“Nossas crenças não repousam pacificamente em nossos cérebros esperando serem confirmadas ou negadas pela informação que recebemos. Pelo contrário, elas agem ativamente modificando a forma como vemos o mundo.
—Richard Wiseman
Introdução e Conclusão
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Pretendemos aqui explorar os argumentos que indicam as seguintes conclusões:
Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Em seguida, dentro da suposição de que queremos conhecer as coisas com algum grau de confiança, pretendemos argumentar que existe uma forma de contornar, em algum nível, essas limitações. Ela consiste em analisar o próprio mecanismo, algo que vem sendo chamado de metacognição. Além disso, de muitas formas diferentes, o método científico foi desenvolvido para anular (ou minorar) o efeito do erro cognitivo e nos permitir um vislumbre de como funciona a natureza.
Para efeito de discussão é praxe se estabelecer uma distinção entre órgãos sensoriais, dos quais os mais óbvios são a visão, audição, tato, olfato e paladar, e nosso mecanismo de processamento dos dados que obtemos por meio deles. Esse processamento ocorre principalmente no cérebro com seu poder de análise e memória. No entanto a divisão não é perfeita pois nosso cérebro se ajusta à limitação dos sentidos. Não conseguimos pensar em quatro dimensões porque só vemos duas (e calculamos uma terceira). Não podemos planejar um ato ou movimento que nosso cérebro sequer possa imaginar. A metáfora do cérebro como um computador composto de hardware e software pode ser útil até um ponto mas quebra quando pensamos que o cérebro tem plasticidade e se modifica de acordo com o conteúdo a ele apresentado. Naturalmente um cérebro ampliado pode ter pensamentos ampliados e essa dinâmica não tem fim. A modificação dos sentidos também age sobre a capacidade de processamento. Em nós, hardware e software se confundem.
O que é Viés de Cognição?
Apesar da complexidade e eficiência de nosso cérebro, com frequência ele toma atalhos para responder mais rapidamente à demandas do cotidiano. Por exemplo, no passado remoto, nas savanas, o movimento de folhas e barulho de passos deveria ser rapidamente interpretado como a aproximação de um animal perigoso que exige a postura de defesa ou fuga. Essa é uma característica evolutiva pois indivíduos “corajosos” certamente eram mortos mais cedo por predadores.
Uma forma clara de percebermos essas “imprecisões” nos sentidos está nas ilusões óticas, imagens fixas que parecem se mover ou que mostram coisas totalmente diferentes dependendo como se olha. Mágicos compreendem bem esse efeito e se utilizam dele para realizar suas façanhas. Eles sabem, por exemplo, que nossos olhos não conseguem gerar imagens nítidas de objetos em movimentos. Se olhamos fixamente para o rosto do mágico não conseguimos ver o que ele faz com as mãos em movimento.
Parte do problema está em que tudo o que vemos (ou ouvimos, etc) é construído no cérebro e não uma mera imagem objetiva do mundo exterior. Muitos exemplos interessantes podem ser listados: possuímos um mecanismo de identificação de fisionomia, algo como um aplicativo interno que reforça traços no rosto das pessoas para que as identifiquemos. Um prova disso é o efeito de pareidolia que é a tendência de ver rostos e formas humanas em manchas, nuvens e borrões. Se você olha para um lado da sala onde está, e move rapidamente os olhos para o outro lado, você não deixa de ver a sala durante o movimento dos olhos. No entanto, fisicamente essa imagem está borrada pelo efeito do movimento. Nosso cérebro consegue apagar a imagem borrada e substituí-la por outra da sala que é calculada e montada à partir de memórias que temos do ambiente.
O conceito de viés de cognição foi proposto por Amos Tversky e Daniel Kahneman em 1972. Depois deles muitos pesquisadores estudaram e descreveram tipos diferentes de vieses que afetam nossa percepção e análise das coisas e capacidade de decisões e julgamentos em questões diversas como no comportamento social, financeiro econômico, na educação, etc.
Você já se perguntou a razão de as lojas colocarem preços fracionários em seus produtos. Que diferença faz um item de mercado a R$39,99 ou R$40,00? Em compras desse tipo quantas vezes você recebeu 1 centavo de troco? Ocorre que temos uma tendência de nos balizar pela análise do primeiro dígito à esquerda. Esse atalho, que economiza o cérebro de um processamento mais dispendioso, pode ser útil algumas vezes mas gera essa prática exploratória comum do consumidor, simples, ingênua mas efetiva, em alguns casos.
Todas as pessoas estão sujeitas a erros por viés de cognição. Ele ocorre, por exemplo, quando você só aceita ler artigos em jornais ou assistir vídeos ou canais de TV que concordam com você, ou só considerar novidades que apoiam sua visão de mundo. Ele ocorre quando você aprende um pouco sobre algum tópico e já se considera um especialista na área (o Efeito Dunninham-Krueger).
Algumas formas de vieses de cognição são listadas a seguir. Mais tarde analisaremos alguns deles com maiores detalhes.
Cherry picking, ou escolher a cereja do bolo, é uma forma sutil de fazer isso. Você entra em contato com um volume grande de informações mas só registra aquelas que te interessam. Você lê um livro recheado de informações polêmicas mas recolhe e registra apenas aquelas que interessam ao seu alvo intelectual, ideológico ou de fé.
Viés de ancoragem é a tendência de atribuir maior confiança às primeiras informações que você recebe. Por exemplo, alguém te informa que o preço médio de um carro é de um determinado valor (e a informação pode estar certa ou não). Se encontrar ofertas abaixo dessa esperada você julgará que o ítem está com ótimo preço. Esse viés é usado na propaganda que coloca em primeiro lugar os preços mais altos.
Viés de atenção é a tendência de focar sua atenção em alguns aspectos e ignorar outros. Ao procurar um carro para comprar você se preocupa apenas com a aparência e ignora todos as outras características que dão valor (ou depreciam) o item. Associada a esse viés as pessoas costumam dar mais valor àquelas coisas de que se lembram mais facilmente. Por exemplo, após o atentando ao World Trading Center em 11 de setembro de 2001, os americanos passaram aproximadamente um ano se recusando a viajar de avião. Mortes causadas por acidentes com automóveis em estradas de rodagem superaram muitas vezes o número de mortes no atentado. Humanos são notórios pela sua imprecisão em avaliar riscos.
O efeito do falso consenso é a tendência de superestimar o quanto as pessoas concordam com você. Ele está associado ao cherry picking e ao viés de confirmação (de que já trataremos). Humanos são seres altamente sociais e precisam de se sentir aceitos e acolhidos. Para isso tendem a se agrupar por interesses comuns e convergência de opiniões, facilmente adaptando suas próprias opiniões às do grupo. Um escrutínio mais rigoroso pode mostrar que o grupo não é tão uníssono como parece.
A Fixação funcional é a tendência de ver os problemas sob a ótica única das ferramentas que você possui. “Para quem só tem um martelo, todo problema se parece com um prego” (Abraham Maslow). Alguém que domine o conhecimento da teoria evolucionária pode tender a julgar que apenas ele á necessária para explicar todas as situações do mundo moderno.
O Efeito Halo ou da impressão difusa faz com que você julgue todo um indivíduo (ou situação) baseado na sua impressão geral sobre ele (ou ela). Isso acontece, por ex., quando você conhece uma pessoa bonita e simpática, e a considera honesta e confiável, ou um homem vestido com um terno elegante e com uma fala convincente entra com facilidade em um banco para assaltá-lo. É impressionante a quantidade de efeitos sociais importantes, como na discriminação de raça, onde uma mera primeira impressão pode determinar comportamentos.
