de seus primos, os grandes primatas: orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos. A civilização, por sua vez, só teve início há pouquíssimo tempo na Mesopotâmia e Egito, algo em torno de 6 mil anos atrás.
Observe que três elementos são básicos para a definição de civilização. São eles: a fixação à terra e domínio da agropecuária, o tratamento da água consumida e de esgoto, o uso da palavra escrita. Pense em quantas pessoas hoje estão excluídas!
O ritmo de desenvolvimento das comunidades humanas é vertiginoso e só se acelera. A revolução industrial, que teve início em meados do século 18 até o início do século 19, alterou de forma dramática a vida das pessoas, começando pelas grandes cidades e depois se espalhando por toda a parte. As máquinas, à princípio construídas sobre um entendimento de termodinâmica, foram drasticamente alteradas, primeiro com o desenvolvimento do eletromagnetismo e construção dos motores elétricos, mais tarde com o advento da eletrônica e da computação.
O efeito das máquinas sobre pessoas e sociedade foi, e ainda é, complexo. Por exemplo, máquinas liberam pessoas das tarefas extenuantes, repetitivas ou de precisão. Uma pessoa com uma máquina produz mais que um grupo grande de pessoas no passado. No entanto as máquinas são cada vez mais complexas e caras e não podem ser adquiridas (nem operadas) por todos. Elas substituem os operários nas indústrias e fazendas, aumentam o lucro dos donos e não contribuem para a distribuição da riqueza.
A tecnologia traz vantagens óbvias que poucas pessoas hoje estariam dispostas a desprezar. Temos telefones, computadores, equipamentos hospitalares sofisticados, medicamentos e vacinas, entre muitos outros produtos que agilizam e facilitam a nossa vida. De fato, a tecnologia tem prolongado a vida humana em muitos anos. E nos tornamos profundamente dependentes dela. Só para ter um vislumbre dessa dependência, imagine o seguinte: o que aconteceria se os sistemas de comunicação, inclusive satélites, entrassem em colapso e deixassem de funcionar? Pode ser um exercício interessantes pensar nisso mas algo se pode adiantar: a sociedade, como a definimos hoje, colapsaria rapidamente.
Nenhuma das listas de exemplos usadas aqui e em outras partes do artigo é exaustiva. Muitos outros poderiam ser anexados.
Outro exemplo de faceta múltipla do impacto da tecnologia está no uso de antibióticos. Com a descoberta de que microrganismos podem causar doenças e que os antibióticos podem matar alguns desses invasores (fungos e bactérias, em particular) muitas doenças foram completamente superadas. No entanto o uso generalizado, muitas vezes de forma inconsequente e sem a instrução de um médico, está causando o surgimento das chamadas superbactérias. Essas superbactérias se desenvolvem por meio de seleção natural dos indivíduos resistentes aos medicamentos. Estamos muito próximos da exposição a bactérias que não respondem à nenhum dos antibióticos conhecidos.
Uma nova pressão, muito mais sutil mas não menos desafiadora, está na facilidade de acesso à informação e a possibilidade de difusão da opinião individual através da Internet e dos ambientes sociais virtuais. O otimismo inicial de que mais informação traria uma sociedade mais capaz de decidir e de se harmonizar foi frustrado e substituído por uma ambiente de radicalismo, de negação científica e crescimento de conceitos esdrúxulos e teorias conspiratórias. Essa é uma tendência muito nova e ainda não completamente compreendida.
Dito isso uma pergunta se torna evidente:
Estamos melhores agora?
Após todo esse processo evolutivo resta-nos perguntar: “Somos mais sensatos ou felizes?” É muito claro que vivemos um período de pujança produtiva. Sem tecnologia não seria possível produzir alimentos para um número tão grande de pessoas no planeta. Apesar da flagrante má distribuição da riqueza e dos recursos, hoje é produzida uma quantidade suficiente de alimentos para alimentar a toda a população do planeta, segundo o The World Economic Forum. Então um desafio óbvio é distribuir riqueza e recursos.
No entanto a população não para de crescer, principalmente nos setores mais carentes da população. Os meios de produção e o próprio cotidiano do cidadão moderno gera resíduos prejudiciais à natureza. Descarregamos uma quantidade de CO2 suficiente para alterar o clima, causando aquecimento por efeito estufa. Usamos tecidos sintéticos (em geral em mistura com fibras naturais) que produzem micro partículas plásticas levadas para rios e mares, afetando a saúde das espécies aquáticas. A produção de carnes exige a aglomeração de alto número de animais domesticados que poluem e consumem recursos hídricos importantes.
É frequente a afirmação de que a humanidade está falhando. O que se observa, no entanto, é exatamente o contrário: nossos problemas surgem do alto grau de sucesso na preservação e ampliação da espécie humana. Essa é a meta de todo ser vivo, microrganismo, planta ou animal. E humanos são animais, por mais que nossa vaidade vã, nossa filosofia ou religião, afirmem o contrário. Mais que isso, somos animais com a mesma estrutura cerebral de seres da caverna, nossos antepassados. Humanos colonizaram todo o planeta, de áreas geladas até os trópicos. Aprenderam a produzir comida domesticando animais e plantas.
Por que as pessoas ficam pálidas quando expostas a perigo ou ao levar um susto? Ficamos pálidos porque nossos vasos sanguíneos se contraem, provavelmente para não sangrar após um ataque de um tigre dente de sabre, ou outro animal. Os tigres se foram para a maioria de nós, os ataques ainda existem mas não na mesma proporção. Mas nosso corpo e cérebro são essencialmente os mesmos.
A humanidade é uma espécie altamente bem sucedida. O problema é que agora nos deparamos com um problema nunca visto antes: a Terra é finita. Dada a escala de nossa expansão podemos ainda afirmar: a Terra é finita e muito pequena!
Temos inúmeros relatos de casos em que um determinado animal populou uma região qualquer, sendo nisso bem sucedido. Digamos que um tipo de gato chegue a uma ilha onde encontre muitos pássaros e nenhum predador. Os gatos podem se fartar de tanta comida, sem medo de serem, eles mesmos, devorados. Eles então se multiplicam o ocupam toda a ilha até que suas presas são extintas. Gatos bem sucedidos terminam sua existência devido à finitude da ilha onde moram.
Nunca será demais lembrar que:
a maioria absoluta das espécies que já existiram na Terra estão hoje extintas.
Podemos encontrar uma solução?
A tecnologia trouxe muitos problemas, inclusive por facilitar a expansão e sobrevivência humana. Deveríamos renunciar à ciência e tecnologia? Precisamos voltar a viver com a simplicidade de nossos antepassados, sem fazer uso de medicamentos ou máquinas?
Não se pode esquecer que tecnologia está associada à ciência, que é conhecimento. Hoje conhecemos mais, muito mais. Pela primeira em toda a história (pelo que se sabe) temos uma descrição fundamentada da origem do universo, da constituição da matéria, do processo de evolução dos seres vivos e de como as informações são passadas de pais para filhos por meio da genética. A indagação sobre o desconhecido é parte essencial dos humanos. Ela não pode ser abandonada. O uso da ciência na tecnologia é natural e dificilmente poderá ser impedido. Além disso outra pergunta pode ser feita: Existe outro caminho? Poderíamos ter tomado outra rota?
O passado não pode ser revisto. A situação desafiadora do presente é a única possível. Talvez possamos configurar e selecionar o futuro. E, para tal, é impensável descartar a tecnologia. Precisamos de mais tecnologia, de mais conhecimento. Precisamos aprimorar o processo educacional para formar cidadãos mais conscientes do processo civilizatório e dos problemas por ele introduzidos. A Educação é uma das chaves para o futuro.
Justiça e oportunidade
A construção de uma sociedade justa é outra condição essencial para um futuro harmônico e pacífico. Nenhum grupo de indivíduos, seja um bairro ou um país, terá paz com sua fartura e abundância de recursos se os grupos ao lado não têm acesso mínimo a condições de vida decentes.
Humanos evoluíram em um ambiente hostil e de parcos recursos. Tribos com acesso a boas áreas agricultáveis atingiram suficiência alimentar mais cedo. Tribos que domesticaram cavalos aprenderam formas de guerra mais eficientes. A identificação entre membros de um grupo, necessária para a formação de aldeias e cidades, também trouxe a rejeição ao diferente, ao estrangeiro. É completamente natural que uma tribo de negros na África estranhe e rejeite a chegada de pessoas brancas em seu território.
Toda a humanidade hoje existente é descendente de uma tribo muito pequena surgida na África. Além disso houve diversos episódios de afunilamento, com a morte de muitos indivíduos. Por isso nossa “Eva Mitocondrial”, a mulher mais recente ancestral de todos os humanos atuais, viveu entre 100 a 230 mil anos no passado. Nosso Mais Recente Ancestral Comum, pela linha paterna, o “Adão-Y” é mais antigo, em torno de 340 mil anos atrás.
Essa identificação de grupo é a raiz do preconceito e segregação racial. A ciência, no entanto, mostra que existe uma variância muito pequena na genética humana. Todos os humanos no planeta possuem diversidade genética inferior à de um bando grande de chimpanzés. Nossas diferenças são superficiais, de fenótipo apenas. Não é verdade que as comunidades abastadas foram mais capazes que outras para reunir suas riquezas. Não é verdade que indivíduos em tribos primitivas não teriam condições de aprender ciência (ou outra arte) se expostos a bom sistema de ensino. Por isso é essencial que se procure a igualdade de oportunidades para todos, mesmo sabendo que nem todos os indivíduos terão o mesmo desempenho. Da mesma forma é necessário dar oportunidades iguais a pessoas de gêneros diferentes.
O futuro
O atual modelo de crescimento econômico está destinado ao colapso. Mesmo para baixo crescimento dos PIBs dos países, o que já é considerado um desastre no atual modelo, o crescimento é exponencial, o que significa o atingimento de números muito grandes passado algum tempo. Sem uma reformulação drástica do conceito de desenvolvimento estaremos sem recursos naturais em pouco tempo.
Muitas iniciativas promissoras estão em estudo e testes. Existe a exploração de recursos minerais extraídas de asteróides em órbitas próximas à Terra, o que indica a possibilidade de captação de recursos no espaço. Evidentemente a colonização de outros planetas (ou da Lua) pode ser uma alternativa importante para a preservação da espécie, embora estejam ainda em fases muito incipientes.
De mais concreto temos avanços importantes: a neurociência está ampliando rapidamente o entendimento de nosso próprio cérebro. Ela poderá, inclusive, instruir os métodos de ensino para torná-los mais eficientes. As técnicas de inteligência artificial também prometem ser coadjuvantes importantes nas descobertas científicas, na compreensão dos dados em grande escala e até mesmo na educação, facilitando o desenvolvimento de programas de ensino adaptados ao indivíduo. Outro exemplo está na capacidade de edição genética, inclusive de indivíduos adultos, o que poderá resultar em conquistas médicas importantes.
É claro que essas novidades tecnológicas podem ser novas ameaças. Para evitar que as novas tecnologias sejam empregadas para aumentar a violência, a segregação e a injustiça a única alternativa está na educação do indivíduo em todas as partes, de todos os níveis sociais.
Não é impossível, nem improvável, que uma forte perturbação do tecido social, como pode ocorrer como consequência do aquecimento global, por exemplo, provoque uma ruptura no paradigma atual e altere nossos mecanismos mais profundos herdados do processo evolutivo. A atual crise com o COVID-19, alterando de forma radical o estilo de vida do cidadão e os meios de produção também pode servir como um alerta e um ponta-pé inicial em uma transformação de nível global em direção à um planeta mais equilibrado e sustentável.
Acreditar que a situação já é irremediável é tão perigoso quanto desconhecer o problema eminente.
Espero a discussão do leitor sobre esse assunto. Deixe seu comentário, sua discordância ou sugestão de debate na área de comentários.
O que podemos fazer para contribuir para a solução?
“Imagine que você é um professor de história romana e língua latina, ansioso por transmitir seu entusiasmo pelo mundo antigo… No entanto, você percebe que seu precioso tempo é continuamente consumido e a atenção da classe distraída por um bando de ignorantes que, com forte apoio político e financeiro, percorrem as salas de aula tentando convencer os alunos de que os romanos nunca existiram. Nunca houve um império romano. O mundo inteiro começou a existir pouco antes do que conseguimos nos lembrar. O espanhol, italiano, francês, português, catalão, ocitano e romanche, todas essas línguas e seus dialetos surgiram espontaneamente, isoladas umas das outras e sem nada dever ao latim, como seu antecessor”.
–Richard Dawkins
Com essas palavras o biólogo Richard Dawkins expressa seu desalento com uma tendência moderna importante que consiste no negacionismo científico. Ela tem muitas vertentes mas, provavelmente, a mais antiga e mais ferrenha consiste na recusa em aceitar a teoria da evolução com base em argumentos religiosos ou meramente emocionais. Temos muitos exemplos de ocorrências parecidas na história da ciência. Quando Galileu Galilei, baseado nas observações de Kepler e Copérnico, apresentou a sugestão de que nosso planeta não ocupa um lugar privilegiado no cosmos, em torno do qual giram todos os astros, mas é um astro como bilhões de outros, ele sofreu forte rejeição da comunidade e, principalmente, da igreja. Da mesma forma foi difícil (e continua sendo, para muitos) compreender que seres humanos são animais e suas origens são as mesmas que as de macacos (nossos primos próximos) e peixes (primos mais distantes). De fato a teoria da evolução faz afirmativas extraordinárias, que podem ser difíceis de aceitar, entre elas a de que quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum. É claro que afirmações extraordinárias precisam de provas extraordinárias.
Cabe a pergunta: elas existem?
“As afinidades de todos os seres da mesma classe foram às vezes representadas por uma grande árvore. Eu acredito que esse símile fala em grande parte a verdade.”
“Quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum”.
— Charles Darwin
Na imagem o primeiro esboço da “árvore da vida” no caderno de Darwin, 1837.
Não é possível hoje ter um bom entendimento da biologia sem compreender a evolução. Sequer se poderá entender muito do que está envolvido na elaboração de medicamentos e suas consequências, na vacinação, no transformação de organismos em face aos desafios que enfrentam, no surgimento das superbactérias, etc.
O que é a Teoria da Evolução?
A observação da natureza mostra que existe uma grande riqueza na variedade de espécies espalhadas pela terra e que cada uma delas mostra uma adaptação perfeita (ou quase perfeita) ao ambiente onde vivem. Animais que são predados por outros animais velozes possuem também pernas velozes ou outro mecanismo de escape tais como o disfarce ou capacidade de se esconder. Plantas com flores possuem cheiros e cores atrativas para pássaros ou insetos que as auxiliam no processo reprodutivo. Temos a impressão de observar uma máquina sofisticada que, por analogia com outras máquinas conhecidas, devem ter sido projetadas e construídas de forma deliberada e inteligente.
Na descrição do filósofo inglês do século 18, William Paley, se encontramos no chão e examinamos um relógio, veremos que ele possui peças delicadas, harmoniosamente construídas para funcionar de um certo modo e atingir um objetivo. Concluímos logo que esse relógio dever ter sido construído por um relojoeiro hábil. Da mesma forma supomos que a complexidade da natureza tem um autor, supostamente Deus. A ideia vai de encontro ao pensamento bem estabelecido das religiões e mitologias que sempre buscaram encontrar explicações e razões para a existência.
A Teoria da Evolução tem outra sugestão, uma explicação alternativa. Ela deve ser considerada como uma hipótese até que se mostre que ela descreve bem as coisas observadas na natureza e, ainda, apresenta predições de coisas ainda não observadas e que podem ser confirmadas. Se tudo isso for obtido a hipótese ganha novo patamar de credibilidade e passa a ser considerada uma teoria. Exatamente isso aconteceu com a teoria de Darwin que é hoje considerada uma das maiores conquistas do conhecimento humano, ao lado de teorias como a relatividade de Einstein e muitas outras.
Assim como aconteceu com Einstein, Darwin não tirou do nada a sua teoria mas se embasou sobre o trabalho de outros pensadores, inclusive de seu avô Erasmus que já propunha o conceito de uma natureza em evolução. Darwin foi o primeiro a usar dados coletados no mundo natural para embasar a afirmação de que a natureza está em constante transformação, e o primeiro a propor o mecanismo da seleção natural como responsável pela sofisticação e detalhamento hoje observados. Em seu livro A Origem das Espécies, 1859, ele conseguiu estabelecer uma base científica para se discutir a variedade dos seres na terra e as origens dos humanos.
Considere um grupo de seres que vivem um uma região restrita do planeta. Digamos que seja formado por pequenos ratos de cauda longa, predadores de insetos e mamíferos menores, e predados por aves de rapina. Definimos como pool genético o conjunto de genes de toda essa população. Existe uma certa variância nesse pool, uma vez que os ratos são ligeiramente diferentes uns dos outros. Como sabemos os genes são os responsáveis pelo armazenamento dos dados de construção dos indivíduos, os transportadores da hereditariedade entre pais e filhos. No entanto os genes não são invariantes: eles se transformam por meio de mecanismos diversos, sejam eles internos, como falhas de duplicação do DNA, ou externos, como influência de elementos químicos, radiação ou ação de vírus. Essas mutações são aleatórias, podendo introduzir uma melhora de performance no indivíduo, pernas mais fortes, talvez, ou causando a sua morte (como no caso de câncer). Os genes mutados são passados para os filhos se os pais sobreviverem até a idade de procriação, alterando o pool genético.
Estas mutações podem ser radicais, causando o nascimento de filhos muito diferentes dos pais, ou serem pequenas, produzindo filhos bastante semelhantes aos pais. Alterações radicais tendem a não prosperar, matando rapidamente o indivíduo. Alterações mais suaves podem trazer vantagem, como melhor velocidade de escape na fuga de um predador, ou maior competência para a captura de seu alimento. Mas também podem trazer desvantagens: indivíduos muito lentos podem ser capturados antes mesmo de se reproduzir. Uma alteração possível seria a de novos ratos nascendo com caudas mais longas. Se isso facilitar a sua captura pelos predadores, as aves de rapina, então a comunidade veria uma lenta transformação em direção à ratos de caudas mais curtas. Por outro lado o meio ambiente também faz demandas de ajustamento. Se o clima começa a ficar muito frio os ratos de pelos compridos são favorecidos enquanto aqueles de pelos curtos podem não suportar o frio e morrerem antes da idade de procriação.
Resumindo, a evolução tem dois elementos básicos: a alteração lenta dos indivíduos provocadas por mudanças aleatórias em sua genética, e a seleção natural que faz prosperar alterações favoráveis à sobrevivência dos indivíduos. A seleção natural nada tem de aleatória. Ela filtra as modificações dos indivíduos favorecendo aqueles melhor adaptados ao ambiente.
Imagine em seguida que uma barreira natural surja separando fisicamente a comunidade dos ratos. Ela pode ser, por exemplo, o surgimento de uma cadeia de montanhas intransponível bem no meio da região onde moravam os primeiros roedores, dividindo em dois o grupo original. De um lado a dieta fica inalterada. Do outro apenas insetos voadores estão disponíveis fazendo com que alterações genéticas que favorecem ratos saltadores sejam preferidos pela seleção natural. Com o tempo as duas comunidades começam a divergir, podendo ficar tão diferentes que nem mais possam acasalar entre si. Nesse caso terá surgido uma nova espécie.
Essa descrição, apesar de simplista, ilustra o mecanismo da evolução proposto por Darwin. Não se conhecia na época a genética e como ela é responsável pela transmissão de características entre pais e prole. A descrição, inicialmente apenas uma hipótese, passou pelo teste da confirmação do que se observa na natureza e fez diversas predições sobre coisas que deveriam ser observadas, e de fato foram!