O Efeito de desinformação é a tendência de que informações que circulam após um evento modificam completamente a memória do evento original. Nossa memória é facilmente influenciada pelo que ouvimos de outras pessoas. Por isso as pessoas que presenciaram um crime não devem conversar entre si antes de prestarem depoimento à polícia. O mesmo fenômeno faz com que informações de testemunhas oculares esteja em descrédito nos dias de hoje.
Há uma história clássica sobre esse efeito: você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”. Etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
O Viés de otimismo faz com que as pessoas acreditem que nunca serão vítimas de infortúnios e/ou possuem maior probabilidade de sucesso que os demais. É o caso da pessoa autoconfiante que acha que nunca será infectado por uma doença contagiosa que assola sua região.
Ilusão de controle é a tendência que as pessoas têm de superestimar a própria habilidade em controlar alguma coisa ou situação que, na verdade ocorrem independente dela. Os psicólogos sugerem que essa tendência influencia as pessoas em seus hábitos de apostar e na crença do paranormal. Uma pessoa pode julgar que é capaz de controlar um resultado que, em princípio, é aleatório, ou provocar a cura de um doente com práticas mágicas ou orações. Parte, pelo menos, do comportamento ritualístico pode ser explicado por meio desse efeito. Uma pessoa usa sempre a mesma camisa quando torce para seu time de futebol acreditando que, se essa atitude funcionou um dia, ela poderá funcionar sempre. Junto com o viés de confirmação essa tendência pode determinar fortemente o comportamento irracional de um indivíduo. Em um experimento as pessoas testadas assistiram um jogador de basquete tentando encaçapar a bola em arremessos livres. Quando se pediu aos sujeitos testados para torcer, visualizando a bola ser encestada eles relataram sentir como se tivessem participação para o sucesso do jogador.
A maldição do conhecimento é a tendência de considerar simples um assunto que já é dominado. Um professor, depois de anos estudando e ensinando um tema acha estranho que os alunos demorem tanto a entender o que ele está dizendo, o que para ele parece óbvio. Um exemplo pode ser visto na brincadeira infantil onde uma pessoa cantarola mentalmente uma música conhecida apenas marcando o ritmo com batidas, enquanto a outra pessoa tenta descobrir qual é a música. Para quem sabe, a canção usada parece muito óbvia, enquanto o outro tem dificuldades em adivinhar.
O efeito Barnum ou Forer é um fenômeno psicológico comum no qual indivíduos consideram altamente precisas descrições genéricas de suas personalidades. É possível descrever genericamente uma personalidade, geralmente em termos elogiosos e agradáveis, de forma a satisfazer um grande números de indivíduos que consideram que o texto foi escrito a seu respeito. Esse efeito fornece uma explicação, pelo menos em parte, para a ampla aceitação de práticas como astrologia, leitura fria ou de aura e alguns de testes de personalidade. O mágico inglês Derren Brown realizou várias reuniões com pessoas de diversos países sob a alegação de que faria um mapa astrológico dos participantes. Quando recebiam seus mapas as pessoas, em sua absoluta maioria, declaravam estar muito satisfeitas com a descrição de suas personalidades. Depois o mágico pedia a elas que trocassem seus mapas. Com muita surpresa os participantes descobriam que apenas um texto foi distribuído para todos.
O efeito placebo é a reação de pessoas que sentem melhoras após serem tratadas com um falso medicamento, desde que acreditem estar tomando medicamento real. Esse efeito é tão importante que a industria médico-farmacêutica precisa comparar a eficácia de seus novos medicamentos com a de placebos, geralmente pílulas de farinha ou açucar. A experiência clínica indica, que quanto maior o comprimido e quanto mais amargo, maior será seu efeito. Comprimidos grandes, triangulares ou de cores intensas funcionam melhor que pílulas pequenas, de formato comum e sem cor. Tratamentos complexos, envolvendo máquinas, correntes elétricas ou aparatos tecnológicos funcionam melhor do que uma simples massagem, a menos que o paciente atribua ao massagista ou terapeuta algum dom ou virtude extraordinária. É muito bem conhecido o efeito terapêutico sobre pacientes que recebem uma visita atenciosa de seu médico. Você pode ler mais sobre placebos nesse site.
Existem, é claro, muitos outros fenômenos que mostram a natureza enviezada de nossa percepção. Dois seles serão tratados em seguida com um pouco mais detalhamento devido à sua importância direta em nossas vidas. Eles são O efeito Dunning-Kruger que é a dificuldade das pessoas reconhecerem seu nível de expertise ou ignorância sobre um assunto, e o Viés de confirmação, o favorecimento de informações que apoiam e sustentam nossas crenças, ignorando evidências contrárias a elas.
Uma deficiência muito forte de nosso mecanismo geral de percepção e entendimento das coisas está em nossa incapacidade para lidar e compreender o acaso e aleatoriedade. Já incluímos aqui um artigo sobre o assunto: Acaso e Percepção Extrassensorial.
Vieses de cognição possuem uma associação estreita com as falácias lógicas, embora não sejam o mesmo fenômeno. Falácias são erros lógicos usados no pensamento sobre alguma questão e podem ser expostos por uma análise racionalmente precisa dos argumentos. O exposição dos vieses de cognição exige pesquisa controlada. Provavelmente uma cognição imperfeita induza a erros lógicos. Leia nesse site: Falácias Lógicas.
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Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
Em 1937 a telepatia estava na moda. O botânico e parapsicólogo J. B. Rhine havia lançado há pouco o livro New Frontiers of the Mind onde apresentava alegações extraordinárias sobre os experimentos de PES (percepção extrassensorial) na Universidade de Duke. Outro autor muito conhecido do público da época, Upton Sinclair, havia lançado um livro sobre seus experimentos em comunicação psíquica bem sucedidas com a esposa. A assunto era tópico das conversas em todo o país.
A nota (1) fornece alguns detalhes extras da história do experimento.
Em setembro de 1937 a Zenith Radio Corporation, em colaboração com Rhine, iniciou um experimento ambicioso. Um programa de rádio da emissora reuniu um painel de pessoas consideradas dotadas de percepções extrassensoriais, em particular a telepatia. Na medida em que o apresentador do programa ia sorteando em uma roleta uma sequêncis de 5 resultados binários, escolhendo entre X ou O, os especialistas se concentravam com todas a suas energias para transmitir para os ouvintes a sequência escolhida. Os organizadores do evento pediram que os ouvintes também se concentrassem para receber as transmissões dos telepatas, anotando as sequências de sinais percebidas e as enviando para a emissora.
Mais de 40 mil ouvintes responderam imediatamente e milhares de outras respostas chegaram depois. Foi um experimento em grande escala. A esperança era de que, mesmo que houvesse muitos erros, um número maior de adivinhações corretas aparecesse nas análises dos resultados. De fato, era o que deveria acontecer se houvesse algum efeito de telepatia entre as pessoas e os supostos telepatas.
Em um teste com 5 sequências, três deles foram “captados” pelo público em proporção muito maior que a esperada por mera coincidência. Um deles foi a sequência OXXOX descoberta por um número muito grande de ouvintes. Esse resultado surpreendeu a todos e os proponentes da percepção extrassensorial, juntamente com os empresários da rádio, comemoraram. O programa havia se tornado muito rentável e a rádio emitiu um comunicado de imprensa informando que haviam provado a existência de fenômenos paranormais.
Uma segunda análise
O experimento chamou a atenção de um jovem psicólogo chamado Louis Goodfellow, também contratado pela rádio Zenith. Ele empreendeu seu próprio estudo para determinar se poderia haver outra explicação para os resultados do experimento. Ele descobriu que, de fato, os experimentos não revelavam a existência de PES, embora apontassem para outro resultado muito interessante.
A nota (2) discute a necessidade da análise extra realizada por Goodfellow.