É um erro comum pensar que a evolução tem um propósito, uma direção preferencial. Pior erro é considerar que a humanidade é, de alguma forma, o ápice da evolução ou que todo o processo se deu para a geração de humanos.
A teoria de Darwin não trata de como a vida surgiu. Mas, considerando que temos hoje no planeta Terra uma grande variedade de seres, e que todos eles usam o mesmo mecanismo genético de carregar informações entre as gerações (que usam o código digital de quatro dígitos, que denominamos GCAT) é válido se propor que toda a vida partiu de um único ancestral comum.
Você já deve ter notado que as pessoas, em geral, não estão muito preocupadas com a consistência lógica de suas argumentações quando debatem. Isso provoca desperdício de esforço e tempo, pelo menos quando os envolvidos estão interessados em atingir alguma conclusão sincera. É fácil perceber que nem sempre o maior empecilho é lógico. Interações humanas são complexas e envolvem mais do que mero rigor lógico. De qualquer forma é útil compreender quais são as formas de se argumentar e quais são os erros mais comuns neste campo.
Na era da comunicação facilitada pela internet o debate vem perdendo rigor e sendo dominado pela parcialidade, partidarismo, rejeição e ódio entre grupos rivais. Existem muitos motivos, além dos lógicos, para que uma pessoa defenda apaixonadamente um ponto de vista. Ela pode ter se identificado pessoalmente com o argumento, por uso continuado, por tradição ou porque o considera útil para si ou seu grupo social. Pessoas constroem autoimagens baseadas em suas crenças e se sentem atacadas ao verem em disputa aquilo que tanto prezam. Pode ocorrer que alguém se apegue a um conceito durante a argumentação, e brigue por ele, para preservar sua autoestima ou consolidar sua posição como bom debatedor.
Seja qual for a causa geradora de falhas em um debate sempre é útil aprender a formalizar o raciocínio, entender um pouco de lógica ou a falta dela. Isso nos ajuda a manter a clareza de pensamento e sua expressão. Saber analisar argumentos de outras pessoas também nos ajuda a entendê-las, aceitando suas propostas ou as rejeitando quando necessário.
Introdução
Todos os argumentos têm a mesma estrutura básica: Se \(A\) então \(B\) onde \(A\) e \(B\) são afirmações. \(A\) pode ser formado por uma ou várias premissas, um fato ou suposição usado para a construção do argumento. Às premissas se aplica um tratamento lógico (então) para chegar a \(B\), a conclusão.
Exemplo:
A equivalência é um princípio lógico. Se usamos como premissas que \(A = B\) e \(B = C\), usando o princípio lógico da equivalência, concluímos que \(A = C\).
Uma falácia lógica é a aplicação incorreta de um princípio lógico. Um argumento baseado em uma falácia não é válido. Se as premissas são verdadeiras e a lógica é válida então a conclusão é válida. Premissas falsas, mesmo com lógica válida, levam a um argumento inválido, ainda que a conclusão esteja correta. Se todas as premissas são verdadeiras e a conclusão obtida é falsa então ocorreu um erro na argumentação, uma falácia lógica.
Defender a veracidade de uma afirmação é mostrar que as premissas são verdadeiras e a argumentação é válida. Refutar uma afirmação é mostrar o oposto: que as premissas são falsas ou a argumentação é falaciosa, ou ambos estão incorretos.
Evidentemente o exame das premissas é o primeiro passo em qualquer argumentação. De nada adianta prosseguir em uma longa série de raciocínios se as premissas estão incorretas. Premissas podem ser falsas, podem não ser sólidas (carregar dúvidas) ou serem apenas expectativas dos debatedores, algo que não podem ser mostrado ou inferido à partir do que se sabe.
Não é raro que um debatedor escolha apenas as premissas adequadas ao seu argumento, ignorando as desfavoráveis. Muitas vezes a conclusão esta decidida antes do debate e as premissas são escolhidas “a dedo” (cherry picking, em inglês) para alcançar a meta desejada. Portanto é uma boa prática identificar quais são as premissas usadas, verificando se há consenso entre os debatedores de elas estão corretas. Não é incomum a definição de premissas restritivas “para efeito do argumento”. Deve-se, no entanto, lembrar que as conclusões daí obtidas também sofrem das mesmas restrições iniciais.
Também existem as premissas ocultas, tratadas adiante. Elas tornam mais difícil o exame do argumento. Um desentendimento baseado em uma premissa não declarada não terá solução até que ela seja exposta com clareza.
Exemplos:
Um criacionista (alguém que rejeita a teoria da evolução) afirma: “Não posso crer na teoria de Darwin porque não existem ‘elos perdidos’ no registro fóssil”.
“Não aceito que as mulheres sejam tratadas como homens no mercado de trabalho. Mulheres são seres delicados que devem se dedicar à criação de seus filhos”.
O “elo perdido” é uma referência a um fóssil meio humano meio macaco que provaria a evolução gradual de um animal ancestral parecido com um macaco moderno até seres humanos. No entanto antropólogos encontram toda uma série de fósseis mostrando a mudança gradual entre essas (e outras) espécies. A recusa em aceitar essa evidência está em uma premissa oculta (até que seja declarada) na crença religiosa da criação instantânea dos humanos e de todos os seres. No segundo caso é frequente o debatedor estar se baseando na premissa oculta de homens e mulheres possuem papéis fixos, determinados pela religião e pela tradição.
As duas argumentações citadas não podem levar a conclusões válidas, nem a favor e nem contra, apenas com os elementos citados. E certamente nunca chegarão a lugar algum se as premissas ocultas, que podem ser verdadeiras ou falsas, não forem declaradas e justificadas. Em ambos os casos o debate deve ser trazido para níveis mais básicos, na discussão das próprias premissas usadas.
Nossos cérebros, apesar de espetaculares, não estão livres de falhas. Pelo contrário, eles contém erros (ou bugs) conhecidos. Um exemplo desses bugs é a nossa tendência de usar atalhos de pensamento, instrumentos úteis na vida cotidiana mas que podem ser um empecilho quando tentamos ser racionais. Muitos desses processos foram acumulados evolutivamente. Por exemplo, um homem primitivo na savana pode julgar que uma folha em movimento indica a aproximação de um animal perigoso. Vale mais a pena fugir do que ir em busca da verdade.
Além disso não somos compostos apenas por partes lógicas. Humanos necessitam estar em grupo e a adesão à um conceito ou crença é parte essencial da formação desses grupos. Há quem argumente, por exemplo, que a religião foi o único instrumento com força suficiente para agregar populações enormes como as que hoje vivem nas grandes cidades. Você pode mudar de ideia para agradar sua família ou seu parceiro, sem nenhuma consideração lógica.
As falácias lógicas listadas não são independentes. Algumas delas são facetas ou variações de outra falácia. Elas podem ocorrer em grupos, mais de uma falácia na mesma argumentação. A lista que se segue não é exaustiva.
Non sequitur
A expressão latina non sequitur significa não decorre de. É a expressão genérica de uma falácia, da conclusão que não pode ser obtida logicamente das premissas. Afirmações totalmente desconexas são exemplos de non sequitur.
Exemplos:
“Minha primeira professora de piano era extremamente nervosa. Todas as professoras de piano são nervosas”.
“Sempre vejo meu vizinho com seu cachorro quando saio para caminhar. Acho que ele só caminha quando eu saio.”
Praticamente todas as falácias induzem a um erro do tipo non sequitur. Alguns autores recorrem a essa definição quando a falácia não se encaixa em nenhuma outra bem definida.
Ao homem
A falácia de ad hominem costuma ser mencionada por seu nome em latim e consiste no ataque à quem profere uma afirmação em vez de discutir o mérito da afirmação. Ela tem a intenção de desviar o foco da discussão desacreditando o oponente.
Exemplo:
“Você não pode afirmar nada sobre o regime militar de 1964 porque não é um historiador”.
“Pessoas céticas não acreditam que OVNIS (objetos voadores não identificados) vêm de outros planetas porque têm a mente fechada”.
Por mais que seja útil ouvir o relato de um historiador sobre eventos do passado, o fato de alguém não ser historiador não invalida suas afirmações no tema. Ele pode ter estudado o assunto ou simplesmente retirado a afirmação de alguma fonte válida, e pode até ter acertado por sorte. Atribuir a descrença sobre a origem extraterrestre de OVNIS à deficiência de quem não quer acreditar é outro exemplo.
De qualquer forma, diminuir o mérito de alguém para derrotá-lo em um debate consiste em ad hominem ofensivo. Também existe um segundo tipo, o ad hominem circunstancial, que ataca a argumentação questionando a motivação de quem debate.
Exemplos:
“O prefeito tomou medidas para diminuir a taxa de espalhamento da doença contagiosa na cidade, mas ele apenas quer agradar seu eleitorado e ser reeleito”.
A: “Não posso dar emprego a esse candidato porque desconfio de sua integridade. Por que ele foi demitido de seu último emprego”?
B: “Você não está qualificado para avaliar o candidato pois só mantém seu emprego por ser parente do patrão”.
Independentemente da motivação do prefeito as medidas tomadas devem ser avaliadas por seus méritos. Ataques ad hominem podem desviar o foco do debate e levar a uma mera troca de acusações.
Como em outros casos de falácias pode ser difícil saber se o argumento empregado tem ou não relevância no contexto da discussão. Um insulto ao oponente não representa, em si, um ad hominem se não for usado como meio de chegar a uma conclusão. O importante é que o argumento não é suficiente para que as partes cheguem a uma decisão. Existem casos, como em um depoimento judicial, em que podem ser extremamente importantes atacar ou defender a credibilidade de quem levanta uma argumentação.
Apelo à hipocrisia
A falácia do apelo à hipocrisia, tu quoque ( que significa: você também) ocorre quando, ao invés de considerar argumentos, o debatedor aponta alguma contradição entre o que a pessoa está defendendo e suas ações ou afirmações prévias. O objetivo é de desviar a atenção do mérito da argumentação, apontando para uma suposta incoerência do adversário. Essa falácia é também uma modalidade de ad hominem.
Exemplo:
“Você defende o socialismo mas usa um iPhone”.
A: “Se você tratar seus colegas de trabalho com cordialidade você será bem tratado por eles”. B: “Mas você é muito grosseiro com seus subordinados”.
A: “O cristianismo é bom porque estimula as pessoas a serem melhores em sua vida”. B: “Você não poderia afirmar isso porque é um péssimo pai e marido”.
Se a alegação de incoerência for falsa e inventada ela representa apenas um ataque gratuito que pode ter outras consequências além da perversão do debate. Mas, mesmo que seja verdadeira, ela não é uma argumentação válida pois é perfeitamente possível que uma pessoa incoerente esteja dizendo algo válido.
Culpa por associação
A culpar por associação consiste na tentativa de invalidar um argumento porque ele está associado a uma pessoa, ou grupos de pessoas, consideradas de má reputação por quem argumenta.
Exemplos:
“O presidente Obama queria estabelecer um sistema de saúde nos EUA semelhante ao de países socialistas, o que é inaceitável”.
“Mulheres não deveriam ter permissão para dirigir, como acontece nos países não muçulmanos.”
“O catolicismo está desacreditado no mundo porque Hitler era católico.”
O projeto de Obama para o sistema de saúde poderia ser bom (ou não) independente de ter sido o modelo adotado em alguns países socialistas. É um exemplo claro de non sequitur. A conclusão não é consequência lógica da premissa. O segundo exemplo é usado em países islâmicos que, com frequência, buscam se distanciar do comportamento ocidental. Claro que a argumentação só pode ocorrer entre pessoas que concordam com a premissa. Caso contrário ele seria um contra-argumento.
Uma forma de se conseguir aderência mais ampla para a argumentação é usar premissas universalmente (ou quase) aceitas, tais como a rejeição à Hitler e o nazismo.
Apelo às consequências
Uma afirmação pode ser verdadeira mesmo que, em decorrência dela, coisas desagradáveis possam ocorrer ou que tenhamos que concluir coisas de que não gostamos. Da mesma forma as consequências positivas de uma proposição não implicam que ela seja verdadeira. Defender ou refutar um argumento apelando para as suas consequências é uma falácia lógica comum. Reagimos com esperança às proposições com consequências positivas e com temor quando elas são negativas. Nada disso tem poder para tornar uma argumentação verdadeira ou falsa. A falácia do apelo às consequências (argumentum ad consequentiam) pode ser reconhecida como uma pista falsa ou manobra de distração (algo que nos alerta para um problema nos argumentos usados), porque desvia a atenção da proposição original para as consequências que ela gera.
A falácia pode assumir as seguintes formas:
Uma proposição é considerada falsa porque, se fosse verdadeira, implicaria ou causaria algo ruim, imoral ou indesejável (subjetiva ou objetivamente).
Uma proposição é considerada verdadeira pois, assim sendo, ela implica ou gera algo bom, desejável e moral (subjetiva ou objetivamente).
Muitas vezes essa falácia é também um apelo aos sentimentos.
Exemplos:
Historicamente a Teoria da Evolução de Darwin levou à políticas de eugenia. Logo a Teoria da Evolução é falsa.
Acreditar em Deus torna as pessoas mais caridosas (ou mais felizes), logo Deus existe.
Se a gravidade existe uma queda de um local alto pode machucar ou matar. Logo a gravidade não existe.
Uma política de redução dos gases que causam aquecimento global teria um custo alto para a economia das países. Logo esses gases não afetam o clima.
A alma humana é imortal, caso contrário não haveria motivo para viver.
Se Deus não existisse as pessoas seriam todas assassinas.
O espantalho
A falácia do espantalho consiste em desvirtuar o argumento do seu debatedor para torná-lo mais fácil de atacar, tornando-o uma caricatura deformada (o espantalho) que contém apenas aspectos desfavoráveis ou simplesmente mentirosos. Esse é um tipo de desonestidade intelectual que prejudica a racionalidade do debate. Ela conta com a ingenuidade e ignorância de quem ouve e, quando compreendida, deveria minar a confiança sobre quem usou o artifício pois, se ele é capaz de representar negativamente o argumento do oponente, provavelmente também desvirtuaria seus próprios argumentos positivamente. Deturpar um ideia é muito mais fácil do que refutar as evidências que a apoiam.
Exemplos:
“Ana disse que o governo deveria investir mais em educação. Bela respondeu dizendo que Ana odeia o Brasil pois quer que o país fique indefeso sem acesso à verbas para os militares”.
A: “Por que o governo só se preocupa com o combate ao crime relegando políticas sociais a um segundo plano”? B: “Você subestima o aumento da violência, da quebra de lei e ordem em grande escala. Você deseja uma sociedade onde as pessoas não se sintam seguras”.
“Este biólogo quer me convencer de que nossos avós eram chimpanzés que estão agora se balançando entre as árvores, uma afirmação ridícula”.
“Se humanos vieram dos macacos por que ainda existem macacos”?
Para tornar o debate mais fácil foi feita uma representação errônea e simplista da biologia evolucionária que afirma a existência de um ancestral comum de humanos e chimpanzés, há milhões de anos.
A falácia do espantalho é uma tentativa de se evitar o real assunto em debate. Ela pode ocorrer por mera ignorância do debatedor ou ser voluntária. Nesse último caso ela é uma atitude de má fé. Uma maneira sutil de fazer isso consiste em desvalorizar as defesas do adversário sem considerá-las, o que viola uma regra básica de um debate que é ouvir com atenção o que o outro diz e procurar compreender o que foi dito.
Um caso muito interessante1 diz respeito ao comportamento de pessoas contrárias ao pensamento da filósofa americana Judith Butler, reconhecida por seus estudos sobre gênero. Em sua visita ao Brasil em 2017 esses opositores se manifestaram contra a sua visita fazendo protestos no aeroporto e em frente ao local do seminário. Um dos manifestantes, um advogado de 24 anos, se explicou da seguinte forma:
“A gente não está aqui pelo tema da palestra, a gente está aqui porque Judith Butler é uma propagadora da ideologia de gênero, uma das principais criadoras e a que mais propaga isso aí. Não é contra as pessoas que são homossexuais ou contra o homem que quer se vestir de mulher. É contra uma ideologia que está sendo pregada às crianças, tentando dizer que mesmo que você nasça homem ou mulher, você pode ter um gênero diferente disso aí. É um absurdo”!
A rejeição à Butler e o protesto foram baseados numa distorção de seu pensamento. Nesse caso é difícil dizer se houve má fé com a distorção intencional das propostas da autora, ou se foi mera ignorância.
Exemplos mais sutis da falácia do espantalho:
Ateus odeiam Deus.
Ateus não acreditam em nada.
“Cherry picking” ou escolha seletiva de argumentos é uma das formas de construir um espantalho, onde apenas características favoráveis ao argumento são apresentados.
Apelo à autoridade
A falácia do apelo à autoridade consiste em afirmar que alguém, um suposto perito no assunto debatido, afirmou ou concorda com o que está sendo afirmado. O inverso também pode ser usado: as afirmações de uma pessoa não é qualificada sobre um tema devem ser falsas. A autoridade pode ser concedida a alguém que estudou o assunto por muito tempo, que tem formação acadêmica ou é reconhecido pela comunidade. Devemos nos lembrar que uma pessoa ou instituição em posição de autoridade pode estar errada. Também não é impossível que a afirmação de alguém não qualificado esteja correta.
Na prática pode ser bastante difícil lidar com essa falácia. É natural que em um debate se evoque a autoridade de um especialista no tema em questão. Se a autoridade citada for alguém realmente bem informado sua afirmação deverá ter peso no debate. No entanto as conclusões daí deduzidas não devem ser consideradas finais. Um argumento deve ser completo e formado por seus próprios méritos.
Se a opinião de um especialista for usada é necessário compreender porque ele tem esse posição e como ele obteve sua certeza. Muitas vezes é difícil, se não impossível, que pessoas não qualificadas em um aspecto específico do conhecimento compreendam plenamente as afirmações de um cientista, por exemplo. Nesse caso é importante que os debatedores compreendam, pelo menos em princípio, o método científico.
(2) Essas palavras só fazem sentido para quem quer refutar a teoria da evolução, da mesma forma que alguém que não aceita as teorias conspiratórias dos que defendem a “terra plana” não se intitulam “terra-redondistas” ou “terra-bolistas”!
Um exemplo é o debate realizado entre “evolucionistas” e “criacionistas”. A Teoria da Evolução é hoje um esteio básico para todo o entendimento da biologia. Existem inúmeras evidências que comprovam seus postulados, conclusões e previsões. Mesmo assim, principalmente com base na fé religiosa, muitas pessoas, inclusive alguns cientistas, defendem que a vida foi programada e construída por Deus em pouquíssimo tempo. É possível, portanto, encontrar estudiosos “criacionistas” (embora em pequeno número!).
Outro debate importante é sobre o aquecimento global e sua origem nas atividades humanas. Há um consenso amplo na comunidade científica de o aquecimento está ocorrendo. Um número expressivo deles ainda defende que a causa é a descarga de gás carbônico na atmosfera, principalmente devido ao uso de combustíveis fósseis. Existem também, embora em menor número, alguns estudiosos que negam o aquecimento ou que sua origem esteja na atividade humana.
Em ambos os casos a decisão sobre quem tem razão deve passar, necessariamente, por um estudo da questão e dos métodos de conclusão utilizados.
Exemplos:
“Impossibilitado de defender a sua posição de que a teoria evolutiva ‘não é real’, Caio diz que conhece um cientista que também questiona a evolução e cita uma de suas famosas afirmações”.