Ele percebeu que sequências tais como OOXOX eram identificadas pelo público com acerto acima do acaso, enquanto sequências como OOOOO eram escolhidas pelo público com menor frequência. Quando Goodfellow pediu às pessoas que inventassem uma sequência aleatória a sequência OOXOX apareceu muito acima de 30% das vezes.
Em seu laboratório Goodfellow realizou outros testes pedindo que as pessoas imaginassem resultado de um experimento aleatório com moedas, com 5 tentativas, cada uma resultando em cara ou coroa. Ele descobriu os resultados imaginados pelos participante não eram de fato aleatórios. De fato, 78% das pessoas iniciavam suas sequências com uma carana primeira jogada de moeda. (Se os resultados fossem aleatórios 50% apenas dos resultados deveriam se iniciar desta forma.)
A partir disso Goodfellow criou a hipótese de que o sucesso do experimento da rádio Zenith não tinha nada a ver com paranormalidade. Pelo contrário, ele revelava uma incapacidade inerente aos humanos de gerar listas ou sequências realmente aleatórias. Quando as pessoas tentam fazer isso elas acabam caindo em padrões que são muito similares entre as pessoas. Por exemplo, quando se pede a alguém para fornecer uma sequência binária de 5 posições (com apenas duas escolhas para cada posição) é muito improvável que ela escolha OOOOO ou XXXXX, mesmo que essas sejam tão possíveis como qualquer outra. Na cabeça das pessoas é muito mais “aleatório” escolher OOXOX ou XXOXO, mesmo que todas essas sequências tenham a mesma probabilidade (1/32) de ocorrerem. Resumindo, as pessoas do público acertaram sequências “mais prováveis”, que eles consideravam “mais aleatórias” que outras.
Probabilidade
A probabilidade de acerto em qualquer adivinhação consiste no número de casos considerados acertos, divididos pelo número de casos possíveis. Neste caso apenas uma sequência é correta. Na escolha de 5 ocorrências de um evento binário existem 2 possibilidades para a primeira sorteada, mais 2 para a segunda, até a quinta escolha. Ou seja, existem 25 = 32 possibilidades. Logo a chance de acerto aleatório é de 1/32.
Uma roleta, dado ou moeda honesta é aquela em que seus resultados podem ocorrer com a mesma probabilidade. Uma moeda não honesta pode ter um lado mais pesado que outro, ou pode conter cara dos dois lados.
Leia mais sobre Probabilidade e Estatística.
Como existem apenas 32 combinações possíveis, se você apenas inventar uma sequência qualquer, você tem 1/32 ou aproximadamente 3% de chance de acerto. Com uma roleta “honesta” todos os resultados são igualmente prováveis.
Se as pessoas conseguissem fazer escolhas realmente aleatórias, um experimento com poucas pessoas buscando descobrir sequências desse tipo exibiria uma distribuição espalhada das escolhas, sem nenhum padrão. (Veja adiante, sobre a Lei dos Pequenos Números). Mas se o mesmo experimento for repetido com grande número de pessoas todas as possibilidades seriam aproximadamente contempladas. (A Lei dos Grandes Números).
No experimento da rádio Zenith milhares de pessoas escolheram XOXOO com frequência muito mais alta que XXXXX. Naturalmente o experimento foi refeito (muitas vezes, na verdade). Nenhum resultado paranormal foi verificado, apesar da alta taxa de adivinhações em torno das sequências consideradas “mais aleatórias” que as demais.
Você participa de um experimento que sorteia 5 bolas pretas ou vermelhas, com igual probabilidade. Denotando preto por P e vermelho por V, suponha que você adivinhou a sequência PPVPV. Antes da verificação você tem 1/32 de chance de acertar. Mas, se você tiver acertado exatamente a sequência sorteada, não cabe mais perguntar que chances você tem. O experimento foi realizado e um das resultados possíveis foi selecionado.
Considere agora outra situação onde um número muito grande de pessoas participou. Várias delas terão acertado por acaso o resultado. Se você é uma delas a tendência é que considere esse experimento extraordinário, comprovando fenômenos paranormais. Por esse motivo é necessário sempre fazer uma análise estatística desse e de qualquer outro experimento.
Cérebro humano e probabilidade
Isso mostra um fato interessante, hoje bem conhecido. Nosso cérebro não sabe lidar bem com acaso e probabilidade. Intuitivamente (e erroneamente neste caso) achamos que OOOOO ou XXXXX são menos prováveis que qualquer outra sequência. Quantas pessoas você conhece dispostas a apostar na sequência 1 2 3 4 5 6 na Mega Sena? No entanto esse palpite é tão provável como qualquer outro que você escolher.
William Poundstone, escritor de divulgação científica em seu livro Rock Breaks Scissors, explora algumas das ramificações das descobertas de Goodfellow: “Ele basicamente mostrou que muitas das nossas pequenas decisões cotidianas são incrivelmente previsíveis”. Com alguns dados e conhecimento é possível prever muitas atitudes e decisões das pessoas. Por exemplo, no jogo pedra, papel, tesoura (jokempô) homens tentem a escolher pedra com frequência maior que as outras opções. Esse comportamento humano é observável e bem documentado. Ele é explorado, por exemplo, na propaganda eletrônica, na expectativa de se aproveitar de respostas padrões das pessoas.
Recentemente os psicólogos Amos Tversky e Daniel Kahneman propuseram a chamada Lei dos Pequenos Números, uma teoria que busca explicar a inabilidade humana para lidar com o acaso e aleatoriedade. Tendemos a esperar que pequenas amostras sejam representativas de uma amostra maior, de onde a menor foi extraída.
Atirando uma moeda 5 vezes você espera verificar um resultado com 2 ou 3 caras, e 2 ou 3 coroas, com alguma variação de padrão. Apesar dessa expectativa as chances de se obter 5 caras (ou 5 coroas) são de 1 em 32, como qualquer outra combinação.
A Lei dos Pequenos Números
A Lei dos Números Pequenos se refere à falsa crença de que uma amostra pequena deve necessariamente conter os padrões da amostra maior de onde ela foi extraída. Essa crença é bastante universal entre as pessoas, atingindo pessoas comuns e especialistas nas diversas áreas do conhecimento. A lei dos pequenos números é, na verdade, a indicação de uma falácia. A Lei dos Grandes Números é conhecida e está correta: uma amostra grande, mesmo que incompleta, é representativa do conjunto maior.
Suponha que você tem uma piscina cheia com 50% de bolinhas azuis, 50% vermelhas, bem misturadas. Se você tirar poucas bolinhas ao acaso há baixa probabilidade de que 50% sejam azuis, 50% vermelhas. Se você aumentar a sua amostra também aumentam as suas chances de que metade sejam azuis, metade vermelhas.
Notas
(1) Há uma ambiguidade nos relatos históricos à respeito do experimento da Zenith Radio Corporation. Em alguns relatos se descreve que os especialistas telepatas escolhiam sem sorteio os sinais que seriam “enviados” aos ouvintes. Em outros relatos os sinais eram escolhidos através de sorteio (o que, claramente seria a coisa mais correta a se fazer).
No primeiro caso o número de adivinhações corretas seria bem maior pois a mesma escolha tendenciosa seria observada tanto na escolha como na adivinhação. No segundo caso as observações consideradas “preferidas” teriam maior quantidade de acertos.
O relato mais completo que encontrei foi dado por William Poundstone em seu livro Rock Breaks Scissors. Um trecho do livro pode ser encontrado no site Science Friday, listado nas referências. Segundo esse autor diversos tipos de experimentos foram tentados por um período prolongado de tempo. As transmissões usaram cores, como branco e preto; cara e coroa; X e O. Em alguns testes 7 escolhas eram “transmitidas” e, pelo menos uma vez, dois dos sinais foram deixados nulos, sem nenhuma transmissão. Em todos os casos as sequências “prediletas” foram bem adivinhadas pelos ouvintes. Os sinais nulos, a ausência de transmissão de qualquer informação, nunca foram percebidos por nenhum ouvinte.
(2) É claro que esses resultados foram motivos de polêmica por muito tempo. Por que Goodfellow não pode simplesmente aceitar que existe a telepatia? Ocorre que não existe, no paradigma atual científico, nenhuma justificativa ou embasamento teórico que justifique a existência de fenômenos como o da telepatia. Não há nenhum campo físico conhecido que pode ser gerado pelo cérebro humano e captado remotamente por outros.
Evidentemente esses campos podem vir a ser descobertos um dia. Pode ser que fenômenos paranormais sejam compreendidos e usados. Mas, sem nenhuma evidência teórica, o melhor a fazer é aplicar uma boa dose de ceticismo e buscar explicações alternativas que não necessitem de elementos estranhos e externos ao paradigma aceito e consagrado.
A situação é análoga à que ocorreu em 2011 no acelerador de partículas CERN, Suiça quando experimentos pareciam indicar neutrinos viajando em velocidades superiores à da luz. Tal coisa viola a bem estabelecida Teoria de Relatividade e, se confirmada, provocaria uma grande alteração na física. Cientistas desconfiados fizerem uma varredura em todo o sistema de medidas até descobrir que havia um cabo mal conectado em um dos aparelhos.
Bibliografia
Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking, The Penguin Press, New York, 2014.
Poundstone, William: Rock Breaks Scissors, Little, Brown and Company, New York, 2014.
Na sua opinião, por quanto tempo mais existirá a humanidade? Deixe seu comentário!
Evolução
“Se chegássemos ao fim da linha, o espírito humano definharia e morreria. Mas não creio que um dia sossegaremos: aumentaremos em complexidade, se não em profundidade, e seremos sempre o centro de um horizonte de possibilidades em expansão.”
— Stephen Hawking, O Universo numa Casca de Noz.
Humanos existem no planeta há aproximadamente 300 mil anos, o que é muito pouco se comparado à idade da Terra (4,5 bilhões de anos), ou ao aparecimento das primeiras formas de vida (em torno de 3,7 bilhões de anos). Na maior parte de sua existência os humanos não foram muito diferentes de seus primos, os grandes primatas: orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos. A civilização, por sua vez, só teve início há pouquíssimo tempo na Mesopotâmia e Egito, algo em torno de 6 mil anos atrás.
Observe que três elementos são básicos para a definição de civilização. São eles: a fixação à terra e domínio da agropecuária, o tratamento da água consumida e de esgoto, o uso da palavra escrita. Pense em quantas pessoas hoje estão excluídas!
O ritmo de desenvolvimento das comunidades humanas é vertiginoso e só se acelera. A revolução industrial, que teve início em meados do século 18 até o início do século 19, alterou de forma dramática a vida das pessoas, começando pelas grandes cidades e depois se espalhando por toda a parte. As máquinas, à princípio construídas sobre um entendimento de termodinâmica, foram drasticamente alteradas, primeiro com o desenvolvimento do eletromagnetismo e construção dos motores elétricos, mais tarde com o advento da eletrônica e da computação.
O efeito das máquinas sobre pessoas e sociedade foi, e ainda é, complexo. Por exemplo, máquinas liberam pessoas das tarefas extenuantes, repetitivas ou de precisão. Uma pessoa com uma máquina produz mais que um grupo grande de pessoas no passado. No entanto as máquinas são cada vez mais complexas e caras e não podem ser adquiridas (nem operadas) por todos. Elas substituem os operários nas indústrias e fazendas, aumentam o lucro dos donos e não contribuem para a distribuição da riqueza.
A tecnologia traz vantagens óbvias que poucas pessoas hoje estariam dispostas a desprezar. Temos telefones, computadores, equipamentos hospitalares sofisticados, medicamentos e vacinas, entre muitos outros produtos que agilizam e facilitam a nossa vida. De fato, a tecnologia tem prolongado a vida humana em muitos anos. E nos tornamos profundamente dependentes dela. Só para ter um vislumbre dessa dependência, imagine o seguinte: o que aconteceria se os sistemas de comunicação, inclusive satélites, entrassem em colapso e deixassem de funcionar? Pode ser um exercício interessantes pensar nisso mas algo se pode adiantar: a sociedade, como a definimos hoje, colapsaria rapidamente.
Nenhuma das listas de exemplos usadas aqui e em outras partes do artigo é exaustiva. Muitos outros poderiam ser anexados.
Outro exemplo de faceta múltipla do impacto da tecnologia está no uso de antibióticos. Com a descoberta de que microrganismos podem causar doenças e que os antibióticos podem matar alguns desses invasores (fungos e bactérias, em particular) muitas doenças foram completamente superadas. No entanto o uso generalizado, muitas vezes de forma inconsequente e sem a instrução de um médico, está causando o surgimento das chamadas superbactérias. Essas superbactérias se desenvolvem por meio de seleção natural dos indivíduos resistentes aos medicamentos. Estamos muito próximos da exposição a bactérias que não respondem à nenhum dos antibióticos conhecidos.
Uma nova pressão, muito mais sutil mas não menos desafiadora, está na facilidade de acesso à informação e a possibilidade de difusão da opinião individual através da Internet e dos ambientes sociais virtuais. O otimismo inicial de que mais informação traria uma sociedade mais capaz de decidir e de se harmonizar foi frustrado e substituído por uma ambiente de radicalismo, de negação científica e crescimento de conceitos esdrúxulos e teorias conspiratórias. Essa é uma tendência muito nova e ainda não completamente compreendida.
Dito isso uma pergunta se torna evidente:
Estamos melhores agora?
Após todo esse processo evolutivo resta-nos perguntar: “Somos mais sensatos ou felizes?” É muito claro que vivemos um período de pujança produtiva. Sem tecnologia não seria possível produzir alimentos para um número tão grande de pessoas no planeta. Apesar da flagrante má distribuição da riqueza e dos recursos, hoje é produzida uma quantidade suficiente de alimentos para alimentar a toda a população do planeta, segundo o The World Economic Forum. Então um desafio óbvio é distribuir riqueza e recursos.
No entanto a população não para de crescer, principalmente nos setores mais carentes da população. Os meios de produção e o próprio cotidiano do cidadão moderno gera resíduos prejudiciais à natureza. Descarregamos uma quantidade de CO2 suficiente para alterar o clima, causando aquecimento por efeito estufa. Usamos tecidos sintéticos (em geral em mistura com fibras naturais) que produzem micro partículas plásticas levadas para rios e mares, afetando a saúde das espécies aquáticas. A produção de carnes exige a aglomeração de alto número de animais domesticados que poluem e consumem recursos hídricos importantes.
É frequente a afirmação de que a humanidade está falhando. O que se observa, no entanto, é exatamente o contrário: nossos problemas surgem do alto grau de sucesso na preservação e ampliação da espécie humana. Essa é a meta de todo ser vivo, microrganismo, planta ou animal. E humanos são animais, por mais que nossa vaidade vã, nossa filosofia ou religião, afirmem o contrário. Mais que isso, somos animais com a mesma estrutura cerebral de seres da caverna, nossos antepassados. Humanos colonizaram todo o planeta, de áreas geladas até os trópicos. Aprenderam a produzir comida domesticando animais e plantas.
Por que as pessoas ficam pálidas quando expostas a perigo ou ao levar um susto? Ficamos pálidos porque nossos vasos sanguíneos se contraem, provavelmente para não sangrar após um ataque de um tigre dente de sabre, ou outro animal. Os tigres se foram para a maioria de nós, os ataques ainda existem mas não na mesma proporção. Mas nosso corpo e cérebro são essencialmente os mesmos.
A humanidade é uma espécie altamente bem sucedida. O problema é que agora nos deparamos com um problema nunca visto antes: a Terra é finita. Dada a escala de nossa expansão podemos ainda afirmar: a Terra é finita e muito pequena!