“Pilotos da aeronáutica, que são profissionais altamente treinados, relataram ter visto OVNIS no céu. Logo eles devem existir”.
Uma variante mais restritiva e mais fácil de ser refutada é o apelo à autoridade irrelevante.
Apelo à autoridade irrelevante
Ocorre em argumentações que o apelo faz referência a pessoas não habilitadas para opinar. O apelo a uma autoridade irrelevante, alguém que não é um especialista no tema debatido, embora não seja prova do erro, levanta uma dúvida séria sobre a afirmativa defendida. Um exemplo é o apelo a uma autoridade não revelada ou vaga, no sentido em que não se pode conferir qual foi a verdadeira afirmação por ela proferida. Hoje são clássicas as frases do tipo “estudos revelam”, “cientistas provaram”, etc. A falácia ad populum, a crença de que algo deve ser verdadeiro se é defendido por um grande número de pessoas, é outro exemplo. Outra forma clássica é o apelo à sabedoria antiga, onde se assume que algo é verdadeiro porque foi originado num passado distante. Da mesma forma o apelo à uma autoridade religiosa pode constituir uma falácia grave.
Exemplo:
“A astrologia era praticada há milênios na China, logo deve ter um fundamento”.
“Meu pastor afirma que o elo perdido entre humanos e macacos nunca foram encontrados, logo a evolução não existe”.
“Não acredito em átomos com prótons e elétrons porque nunca vi nada disso”.
O argumento de antiguidade não serve para mostrar que a astrologia tem qualquer vinculação com a realidade (embora também não sirva para desqualificá-lo). O pastor pode ser bem instruído sobre as doutrinas que ensina mas isso não o qualifica a fazer afirmações sobre biologia. No último caso a autoridade irrelevante, como ele mesmo se declara, é o próprio afirmador.
Falácia naturalista
A falácia naturalista consiste em afirmar que algo está correto ou é bom porque é natural, derivado diretamente de um objeto da natureza. Alternativamente, afirmar que algo é falso, ou ruim (mal) se não está disponível na natureza.
Exemplos:
“Medicamentos fitoterápicos não fazem mal pois são extraídos de plantas”.
“Alimentos geneticamente modificados são um grande perigo para a saúde humana”.
A falácia naturalista é o conceito de que tudo o que é encontrado na natureza é bom por princípio. Ela foi usada na base do Darwinismo Social, a crença de que ajudar pobres e doentes seria algo contrário à evolução, que depende da sobrevivência do mais adaptado. Hoje os biólogos denunciam isso como uma falácia pois eles pretendem descrever o mundo natural com honestidade, sem fazer apelos morais àquilo que julgamos ser normas de comportamento. Um exemplo é a afirmação: ‘se pássaros e outros animais cometem adultério, infanticídio e canibalismo então humanos também podem fazer isso’.” (Steven Pinker, The Blank Slate)
Remédios fitoterápicos podem ser danosos à saúde como qualquer outro remédio, principalmente se tomados em doses exageradas. Algumas plantas são venenosas, mesmo em baixas dosagens. Alimentos geneticamente modificados tem sido usados há muito tempo sem que nenhum efeito colateral para a saúde humana tenha sido detectado. Vale lembrar que a absoluta maioria dos produtos que hoje consumimos, inclusive verduras e frutas, não estão em sua forma natural mas passaram por longo processo de alteração por meio de seleções não naturais.
Esse significado do termo “falácia naturalista”, como idêntico à “apelo à natureza” e algo diferente do significado original, tem sido bastante empregado na atualidade.
A falácia do equívoco
A falácia do equívoco consiste na exploração de significados ambíguos de palavras que são usadas de maneiras diferentes durante o argumento para sustentar uma conclusão infundada. Por isso, em qualquer debate, os termos usados devem ser claramente definidos dentro do contexto em que são aplicados. Quando se emprega o mesmo sentido para uma palavra em todo o argumento, ela está sendo usada de modo unívoco ou inequívoco.
Exemplo:
“Você diz que não tem fé mas quando age com fé o tempo todo. Fecha negócios, confia em amigos, acredita que o sol vai nascer pela manhã”!
Aqui, o significado da palavra “fé” é usado à princípio como crença espiritual num criador e depois muda para uma questão de confiança em outras pessoas ou eventos naturais.
Um exemplo clássico pode ser encontrado na discussão entre religião e ciência. A expressão “por que” pode ser empregada com o significado de “quais são as causas”, e nesse sentido ela é plenamente contemplada pela busca científica. Um objeto cai porque é atraído pela massa da Terra e essa atração obedece a lei da gravitação de Newton. Essa lei não é completa e não explica a causa da atração mas apenas a sua forma. Essa limitação foi saneada (em certa medida) pela teoria de Einstein que explica a atração entre massas como causada pela curvatura do espaço-tempo. Mas, se a expressão for usada com o significado “com qual propósito”, algo que pode ser importante para a abordagem religiosa, ela não terá nenhuma resposta científica.
Exemplo:
“A ciência pode explicar como as coisas funcionam mas é incapaz de nos explicar porque existimos, porque alguma coisa é correta ou imoral. Portanto precisamos de outra fonte, como a religião, para nos dizer porque as coisas acontecem, o que é ético e o que não é.”
“Um amigo estava caminhando na calçada quando foi atingida por um tijolo que se soltou, provocando sua morte. Por que logo ele foi atingido?”
A ideia de propósito em geral envolve motivação moral que são importantes para a psique humana mas que não tem representação real na natureza. No exemplo do tijolo solto, houve motivação para que o tijolo atingisse a pessoa? Alguma justiça ou injustiça foi aplicada?
A falácia do equívoco pode estar baseada em uma falha geral na definição dos termos.
Exemplo:
“O homem é o único animal racional. Mulheres não são homens, logo nenhuma mulher é racional.”
“Beto disse que deve chover hoje. Mas não acho que nuvens não vão atender a sua expectativa.
O uso da palavra “homem” (bem equivocado!) se refere à “humanidade”, e não ao gênero. Esse é um erro comum como se vê no uso universalizado de expressões como “Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem”. No segundo caso a palavra “deve” foi usada como “é provável”, mas o outro a interpretou como “desejo que”.
Falsa dicotomia
A falsa dicotomia, ou falso dilema, é um erro lógico que consiste em excluir todas as possibilidades de resolução de uma questão deixando apenas duas categorias possíveis. Essa falácia procura estabelecer a verdade de uma afirmação em contraposição a uma única posição divergente oposta à primeira, em geral mal escolhida e fácil de refutar. Com frequência as posições consideradas representam facetas extremas de alguma questão que suporta um espectro vasto de opções. Ela se aproveita do chamado “pensamento binário”, uma consequência da crescente radicalização das posições em voga na atualidade. Ao rejeitar uma das opções apenas a versão oposta pode ser verdadeira. Essa forma de pensamento provavelmente decorre do fato de que, muitas vezes na natureza, as coisas realmente são dicotômicas, tal como a ocorrência de um evento. Algo ocorreu ou não ocorreu!
Exemplo:
“Marcos falou contra o sistema capitalista, logo ele é comunista.”
“Se não reduzirmos os gastos públicos nossa economia entrará em colapso.”
“Brasil: ame-o ou deixe-o.”
O universo não pode ter sido criado do nada, então deve ter sido criado por Deus.
O proponente de um falso dilema pode agir de forma desonesta, ocultando as demais possibilidades, mas também pode ignorar que elas existam. Em qualquer dos casos é útil que um dos debatedores possa ter uma visão mais ampla do problema, apresentando soluções adicionais.
O oposto dessa falácia também ocorre no falso contínuo, que consiste em amenizar diferenças de coisas que são, de fato, extremos opostos. Ela consiste em tomar duas coisas distintas e antagônicas e buscar amenizar a diferença entre elas sob a o argumento de que são parte de um espectro contínuo.
Exemplo:
“Políticos de extrema direita e de extrema esquerda são idênticos. Todos são apenas políticos”.
Causa questionável
A causa questionável ou causa falsa é a confusão, muito frequente, entre correlação e causalidade. A falácia que consiste em estabelecer, sem provas, que a causa de alguma coisa é um evento anterior ou simultâneo a ele. Ela é denominada também pela expressão latina post-hoc ergo propter hoc que significa “depois disso, logo causado por isso”. Se um evento ocorre depois de outro assume-se que ele foi causado pelo primeiro.
A correlação entre eventos pode ser pura coincidência ou resultado de algum outro fator. Sem evidências extras não é possível concluir que um evento causou o outro. Existem inúmeros exemplos clássicos de coisas que exibem comportamentos sincronizados (talvez aproximadamente) por algum tempo sem que um seja o causador do outro.
Exemplos:
Em uma universidade (fictícia) se verificou que 80% dos alunos que abandonam cursos tiravam notas abaixo da média. Logo se conclui que o baixo desempenho é a causa da evasão.
“Na década de 1990 o envolvimento das pessoas em grupos religiosos e o uso de drogas estavam em alta. Portanto a religiosidade provoca o uso de drogas”.
Nesses casos as conclusões apressadas geram falácias lógicas. Estudos mostram que existem muitos fatores que causam essa evasão. O abandono do curso e o baixo desempenho podem ter causas comuns tais como acesso do estudante à recursos financeiros e escolha errônea da carreira. Pode ocorrer que as drogas incrementem a religiosidade, que as variáveis estejam atreladas a uma terceira, ou ainda que sejam totalmente não correlacionadas.
Existe também abuso lógico na atitude contrária: a negação de causalidade bem estabelecida por estudo estatístico.
Exemplo:
No estudos clínicos de verificação de eficiência de um medicamento novo envolve muitas variáveis que devem ser controladas. Não basta correlacionar o uso de medicamento com a melhora do paciente. Controles usuais são o uso de placebos e de controle randomizado e cego de pacientes que usam a droga, usam o placebo ou não usam nada.
Foi observado que o fumo causa câncer. A indústria do cigarro tentou descartar a afirmação alegando que “correlação não prova causalidade”. Vários outros teste foram necessários, tais como associar tempo de uso do cigarro e uso de filtros com a incidência da doença.
Essa busca forçada por explicações causais são uma característica evolutiva de nosso cérebro treinado para encontrar padrões. Ele é falho pois nos faz perceber padrões e relações que não existem. É o que ocorre quando julgamos ouvir alguém invadindo nossa casa quando escutamos um barulho natural ou não ligado a um invasor. Efeito parecido é o da pareidolia, que nos faz ver faces em borrões e manchas.
Exemplo:
“Os terremotos e furações estão muito frequentes porque as crianças não rezam mais nas escolas”.
“A AIDS é uma doença gerada pelo comportamento imoral de algumas pessoas”.
Resta lembrar que, mesmo que se verifique mais tarde que a suposta causa é responsável pelo evento que se deseja explicar, a afirmação continua falaciosa pois é logicamente incompleta. A falácia seguinte não raro ocorre junto com a causa questionável.
Generalização precipitada
Generalização precipitada é a falácia que ocorre quando se conclui algo a partir de amostra pequena ou específica demais para representar o conjunto sobre o qual se quer decidir algo.
Exemplos:
“Alguns adolescentes vandalizaram o praça pública. Adolescentes são sempre mal comportados”.
“Em Nova Iorque e fui maltratado por vendedores nas lojas. Americanos são muito grossos”.
“A maioria dos brasileiros apoiam o plano do governo federal para aumentar a oferta de empregos diminuindo os direitos trabalhistas. Sabemos isso porque perguntamos a opinião de quase todos os moradores de um bairro nobre de São Paulo.”
“As pessoas acreditam que um determinado medicamento funciona bem porque foi testado e aprovado por alguns conhecidos”.
Generalizações precipitadas podem levar a erros catastróficos. Foi o que se deu com a explosão do foguete europeu Ariane 5 em seu primeiro voo de teste. O software de controle do foguete havia sido utilizado sem falhas com o modelo anterior, Ariane 4. No entanto os engenheiros descobriram que nem todos os cenários possíveis de ocorrer no Ariane 5 estavam previstos pelos testes anteriores. Exatamente um desses que causou a falha.
Apelo ao medo
A falácia do apelo ao medo (argumentum ad metum) cria a ameaça de consequências desastrosas caso a proposta do adversário seja escolhida, sem provas objetivas dessas consequências (ou não seria uma falácia). O argumento é portanto baseada em distorções dos fatos, de retórica ou puras mentiras.
Exemplo:
“Todos os funcionários dessa empresa devem votar no meu candidato. Se o outro candidato ganhar ele vai aumentar impostos e vocês ficarão desempregados.”
“É melhor você me entregar todos os seus objetos de valor antes que a polícia chegue aqui. Senão, os policiais vão colocá-los num depósito e suas coisas ficarão perdidas no depósito.” (Do livro O processo de Kafka).
“Converta-se à minha religião e vá para o céu. Do contrário vá para o inferno”.
“Respeito sua opinião mas ela te trará muito sofrimento na vida”.
“Faça esse plano de seguros pois você pode sofrer um acidente grave”.
Ameaças ostensivas e genéricas tendem a não oferecer evidências e são, quase sempre, tentativas de manipulação. No apelo ao medo há a tentativa de argumentação, em geral obscurecendo a ligação frágil entre a decisão e a consequência nefasta.
Quando um apelo ao medo descreve uma série de eventos indesejáveis como consequência de uma determinada opção, sem mostrar a conexão causal entre a proposta e essas consequências, ele se assemelha à falácia da bola de neve ou rampa escorregadia. Quando o apelo menciona apenas uma alternativa ela pode ser um tipo de falso dilema.
Note que existem afirmações que fazem apelo ao medo mas não são falaciosas. Nesse caso a ameaça pode ser comprovada por estudo ou argumentação posterior.
Exemplo:
“Ao dirigir em caso de chuva forte diminua a velocidade, ou você poderá sofrer um acidente”.
A insinuação de medo, incerteza e dúvida é uma técnica usada com frequência em campanhas de marketing (onde se criou a expressão FUD, fear, uncertainty and doubt). Ela é muito usada na busca de fidelização de clientes a uma determinada marca através de sugestão de que háa algum risco na compra de produto de outra marca.
Apelo à ignorância
O apelo à ignorância (ad ignorantiam) consiste em afirmar que algo é verdade apenas porque não foi provado falso. Ele transforma a ausência de evidência em evidência de ausência.
Exemplos:
“Não temos como explicar todas as aparições de OVNIs, logo eles são naves de outros planetas.” (Citado por Carl Sagan)
“A perceção extrassensorial é um fato pois não conhecemos a totalidade do funcionamento do cérebro humano”.
“Não posso entender como humanos podem ter viajado até a Lua, logo isso nunca aconteceu.”
“Não temos a menor compreensão de como a vida surgiu na Terra e nem como foram formadas as estruturas biológicas mais complexas. Por isso defendo o desenho inteligente”.
Ela é uma forma de esquecer um fato lógico básico e importante que é o ônus da prova é de quem faz afirmação“. Se afirmo que possuo um unicórnio rosa e invisível guardado no armário eu terei que provar isso, e não esperar que outra pessoa mostre que isso não é possível.
Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Caso contrário temos que assumir nossa ignorância sobre o fato. Além disso não é correto se afirmar que, coisas para as quais não existem explicação no momento, são inexplicáveis.
Nenhum escocês de verdade
Essa falácia recebeu o nome do exemplo dado por Antony Flew em 1975 em seu livro Thinking about Thinking (Pensando sobre pensar). “Lendo o jornal Hamish se depara com uma notícia sobre um inglês que cometeu um crime horroroso. Ele reage dizendo: ‘Nenhum escocês faria algo tão horrível’. No dia seguinte o jornal traz outra notícia sobre um escocês que cometeu outro crime, ainda mais terrível. Mas Hamish não muda de opinião e afirma: ‘Nenhum escocês de verdade faria tal coisa’”.
A segunda afirmação redefine o que se entende por escocês de forma a manter inalterada a afirmação. Esse tipo de argumento surge quando alguém faz uma generalização sobre um determinado conjunto de elementos e, sendo mais tarde desafiado por evidências que mostram o contrário, ele redefine a natureza de conjunto a que se referia, de forma vaga e arbitrária.
Exemplo:
“Programadores são pessoas antissociais e de difícil convívio.” Outra pessoa nega essa afirmação dizendo: “Conheço o Paulo, um programador extrovertido e afável, que se relaciona muito bem com todas as pessoas da empresa”. O afirmador inicial refaz sua afirmação: “Verdade, mas o Paulo não é um programador típico.”
Aqui, não está claro o que ele considera ser um programador típico. Com uma redefinição apropriada do conjunto mencionado, a afirmação seria sempre verdadeira perdendo portanto a sua importância.
Se o debatedor redefine uma categoria flexibilizando o significado do termo usado para definí-la ele pode estar usando também a falácia do equívoco (onde um termo é usado de formas diferentes). Se ele altera o escopo do conjunto para menosprezar o argumento do adversário ele pode estar usando o espantalho.
Falácia genética
Nesse caso a palavra genética se refere às origens de um argumento, tanto histórica como da pessoa que o gerou. A falácia genética ocorre quando um argumento é defendido ou desvalorizado com base em suas origens, sem o exame de seu mérito intrínseco. Ela exibe apreço (ou desprezo) pelo argumento apenas devido às suas origens.
Exemplo:
“Ele apoia a greve dos sindicatos porque era um sindicalista antes de se tornar político”.
“Estamos no século XXI, não podemos continuar mantendo crenças da Idade do Bronze.”
“Carros produzidos na China não são bons porque eu não confio em chineses.”
“Não deveríamos continuar usando os termos ‘por do sol’ ou ‘sol nascente’ pois essas expressões foram criadas quando se pensava que o sol girava em torno da terra.”
No primeiro caso não há análise do mérito em se apoiar a greve mas apenas uma tentativa de desvalorizar o apoio com base na origem do político. No segundo não existe uma consideração sobre o porque das ideias antigas não permanecerem válidas. A terceira espera lançar descrédito sobre um produto baseado na desconfiança vaga de quem o produziu. Todas as três afirmações podem ser verdadeiras, mas não devido à argumentação que apresentam. A afirmação sobre geocentrismo parte de uma premissa verdadeira, a origem das expressões, mas desconsidera que as palavras ganharam novo significado com o novo entendimento da astronomia.
Inconsistência
A inconsistência consiste na aplicação de um critério ou regra para apenas alguns membros de alguma classe, deixando indevidamente outros de fora.
Exemplo:
“Somos a favor de uma regulamentação forte sobre o uso e comercialização de medicamentos, mas pela liberação da venda indiscriminada de fitoterápicos e complementos alimentares”.
“A Bíblia é um livro que só contém verdades e os cientistas são pessoas iludidas por sua própria vaidade. De fato muitos cientistas mostraram que o dilúvio de Noé realmente aconteceu”.
Afirmação do consequente
Na lógica formal se usa a expressão modo de afirmar (modus ponens) com o seguinte significado: supondo que A implica C (ou seja, sempre que A é verdade C também é) então basta mostrar a veracidade de A para concluir a de C. A é chamado de antecedente, C o consequente. Essa é uma regra de inferência, já citada pelo pensador grego Teofrasto.
Exemplos:
Premissa: Se A então C: A: Se você tem uma senha válida, C: você pode entrar na rede de computadores
Se sabemos que a premissa A é verdadeira podemos concluir que C é verdadeiro: A: Você tem uma senha válida,: C: logo pode entrar na rede de computadores.
“Uma pessoa nascida no Canadá é canadense.”
“Bela nasceu em Ontário logo ela é canadense.”