Temos inúmeros relatos de casos em que um determinado animal populou uma região qualquer, sendo nisso bem sucedido. Digamos que um tipo de gato chegue a uma ilha onde encontre muitos pássaros e nenhum predador. Os gatos podem se fartar de tanta comida, sem medo de serem, eles mesmos, devorados. Eles então se multiplicam o ocupam toda a ilha até que suas presas são extintas. Gatos bem sucedidos terminam sua existência devido à finitude da ilha onde moram.
Nunca será demais lembrar que:
a maioria absoluta das espécies que já existiram na Terra estão hoje extintas.
Podemos encontrar uma solução?
A tecnologia trouxe muitos problemas, inclusive por facilitar a expansão e sobrevivência humana. Deveríamos renunciar à ciência e tecnologia? Precisamos voltar a viver com a simplicidade de nossos antepassados, sem fazer uso de medicamentos ou máquinas?
Não se pode esquecer que tecnologia está associada à ciência, que é conhecimento. Hoje conhecemos mais, muito mais. Pela primeira em toda a história (pelo que se sabe) temos uma descrição fundamentada da origem do universo, da constituição da matéria, do processo de evolução dos seres vivos e de como as informações são passadas de pais para filhos por meio da genética. A indagação sobre o desconhecido é parte essencial dos humanos. Ela não pode ser abandonada. O uso da ciência na tecnologia é natural e dificilmente poderá ser impedido. Além disso outra pergunta pode ser feita: Existe outro caminho? Poderíamos ter tomado outra rota?
O passado não pode ser revisto. A situação desafiadora do presente é a única possível. Talvez possamos configurar e selecionar o futuro. E, para tal, é impensável descartar a tecnologia. Precisamos de mais tecnologia, de mais conhecimento. Precisamos aprimorar o processo educacional para formar cidadãos mais conscientes do processo civilizatório e dos problemas por ele introduzidos. A Educação é uma das chaves para o futuro.
Justiça e oportunidade
A construção de uma sociedade justa é outra condição essencial para um futuro harmônico e pacífico. Nenhum grupo de indivíduos, seja um bairro ou um país, terá paz com sua fartura e abundância de recursos se os grupos ao lado não têm acesso mínimo a condições de vida decentes.
Humanos evoluíram em um ambiente hostil e de parcos recursos. Tribos com acesso a boas áreas agricultáveis atingiram suficiência alimentar mais cedo. Tribos que domesticaram cavalos aprenderam formas de guerra mais eficientes. A identificação entre membros de um grupo, necessária para a formação de aldeias e cidades, também trouxe a rejeição ao diferente, ao estrangeiro. É completamente natural que uma tribo de negros na África estranhe e rejeite a chegada de pessoas brancas em seu território.
Toda a humanidade hoje existente é descendente de uma tribo muito pequena surgida na África. Além disso houve diversos episódios de afunilamento, com a morte de muitos indivíduos. Por isso nossa “Eva Mitocondrial”, a mulher mais recente ancestral de todos os humanos atuais, viveu entre 100 a 230 mil anos no passado. Nosso Mais Recente Ancestral Comum, pela linha paterna, o “Adão-Y” é mais antigo, em torno de 340 mil anos atrás.
Essa identificação de grupo é a raiz do preconceito e segregação racial. A ciência, no entanto, mostra que existe uma variância muito pequena na genética humana. Todos os humanos no planeta possuem diversidade genética inferior à de um bando grande de chimpanzés. Nossas diferenças são superficiais, de fenótipo apenas. Não é verdade que as comunidades abastadas foram mais capazes que outras para reunir suas riquezas. Não é verdade que indivíduos em tribos primitivas não teriam condições de aprender ciência (ou outra arte) se expostos a bom sistema de ensino. Por isso é essencial que se procure a igualdade de oportunidades para todos, mesmo sabendo que nem todos os indivíduos terão o mesmo desempenho. Da mesma forma é necessário dar oportunidades iguais a pessoas de gêneros diferentes.
O futuro
O atual modelo de crescimento econômico está destinado ao colapso. Mesmo para baixo crescimento dos PIBs dos países, o que já é considerado um desastre no atual modelo, o crescimento é exponencial, o que significa o atingimento de números muito grandes passado algum tempo. Sem uma reformulação drástica do conceito de desenvolvimento estaremos sem recursos naturais em pouco tempo.
Muitas iniciativas promissoras estão em estudo e testes. Existe a exploração de recursos minerais extraídas de asteróides em órbitas próximas à Terra, o que indica a possibilidade de captação de recursos no espaço. Evidentemente a colonização de outros planetas (ou da Lua) pode ser uma alternativa importante para a preservação da espécie, embora estejam ainda em fases muito incipientes.
De mais concreto temos avanços importantes: a neurociência está ampliando rapidamente o entendimento de nosso próprio cérebro. Ela poderá, inclusive, instruir os métodos de ensino para torná-los mais eficientes. As técnicas de inteligência artificial também prometem ser coadjuvantes importantes nas descobertas científicas, na compreensão dos dados em grande escala e até mesmo na educação, facilitando o desenvolvimento de programas de ensino adaptados ao indivíduo. Outro exemplo está na capacidade de edição genética, inclusive de indivíduos adultos, o que poderá resultar em conquistas médicas importantes.
É claro que essas novidades tecnológicas podem ser novas ameaças. Para evitar que as novas tecnologias sejam empregadas para aumentar a violência, a segregação e a injustiça a única alternativa está na educação do indivíduo em todas as partes, de todos os níveis sociais.
Não é impossível, nem improvável, que uma forte perturbação do tecido social, como pode ocorrer como consequência do aquecimento global, por exemplo, provoque uma ruptura no paradigma atual e altere nossos mecanismos mais profundos herdados do processo evolutivo. A atual crise com o COVID-19, alterando de forma radical o estilo de vida do cidadão e os meios de produção também pode servir como um alerta e um ponta-pé inicial em uma transformação de nível global em direção à um planeta mais equilibrado e sustentável.
Acreditar que a situação já é irremediável é tão perigoso quanto desconhecer o problema eminente.
Espero a discussão do leitor sobre esse assunto. Deixe seu comentário, sua discordância ou sugestão de debate na área de comentários.
O que podemos fazer para contribuir para a solução?
A NASA encontrou evidências de um universo paralelo onde o tempo anda para trás?
Temos discutido aqui no phylos.net como a imprensa leiga divulga mal as notícias relativas à ciência. Desta vez, no mês de maio de 2020, notícias circularam o mundo com chamadas sobre um artigo do físico Peter Gorhan e sua equipe, supostamente cientistas da NASA, que teriam informado a descoberta de um universo paralelo com propriedades físicas simétricas mas invertidas, inclusive com o tempo correndo invertido (do futuro para o passado).
Grupos importantes de pesquisa no mundo, tais como as grandes universidades e o CERN, mantém contato com a mídia através de seu pessoal de relações públicas. Esse pessoal convoca coletivas de imprensa para fazer seus anúncios. Mesmo nessas situações é muito comum que um jornalista não especializado em ciência interprete mal as informações, ou exagere as novidades como forma de atrair leitores. Mais tarde suas notícias são replicadas pelo mundo todo, quase sempre mantendo ou piorando os erros originais. Não é raro que uma notícia completamente falsa, ou até mesmo uma piada, seja copiada e espalhada, alimentando os que gostam de pseudo-ciência e teorias conspiratórias. É extremamente importante que você descubra sites, canais na internet, revistas e jornais de confiança para se informar sobre ciência.
A maioria dos headlines de jornais e vídeos menciona um experimento com raios cósmicos na Antártida que teriam revelado evidências de que um universo paralelo formado durante o Big Bang e próximo ao nosso universo. Nele as leis da física seriam completamente opostas e o tempo corre para trás.