A falácia da afirmação do consequente inverte, erroneamente, a lógica do modus ponens. Ele promove uma inversão da relação de causa e efeito, afirmando que algo é causado por sua própria consequência.
Exemplos:
“Carlos é canadense logo ele nasceu no Canadá.”
“Dario entrou na rede de computadores, logo ele possui senha válida.”
“Pessoas que frequentam bons cursos universitários se tornam cultas. Erasmus é culto, logo cursou boa universidade.”
No primeiro caso é possível que Carlos tenha nascido em outro país e se naturalizado canadense. E a rede de computadores pode permitir o acesso de usuários “convidados”, sem necessidade de senha. Erasmus pode ser um autodidata.
Ladeira escorregadia
A ladeira escorregadia (“slipery slope”, em inglês) é conhecida também como “bola de neve”. Esta falácia busca refutar uma proposta sob a argumentação de que sua aceitação produziria uma sequência de eventos indesejáveis. Aqui também, pode ser correto dizer que existe uma certa chance de que os eventos possam ser produzidos, mas a argumentação falaciosa não oferece prova de que eles são inevitáveis, como se tenta fazer parecer. É frequente que essa argumentação esteja associada ao medo, estando relacionada a outras falácias como o apelo ao medo, falso dilema e argumento a partir das consequências.
Em outras palavras ela afirma que se uma posição for aceita como verdadeira necessariamente posições muito extremas e radicais terão que ser igualmente aceitas.
Exemplos:
“Não permite que seu filho jogue video-games violentos. Isso vai torná-lo antissocial, irritadiço e tendente a partir para uma vida de criminalidade”.
“O acesso à internet não pode ser livre. Com ele as pessoas frequentam sites pornográficos, o que deteriora a moralidade social e nos leva a um comportamento de meros animais”.
“O rock (música) ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo.”
Nenhum dos argumentos apresenta evidências de que existem relações entre as premissas e as conclusões. Argumentos desse tipo muitas vezes estão carregados de premissas ocultas, algumas delas sobre temas que nem o afirmador gostaria de revelar publicamente.
Apelo à popularidade
O apelo à popularidade, ou apelo ao povo (argumentum ad populum), visa mostrar que algo é verdadeiro apenas porque muitas pessoas o aceitam como tal. Ele se baseia na crença comum de que algo aceito pela maioria deve ser verdade ou correto.
Exemplos:
“Todo mundo diz que não há problema em mentir, desde que você não seja pego.”
“Pode ser contra a lei beber quando você tem 18 anos mas todo mundo faz isso. Então está tudo bem.”
“25% da população acredita que o aquecimento global é uma farsa. Logo deve haver alguma verdade nisso!”
Dietas de baixo carboidrato devem ser saudáveis pois todos os meus amigos estão fazendo, com sucesso!”
Vários exemplos interessantes podem ser encontrados na história da ciência. Quando Galileu Galilei, com base em suas observações e estudo da obra de Copérnico, concluiu que a Terra girava em torno do Sol ele foi ridicularizado porque era crença comum, mesmo entre as pessoas cultas da época, que todos os astros giravam em torno de nosso planeta. O mesmo ocorreu quando ele viu manchas no Sol, algo impossível para o pensamento da época que considerava a substância celeste como imaculada.
O médico australiano Barry Marshall concluiu que as bactérias H. pylori poderiam causar úlceras estomacais em pessoas infectadas. A comunidade científica rejeitou totalmente a ideia que destoava do pensamento estabelecido na época. Para que seus colegas considerassem seu argumento, em 1984 Marshall se inoculou com essas bactérias provocando úlceras em si mesmo e se curando depois com antibióticos.
O ambiente de publicidade usa a técnica de convencer as pessoas a usar um produto fazendo-as crer (ou perceber) que muitas outras pessoas já o fazem. Independentemente de ser um bom produto ou não a argumentação é falaciosa. Um exemplo é vender um sabonete sob a alegação de que os artistas usam esse produto. Também os políticos se aproveitam de popularidade para serem eleitos e, depois, para impulsionar suas campanhas. É o que faz com que tantas pessoas da mídia, apresentadores de televisão, radialistas, etc., sejam eleitos com tanta frequência. Não é impossível que um apresentador de televisão famoso possa ser um político mas sua fama, apenas, não é suficiente para estabelecer essa afirmação.
Exemplo do argumento sendo usado de forma reversa:
Todo mundo ama os Beatles e isso significa, provavelmente, que eles não eram tão talentosos quanto os Rolling Stones, que não se esforçaram tanto para agradar ao grande público.
Raciocínio circular
No raciocínio circular as premissas são tomadas diretamente como sendo a conclusão. Essa conclusão pode ser apenas uma repetição das premissas, ditas em outras palavras. A afirmação, se A é verdade então A, é óbvia mas não acrescenta nada. Em alguns casos podem existir premissas não declaradas, o que torna a falácia mais difícil de ser detectada. Essas premissas podem ter sido consideradas conceitos fundamentais ou de domínio de todos, ou estarem omitidas por má fé de quem faz a afirmação.
Exemplo:
“Você está completamente equivocado, pois o que falou não faz o menor sentido.”
“Deus existe pois a Bíblia afirma isso. A Bíblia tem autoridade porque foi inspirada por Deus”.
No primeiro caso as duas afirmações significam a mesma coisa. No segundo o argumento é inteiramente inválido pois, para quem não acredita em Deus, ele não pode ter escrito ou inspirado os autores da Bíblia.
Argumentos circulares muitas vezes apenas afirmam tautologias, que são argumentos que devem ser verdadeiros em qualquer leitura que deles se faça, ou seja, a conclusão é a própria premissa. Em alguns casos a conclusão é expressa de modo diferente da premissa, o que é uma estratégia para dissimular a falácia.
Exemplo:
“Terapias de imposição de mãos são eficazes porque manipulam a força vital do paciente”.
A definição de “terapia de imposição de mãos” está exatamente na alegada possibilidade de manipulação de uma “força vital”, sem contato físico com o paciente. Para mostrar que tais terapias são eficazes seria necessário apresentar outras provas que não a definição do termo, entre elas a existência da chamada “força vital”.
Petição de princípio
A petição de princípio (petitio principii), algumas vezes chamada de “implorando pela pergunta” (ou begging the question, em ingles) é similar ao raciocínio circular. Esta falácia é a tentativa de inserir a conclusão dentro da premissa, em geral de forma insidiosa e pouco clara. Ela pode aparecer na forma de perguntas que, em si mesmas, já carregam a conclusão desejada. Ela difere do raciocínio circular pois a pergunta ou premissa não precisa ser necessariamente idêntica à conclusão desejada.
Exemplos:
“Você já parou de usar drogas?”
“Por que os cientistas temem as afirmações dos religiosos?”
A primeira pergunta afirma que a pessoa usava drogas. A segunda supõe que tal temor existe.
Falsa analogia
A consideração de coisas análogas pode ser útil para o entendimento de algo desconhecido, pelo menos em princípio. O organismo de ratos reage de forma análoga ao humano. Teste de medicamentos em ratos podem sugerir efeitos importantes que uma pessoa teria ao usar o mesmo medicamento. Esses efeitos devem ser depois testados em pessoas antes que seja colocado para uso comum.
Um argumento baseado em falsa analogia supõe similaridade entre coisas, pessoas ou situações que não são similares. Ou, pelo menos, não são similares da forma proposta.
Exemplo:
“A probabilidade de que um organismo complexo se desenvolva ao acaso é idêntica a de que um tornado passando por um ferro-velho crie um avião”.
Não existe similaridade entre os processos. A evolução não funciona ao acaso, como se costuma afirmar. Ela é o resultado de transformações aleatórias (essa parte ocorre por acaso!) filtradas pela seleção natural. Ela é a acumulação, ao longo de muito tempo, de transformações favoráveis, no sentido de favorecer a preservação e multiplicação dos organismos.
Outra forma de se usar falsas analogias consiste em tomar coisas que são realmente análogas, mas não no aspecto considerado no debate.
Composição e divisão
A composição e divisão são dois tipos de falácias assemelhados. A falácia da composição ocorre quando alguém afirma que um conjunto inteiro de elementos têm um atributo, partindo do conhecimento que alguns elementos do conjunto tem esse atributo. Ou seja, quando se julga o todo por suas partes.
Exemplo:
“Em um curral repleto de bois sabemos que cada boi tem (ou teve) uma mãe. Logo todos os bois do curral têm a mesma mãe”.
“Cada módulo desse software foi submetido a testes e passou em todos. Portanto podemos integrar os os módulos em um software final, sabendo que ele também passará nos testes”.
Quando as partes de um software (por ex.) são juntadas para formar um sistema, um outro nível de complexidade é criado apresentando novas propriedades e possíveis erros.
O oposto acontece na falácia da divisão, quando se infere que as partes devem ter um atributo que pertence ao todo.
Exemplo:
“Esse é um excelente time de futebol. Logo todos os seus jogadores são ótimos”.
Claro que existem ótimos times onde todos os jogadores são bons. Mas também pode ocorrer que as habilidades de cada um deles, combinadas com as de seus colegas, tornem o time de excelência sem que cada jogador particularmente seja tão bom.
O tema é bastante difícil. Um sistema muito complexo pode ser (e geralmente é) composto por grande número de partes simples. A simplicidade das partes não pode ser usada para argumentar pela simplicidade do conjunto inteiro.
Alegação especial
Alegação especial (raciocínio ad-hoc) consiste na introdução arbitrária de novo elementos na argumentação de forma a torná-la válida.
Exemplo:
A: “A percepção extrassensorial não foi demonstrada em nenhum experimento controlado”.
B: “Percepção extrassensorial não funciona na presença de céticos”.
Uma forma de alegação especial é a falácia seguinte.