“Vimos algo que se parecia com um raio cósmico, como se visto em seu reflexo na camada de gelo, mas não estava refletido. Era como se o raio cósmico estivesse saindo do gelo. Uma coisa muita estranha”.
Na foto Peter Gorhan, professor Universidade de Manoa, no Havaí, principal investigador do projeto ANITA, com uma das antenas.
Procurando por informações mais abalizadas descobrimos que nenhuma das pessoas envolvidas é cientista da NASA. Claro que, em si, esse erro não invalida as afirmações mas representa um alerta de que esses jornais não fizeram boa pesquisa ao relatar a descoberta. Em termos gerais, embora é claro que não se possa generalizar, notícias da mídia não especializada são absolutamente inúteis para nos informar sobre avanços recentes da ciência. Infelizmente!
A notícia foi inicialmente veiculada em tablóides americanos e inglese e copiadas pelas jornais brasileiros. Uma descoberta de tal magnitude seria veiculada com entusiasmo pelas principais revistas científicas. No entanto nenhuma delas contém menções à descoberta de “um universo paralelo”.
Então, o que sabemos sobre o experimento? Os cientistas da Universidade de Manoa, no Havaí, estavam trabalhando no experimento Anita montado na Antártica, que consiste em uma série de antenas em solo e outras instaladas em balões de hélio que sobem a uma altura e até 37 mil metros para estudar partículas de altas energias, em particular neutrinos. O projeto Anita foi financiado por um consórcio de várias instituições, inclusive a NASA e do Departamento de Energia dos Estados Unidos. Essa formação de consórcios é comum nos dias de hoje pois os experimentos estão cada vez mais caros e não podem ser bancados por uma única universidade ou mesmo por um país.
O experimento ANITA detecta (indiretamente) neutrinos que são partículas com pequena massa de repouso, viajam com velocidades próximas (mas inferiores) a da luz e interagem muito pouco com a matéria ordinária. Por isso um neutrino pode atravessar o planeta Terra sem interagir com nenhuma de suas partículas. Neutrinos, no entanto, existem em variedades distintas. Eles estavam estudando um tipo de neutrino, o neutrino tau, uma das partículas fundamentais, que não poderiam atravessar a Terra com tanta facilidade. Eles tem origem cósmica e deveriam incidir sobre a Terra vindos do espaço. No entanto eles detectaram esse tipo de neutrino partindo do solo e acharam esse comportamento estranho. Peter Gorhan, um físico experimental de partículas descreveu esse fenômeno como sendo impossível com as atuais leis da física conhecidas. A possibilidade de um neutrino tau atravessar o planeta e sair pela superfície, do outro lado, é inferior a de 1 por 1 milhão. Como a equipe do ANITA detectou alguns desses eventos, Gorhan propôs que eles poderiam ser partículas voltando no tempo, em um universo paralelo. Há relatos de que a própria equipe de Gorhan tenha se sentido desconfortável com a hipótese exagerada do seu coordenador.
É necessário explicar que o modelo padrão de partículas da física atual é extremamente bem sucedido em explicar os fenômenos conhecidos. Um resultado que contradiga esse modelo geraria o que chamamos de uma nova física. É óbvio que a maior parte dos físicos apreciaria uma quebra de paradigma com a abertura de pesquisas em uma física diferente e mais ampla do que a que conhecemos hoje. Mas para tal seria necessário o surgimento de evidências muito fortes.
Já em 2018 o físico Peter Gorhan anunciou ter descoberto partículas na Antártica que não se encaixam no modelo padrão de física as partículas. Em sua descrição elas se pareciam com um raio cósmico visto em um reflexo na camada de gelo, como se o raio tivesse saído de dentro do gelo. Uma coisa muito estranha, de fato. Mas é muito pouca evidência para se concluir que o modelo padrão está incorreto. E muito menos para sugerir que existe outro universo onde o tempo é invertido.
O experimento ANITA
ANITA (Antena Impulsiva Transiente Antártica) é um experimento desenhado para estudar neutrinos cósmicos de energia muito alta. Ele usa um conjunto de antenas de rádio suspensas em um balão de hélio voando a 37.000 metros, capazes de detectar ondas de rádio (eletromagnéticas, portanto) que são emitidas quando os neutrinos de origem cósmica atingem a camada de gelo. Acredita-se que esses neutrinos cósmicos de alta energia são criados pela interação de raios cósmicos de energia muito alta (que são são partículas incidentes do espaço) com os fótons da radiação cósmica de fundo em microondas (gerada durante o Big Bang). O experimento busca, em parte, explicar a origem desses raios cósmicos.
Em janeiro de 2020, a ANITA realizou quatro vôos e detectou vários raios cósmicos vindos do céu dentro do campo de visão do experimento. Essas ondas de rádio são refletidas no gelo antes de atingirem a ANITA. A análise dos eventos mostram que dois deles captaram ondas originadas no solo, o que é inesperado pois a Terra deveria absorver os raios cósmicos nessa faixa de energia. Outro experimento chamado IceCube tentou reproduzir esse achado, sem sucesso.
Um pouco mais de física
Raios cósmicos são partículas de energia muito alta (geralmente entre 108 e 1019 elétron-volts, constituídos principalmente por prótons e por outros núcleos atômicos (combinações de prótons e neutrôns). Também existem neles elétrons, pósitrons (a antipartícula do elétron), antiprótons (a antipartícula do próton), neutrinos e fótons gama. Quando atingem a atmosfera essas partículas colidem com os núcleos dos átomos no ar na parte mais alta da atmosfera, dando origem a outras partículas e formando uma “chuva” de partículas com menor energia, os raios cósmicos secundários. Ao nível do mar chegam, em média, uma partícula por segundo em cada centímetro quadrado.
Esses raios secundários tem sua trajetória alterada pela campo magnético da Terra, produzindo ondas de rádio que se espalham à frente do chuveiro. As antenas de ANITA podem receber essas ondas de rádio depois que se refletem no gelo, chegando até o balão. Em algumas poucas situações elas podem detectar ondas ainda não refletidas, quando elas viajam no sentido horizontal.
Esses sinais são bem diferentes pois sua polarização muda quando as ondas de rádio são refletidas no gelo. Por duas vezes em 2006, e depois em 2014, ANITA detectou ondas saindo da superfície com a polarização idêntica às das ondas horizontais, sugerindo que essas ondas produzidas por chuveiros de partículas viradas para o alto, somo se acionados por partículas que atravessaram a Terra. Sabemos que os neutrinos podem fazer com facilidade e, portanto, à primeira vista não há contradição com o modelo padrão.
Mas, em exame mais minucioso, estas partículas com movimento ascendente tinham energia muita alta, suficiente para que tenham colidido com algum núcleo da matéria terrestre ao longo de sua viagem de 5700 quilômetros através do planeta. Os pesquisadores argumentaram que nenhuma partícula tão energética atravessaria a Terra sem ter interagido e se espalhado (afastando de sua direção original).
Existem aqueles pesquisadores que vêm nisso a necessidade de lançar mão de novo arcabouço teórico, em particular a hipótese da supersimetria, muito estudada mas ainda não comprovada. Eles alegam que é possível que um raio cósmico de energia muito alta tenha penetrado a Terra pelo lado oposto gerando um novo tipo de partícula (que não está no modelo padrão), com massa 500 vezes superior à do próton. Essa nova partícula poderia atravessar o planeta e gerar o chuveiro ascendente observado. Segundo eles o experimento IceCube, que consiste em uma malha gigante de detectores de partículas inseridos em buracos profundos afundados no gelo antártico, também detecta evidências desses eventos incomuns.
Essas observações podem fazer com que a comunidade científica considere com seriedade a possibilidade de uma nova física baseada nos resultados da ANITA. Mas eles sabem que têm, por enquanto, poucos elementos para reivindicar a descoberta de uma nova partícula e, em sua maioria, lamentam a divulgação espalhafatosa e excessivamente especulativa que tem sido associada com esse caso.
“Imagine que você é um professor de história romana e língua latina, ansioso por transmitir seu entusiasmo pelo mundo antigo… No entanto, você percebe que seu precioso tempo é continuamente consumido e a atenção da classe distraída por um bando de ignorantes que, com forte apoio político e financeiro, percorrem as salas de aula tentando convencer os alunos de que os romanos nunca existiram. Nunca houve um império romano. O mundo inteiro começou a existir pouco antes do que conseguimos nos lembrar. O espanhol, italiano, francês, português, catalão, ocitano e romanche, todas essas línguas e seus dialetos surgiram espontaneamente, isoladas umas das outras e sem nada dever ao latim, como seu antecessor”.
–Richard Dawkins
Com essas palavras o biólogo Richard Dawkins expressa seu desalento com uma tendência moderna importante que consiste no negacionismo científico. Ela tem muitas vertentes mas, provavelmente, a mais antiga e mais ferrenha consiste na recusa em aceitar a teoria da evolução com base em argumentos religiosos ou meramente emocionais. Temos muitos exemplos de ocorrências parecidas na história da ciência. Quando Galileu Galilei, baseado nas observações de Kepler e Copérnico, apresentou a sugestão de que nosso planeta não ocupa um lugar privilegiado no cosmos, em torno do qual giram todos os astros, mas é um astro como bilhões de outros, ele sofreu forte rejeição da comunidade e, principalmente, da igreja. Da mesma forma foi difícil (e continua sendo, para muitos) compreender que seres humanos são animais e suas origens são as mesmas que as de macacos (nossos primos próximos) e peixes (primos mais distantes). De fato a teoria da evolução faz afirmativas extraordinárias, que podem ser difíceis de aceitar, entre elas a de que quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum. É claro que afirmações extraordinárias precisam de provas extraordinárias.
Cabe a pergunta: elas existem?
“As afinidades de todos os seres da mesma classe foram às vezes representadas por uma grande árvore. Eu acredito que esse símile fala em grande parte a verdade.”
“Quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum”.
— Charles Darwin
Na imagem o primeiro esboço da “árvore da vida” no caderno de Darwin, 1837.
Não é possível hoje ter um bom entendimento da biologia sem compreender a evolução. Sequer se poderá entender muito do que está envolvido na elaboração de medicamentos e suas consequências, na vacinação, no transformação de organismos em face aos desafios que enfrentam, no surgimento das superbactérias, etc.
O que é a Teoria da Evolução?
A observação da natureza mostra que existe uma grande riqueza na variedade de espécies espalhadas pela terra e que cada uma delas mostra uma adaptação perfeita (ou quase perfeita) ao ambiente onde vivem. Animais que são predados por outros animais velozes possuem também pernas velozes ou outro mecanismo de escape tais como o disfarce ou capacidade de se esconder. Plantas com flores possuem cheiros e cores atrativas para pássaros ou insetos que as auxiliam no processo reprodutivo. Temos a impressão de observar uma máquina sofisticada que, por analogia com outras máquinas conhecidas, devem ter sido projetadas e construídas de forma deliberada e inteligente.
Na descrição do filósofo inglês do século 18, William Paley, se encontramos no chão e examinamos um relógio, veremos que ele possui peças delicadas, harmoniosamente construídas para funcionar de um certo modo e atingir um objetivo. Concluímos logo que esse relógio dever ter sido construído por um relojoeiro hábil. Da mesma forma supomos que a complexidade da natureza tem um autor, supostamente Deus. A ideia vai de encontro ao pensamento bem estabelecido das religiões e mitologias que sempre buscaram encontrar explicações e razões para a existência.
A Teoria da Evolução tem outra sugestão, uma explicação alternativa. Ela deve ser considerada como uma hipótese até que se mostre que ela descreve bem as coisas observadas na natureza e, ainda, apresenta predições de coisas ainda não observadas e que podem ser confirmadas. Se tudo isso for obtido a hipótese ganha novo patamar de credibilidade e passa a ser considerada uma teoria. Exatamente isso aconteceu com a teoria de Darwin que é hoje considerada uma das maiores conquistas do conhecimento humano, ao lado de teorias como a relatividade de Einstein e muitas outras.
Assim como aconteceu com Einstein, Darwin não tirou do nada a sua teoria mas se embasou sobre o trabalho de outros pensadores, inclusive de seu avô Erasmus que já propunha o conceito de uma natureza em evolução. Darwin foi o primeiro a usar dados coletados no mundo natural para embasar a afirmação de que a natureza está em constante transformação, e o primeiro a propor o mecanismo da seleção natural como responsável pela sofisticação e detalhamento hoje observados. Em seu livro A Origem das Espécies, 1859, ele conseguiu estabelecer uma base científica para se discutir a variedade dos seres na terra e as origens dos humanos.
Considere um grupo de seres que vivem um uma região restrita do planeta. Digamos que seja formado por pequenos ratos de cauda longa, predadores de insetos e mamíferos menores, e predados por aves de rapina. Definimos como pool genético o conjunto de genes de toda essa população. Existe uma certa variância nesse pool, uma vez que os ratos são ligeiramente diferentes uns dos outros. Como sabemos os genes são os responsáveis pelo armazenamento dos dados de construção dos indivíduos, os transportadores da hereditariedade entre pais e filhos. No entanto os genes não são invariantes: eles se transformam por meio de mecanismos diversos, sejam eles internos, como falhas de duplicação do DNA, ou externos, como influência de elementos químicos, radiação ou ação de vírus. Essas mutações são aleatórias, podendo introduzir uma melhora de performance no indivíduo, pernas mais fortes, talvez, ou causando a sua morte (como no caso de câncer). Os genes mutados são passados para os filhos se os pais sobreviverem até a idade de procriação, alterando o pool genético.
Estas mutações podem ser radicais, causando o nascimento de filhos muito diferentes dos pais, ou serem pequenas, produzindo filhos bastante semelhantes aos pais. Alterações radicais tendem a não prosperar, matando rapidamente o indivíduo. Alterações mais suaves podem trazer vantagem, como melhor velocidade de escape na fuga de um predador, ou maior competência para a captura de seu alimento. Mas também podem trazer desvantagens: indivíduos muito lentos podem ser capturados antes mesmo de se reproduzir. Uma alteração possível seria a de novos ratos nascendo com caudas mais longas. Se isso facilitar a sua captura pelos predadores, as aves de rapina, então a comunidade veria uma lenta transformação em direção à ratos de caudas mais curtas. Por outro lado o meio ambiente também faz demandas de ajustamento. Se o clima começa a ficar muito frio os ratos de pelos compridos são favorecidos enquanto aqueles de pelos curtos podem não suportar o frio e morrerem antes da idade de procriação.
Resumindo, a evolução tem dois elementos básicos: a alteração lenta dos indivíduos provocadas por mudanças aleatórias em sua genética, e a seleção natural que faz prosperar alterações favoráveis à sobrevivência dos indivíduos. A seleção natural nada tem de aleatória. Ela filtra as modificações dos indivíduos favorecendo aqueles melhor adaptados ao ambiente.
Imagine em seguida que uma barreira natural surja separando fisicamente a comunidade dos ratos. Ela pode ser, por exemplo, o surgimento de uma cadeia de montanhas intransponível bem no meio da região onde moravam os primeiros roedores, dividindo em dois o grupo original. De um lado a dieta fica inalterada. Do outro apenas insetos voadores estão disponíveis fazendo com que alterações genéticas que favorecem ratos saltadores sejam preferidos pela seleção natural. Com o tempo as duas comunidades começam a divergir, podendo ficar tão diferentes que nem mais possam acasalar entre si. Nesse caso terá surgido uma nova espécie.