O Objetivo móvel
O Objetivo Móvel é um método de negação que altera arbitrariamente os critérios exigidos para uma prova. Ele usa a exigência da exibição de evidências que estão além do alcance. Caso novas evidências surjam, atendendo aos critérios anteriores, a meta é empurrada para mais longe de modo a ficar sempre inalcansável. Em alguns casos, critérios impossíveis são exigidos logo no início, movendo a meta definitivamente para fora do alcance da argumentação.
Exemplo:
A: “É impossível ir até a Antártica pois existem guardas armados que impedem o acesso”. B: “Muitas pessoas já foram à Antártica”. A: “Mas só alcançaram as bordas, sem nunca ultrapassá-las”. B: “Existem voos do Chile até a Austrália que cruzam o polo Sul”. A: “Todas essas pessoas estão mentindo. Todas fazem parte de uma conspiração global para que acreditemos na terra redonda”.
Uma pessoa se diz contra o uso de vacinas pois ouviu dizer que elas contêm mercúrio que causaria autismo. Então ela é informada que o mercúrio deixou de ser usado em vacinas mas a incidência do autismo não se alterou. A pessoa então afirma que outro produto na vacina é o causador do autismo. A recusa à vacinação tem causado problemas sérios nas comunidades, inclusive com o retorno de doenças contagiosas consideradas derrotadas.
Defensores da terra plana são fonte farta de exemplos de falácias generalizadas, em particular o objetivo móvel. Quando confrontadas com imagens em tempo real feita pela ISS (Estação Espacial Internacional) elas alegam efeitos de distorção das lentes. Imagens do planeta tiradas de fora da atmosfera são tidas como montagens que corroboram sua crença em um complô mundial.
Algo parecido ocorre com aqueles que se recusam a aceitar que o programa espacial levou pessoas até a Lua. Eles possuem um número de argumentos que são mantidos, independente das explicações dadas aos seus questionamentos. Observe que não é fácil alguém demonstrar de forma final que o programa Apolo existiu e foi bem sucedido3 (exceto se você tiver acesso à documentação da NASA ou um laser e souber direcioná-lo para o espelho deixado na Lua pela Apolo 11). Negar isso, no entanto, implica em aceitar uma conspiração entre todas as agências espaciais, cientistas da área, jornalistas, autoridades, etc.
(3) Em julho de 1969 a Apolo 11 levou três astronautas até a superfície da Lua. Eles colheram material do solo lunar e deixaram lá alguns objetos, entre eles um espelho que reflete raios lasers emitidos da Terra. Várias novas descobertas decorreram do experimento, entre elas:
A distância da Terra à Lua pode ser medida com precisão milimétrica.
A Lua está se afastando da Terra em uma taxa de 3,8 cm/ano.
A Lua provavelmente tem núcleo líquido ocupando cerca de 20% de seu raio.
A força da gravidade universal é muito estável.
A Teoria da Gravitação de Einstein faz predições corretas sobre a órbita da Lua.
Na foto o “Experimento de Alcance de Laser”, espelho deixado na Lua pela Apolo 11.
Definições
Argumento é um conjunto de proposições que buscam concluir alguma coisa ou persuadir outra pessoa por meio do debate. Proposições, ou afirmações, podem ser verdadeiras ou falsas.
Premissas são afirmação usadas como base de um raciocínio ou argumento.
Conclusões são afirmações que decorrem logicamente das premissas.
Uma argumentação correta, ou o debate, é a forma de partir de premissas e obter uma conclusão que logicamente decorre delas. Premissas falsas levarão à conclusões falsas.
Falseabilidade é uma característica de uma proposição que permite que ela seja refutada (desmentida), por meio de raciocínio, uma observação ou um experimento.
Cientificamente hipóteses são argumentações, em geral complexas, que podem ser falseadas. Se as tentativas de falsear a hipótese não forem bem sucedidas ela adquire o status de teoria. Uma afirmação que não é falseável não é uma afirmação científica.
Exemplo:
“Existe um universo paralelo que não interage com o nosso de nenhuma maneira”.
“A alma humana não pode ser detectada por nenhum instrumento, por mais sensível que seja”.
Nenhuma das duas afirmações são falseáveis.
Falácias lógicas são erros no raciocínio usado para fazer a transição de uma proposição para outra e resultam em um argumento falho. Isso ocorre quando conclusões são obtidas através de premissas que não justificam aquele resultado. Falácias violam princípios lógicos e as regras que norteiam um bom argumento. No entanto é possível que uma conclusão esteja correta mesmo que obtida por meio de falácias. Elas são, portanto, indicações ou alertas para erros. Para uma boa conduta de raciocínio ou debate as falácias lógicas devem ser evitadas.
Hoje é comum se ver discussões (veja por exemplo as seções de comentários na internet) onde uma afirmação é descartada porque o afirmador não fez uma boa defesa de sua afirmação. Não é raro se ver um leigo explicando de forma fraca ou incorreta um aspecto técnico ou científico.
Um argumento dedutivo é uma forma de extrair conclusões corretas de premissas corretas. A conclusão decorre das premissas, como consequência lógica.
Exemplo:
“Todos os homens são mortais. Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal.”
Um argumento dedutivo é válido se não existem falhas lógicas que partem das premissas para alcançar a conclusão. Um argumento é inválido se isso não ocorrer. Um argumento dedutivo é sólido se for válido e suas premissas verdadeiras. Em princípio se busca estabelecer a verdade verificando que as premissas estão corretas e as conclusões decorrem logicamente delas.
Um argumento indutivo é uma forma de coletar evidências parciais para compor uma hipótese mais ampla. Ao contrário do pensamento dedutivo, que fornece resultados verdadeiros (se o processo for logicamente correto), o resultado da indução tem uma probabilidade de estar correto, dependendo do número de evidências coletadas. Quanto melhor se escolher os resultados que nos fornecem evidências para uma conclusão indutiva, mais confiável é essa conclusão.
Exemplos:
“Em uma pesquisa eleitoral é impossível coletar a intenção de voto de todos os eleitores. Por isso se entrevista parte deles e se induz qual seria o resultado das urnas”.
“Todas as medições feitas até hoje da velocidade da luz no vácuo (geralmente denotada pela letra \(c\)) resultam em \(c = 3×10^8 m/s\). Dai se conclui que essa é uma constante universal”.
Para as pesquisas eleitorais existem técnicas sofisticadas de escolha da amostra (os votos verificados) que melhor representam a população (todos os votos). Quanto melhor for essa escolha menor a faixa de erro envolvida. Quanto à velocidade da luz, não temos como saber se ela é a mesma em um ponto muito distante do universo ou em algum tempo remoto no passado. Uma única medida não compatível bastará para entendermos que essa não é uma quantidade universal.
Na ciência o raciocínio indutivo é geralmente usado na construção dos modelos que são testados e depois se tornam teorias. Um único fato discordante põe por terra toda a teoria.
Teorias científicas devem ter poder explicativo (explicar os fatos já observados) e poder preditivo (a capacidade de prever ocorrências de coisas nunca vistas). A teoria da evolução, por exemplo, prevê que ancestrais comuns devem ser encontrados para quaisquer dois seres vivos na atualidade. Esses ancestrais são encontrados em abundância no registro fóssil.
Exemplo:
É possível verificar a idade de fósseis por vários meios. Se um único fóssil for encontrado em uma camada geológica com data diferente da data medida por outros meios, como a datação por carbono 14, a teoria da evolução poderia ser questionada.
Se um único objeto com massa de repouso não nula for encontrado com velocidade superior à da luz a teoria da relatividade ficaria questionada.
Redução ao absurdo
Redução ao absurdo (reductio ad absurdum) é uma argumentação válida da lógica formal. Ela assume a seguinte forma: para demonstrar que uma premissa é falsa se supõe provisoriamente que ela seja verdadeira. Em seguida se mostra que essa suposição conduz a conclusão absurda (claramente falsa) ou contraditória com a própria premissa. Se a contradição é derivada de várias premissas se pode concluir que menos uma delas é falsa.
Exemplo:
Na matemática essa técnica é bastante usada. Aristóteles em Analytica Priora apresentou a prova de que a raiz quadrada de 2 é um número irracional (não pode ser escrito como uma fração). Para isso ele supôs que esse número pudesse ser expresso como um racional a/b irredutível e concluiu que tanto a como b devem ser par, o que contraria a afirmação de que a fração é irredutível (não pode ser simplificada). Essa demonstração foi muito importante para o pensamento grego porque se julgava que todo número deveria ser um racional.
A navalha de Occam
A navalha de Occam é um dos princípios básicos norteadores do pensamento lógico, considerado auto-evidente e sem necessidade de demonstração. Ela afirma que entre várias hipóteses formuladas para explicar evidências observadas a mais simples deve ser preferida. A proposta do princípio por William de Occam (1285-1347), monge e filósofo inglês, era um pouco diferente da que usamos hoje e era em princípio usada como argumento teológico.
Exemplo:
Imagine que você chega em casa e encontra tudo desarrumado. Gavetas e portas de armários estão abertas e seu conteúdo espalhado pelo chão. Antes de qualquer perícia alguém sugere três hipóteses para explicar o sucedido.
Um ladrão entrou em sua casa para roubar.
Alienígenas do espaço sideral vieram estudar o comportamento humano.
Almas de pessoas já falecidas vieram cumprir algum plano de vingança pessoal.
Mesmo que se aceite as três hipóteses como possíveis é mais sensato considerar a primeira delas como válida, exceto se provas extraordinárias sugerirem as demais.
Occam não foi o primeiro usar o princípio o princípio da parcimônia. Aristóteles no século 4 a.C. já afirmava coisa semelhante. Em seu livro Análise Posterior: “Podemos supor a superioridade de uma demonstração que é derivada de um número menor de hipóteses.” Mais tarde Ptolomeu afirmou que “consideramos um bom princípio explicar os fenômenos com as hipóteses mais simples possíveis”.
Bibliografia
Almossawi, Ali: An illustrated book of bad arguments, The Experiment, New York, 2013.