Essa descrição, apesar de simplista, ilustra o mecanismo da evolução proposto por Darwin. Não se conhecia na época a genética e como ela é responsável pela transmissão de características entre pais e prole. A descrição, inicialmente apenas uma hipótese, passou pelo teste da confirmação do que se observa na natureza e fez diversas predições sobre coisas que deveriam ser observadas, e de fato foram!
É um erro comum pensar que a evolução tem um propósito, uma direção preferencial. Pior erro é considerar que a humanidade é, de alguma forma, o ápice da evolução ou que todo o processo se deu para a geração de humanos.
A teoria de Darwin não trata de como a vida surgiu. Mas, considerando que temos hoje no planeta Terra uma grande variedade de seres, e que todos eles usam o mesmo mecanismo genético de carregar informações entre as gerações (que usam o código digital de quatro dígitos, que denominamos GCAT) é válido se propor que toda a vida partiu de um único ancestral comum.
Você já deve ter notado que as pessoas, em geral, não estão muito preocupadas com a consistência lógica de suas argumentações quando debatem. Isso provoca desperdício de esforço e tempo, pelo menos quando os envolvidos estão interessados em atingir alguma conclusão sincera. É fácil perceber que nem sempre o maior empecilho é lógico. Interações humanas são complexas e envolvem mais do que mero rigor lógico. De qualquer forma é útil compreender quais são as formas de se argumentar e quais são os erros mais comuns neste campo.
Na era da comunicação facilitada pela internet o debate vem perdendo rigor e sendo dominado pela parcialidade, partidarismo, rejeição e ódio entre grupos rivais. Existem muitos motivos, além dos lógicos, para que uma pessoa defenda apaixonadamente um ponto de vista. Ela pode ter se identificado pessoalmente com o argumento, por uso continuado, por tradição ou porque o considera útil para si ou seu grupo social. Pessoas constroem autoimagens baseadas em suas crenças e se sentem atacadas ao verem em disputa aquilo que tanto prezam. Pode ocorrer que alguém se apegue a um conceito durante a argumentação, e brigue por ele, para preservar sua autoestima ou consolidar sua posição como bom debatedor.
Seja qual for a causa geradora de falhas em um debate sempre é útil aprender a formalizar o raciocínio, entender um pouco de lógica ou a falta dela. Isso nos ajuda a manter a clareza de pensamento e sua expressão. Saber analisar argumentos de outras pessoas também nos ajuda a entendê-las, aceitando suas propostas ou as rejeitando quando necessário.
Introdução
Todos os argumentos têm a mesma estrutura básica: Se \(A\) então \(B\) onde \(A\) e \(B\) são afirmações. \(A\) pode ser formado por uma ou várias premissas, um fato ou suposição usado para a construção do argumento. Às premissas se aplica um tratamento lógico (então) para chegar a \(B\), a conclusão.
Exemplo:
A equivalência é um princípio lógico. Se usamos como premissas que \(A = B\) e \(B = C\), usando o princípio lógico da equivalência, concluímos que \(A = C\).
Uma falácia lógica é a aplicação incorreta de um princípio lógico. Um argumento baseado em uma falácia não é válido. Se as premissas são verdadeiras e a lógica é válida então a conclusão é válida. Premissas falsas, mesmo com lógica válida, levam a um argumento inválido, ainda que a conclusão esteja correta. Se todas as premissas são verdadeiras e a conclusão obtida é falsa então ocorreu um erro na argumentação, uma falácia lógica.
Defender a veracidade de uma afirmação é mostrar que as premissas são verdadeiras e a argumentação é válida. Refutar uma afirmação é mostrar o oposto: que as premissas são falsas ou a argumentação é falaciosa, ou ambos estão incorretos.
Evidentemente o exame das premissas é o primeiro passo em qualquer argumentação. De nada adianta prosseguir em uma longa série de raciocínios se as premissas estão incorretas. Premissas podem ser falsas, podem não ser sólidas (carregar dúvidas) ou serem apenas expectativas dos debatedores, algo que não podem ser mostrado ou inferido à partir do que se sabe.
Não é raro que um debatedor escolha apenas as premissas adequadas ao seu argumento, ignorando as desfavoráveis. Muitas vezes a conclusão esta decidida antes do debate e as premissas são escolhidas “a dedo” (cherry picking, em inglês) para alcançar a meta desejada. Portanto é uma boa prática identificar quais são as premissas usadas, verificando se há consenso entre os debatedores de elas estão corretas. Não é incomum a definição de premissas restritivas “para efeito do argumento”. Deve-se, no entanto, lembrar que as conclusões daí obtidas também sofrem das mesmas restrições iniciais.
Também existem as premissas ocultas, tratadas adiante. Elas tornam mais difícil o exame do argumento. Um desentendimento baseado em uma premissa não declarada não terá solução até que ela seja exposta com clareza.
Exemplos:
Um criacionista (alguém que rejeita a teoria da evolução) afirma: “Não posso crer na teoria de Darwin porque não existem ‘elos perdidos’ no registro fóssil”.
“Não aceito que as mulheres sejam tratadas como homens no mercado de trabalho. Mulheres são seres delicados que devem se dedicar à criação de seus filhos”.
O “elo perdido” é uma referência a um fóssil meio humano meio macaco que provaria a evolução gradual de um animal ancestral parecido com um macaco moderno até seres humanos. No entanto antropólogos encontram toda uma série de fósseis mostrando a mudança gradual entre essas (e outras) espécies. A recusa em aceitar essa evidência está em uma premissa oculta (até que seja declarada) na crença religiosa da criação instantânea dos humanos e de todos os seres. No segundo caso é frequente o debatedor estar se baseando na premissa oculta de homens e mulheres possuem papéis fixos, determinados pela religião e pela tradição.
As duas argumentações citadas não podem levar a conclusões válidas, nem a favor e nem contra, apenas com os elementos citados. E certamente nunca chegarão a lugar algum se as premissas ocultas, que podem ser verdadeiras ou falsas, não forem declaradas e justificadas. Em ambos os casos o debate deve ser trazido para níveis mais básicos, na discussão das próprias premissas usadas.
Nossos cérebros, apesar de espetaculares, não estão livres de falhas. Pelo contrário, eles contém erros (ou bugs) conhecidos. Um exemplo desses bugs é a nossa tendência de usar atalhos de pensamento, instrumentos úteis na vida cotidiana mas que podem ser um empecilho quando tentamos ser racionais. Muitos desses processos foram acumulados evolutivamente. Por exemplo, um homem primitivo na savana pode julgar que uma folha em movimento indica a aproximação de um animal perigoso. Vale mais a pena fugir do que ir em busca da verdade.
Além disso não somos compostos apenas por partes lógicas. Humanos necessitam estar em grupo e a adesão à um conceito ou crença é parte essencial da formação desses grupos. Há quem argumente, por exemplo, que a religião foi o único instrumento com força suficiente para agregar populações enormes como as que hoje vivem nas grandes cidades. Você pode mudar de ideia para agradar sua família ou seu parceiro, sem nenhuma consideração lógica.
As falácias lógicas listadas não são independentes. Algumas delas são facetas ou variações de outra falácia. Elas podem ocorrer em grupos, mais de uma falácia na mesma argumentação. A lista que se segue não é exaustiva.
Non sequitur
A expressão latina non sequitur significa não decorre de. É a expressão genérica de uma falácia, da conclusão que não pode ser obtida logicamente das premissas. Afirmações totalmente desconexas são exemplos de non sequitur.
Exemplos:
“Minha primeira professora de piano era extremamente nervosa. Todas as professoras de piano são nervosas”.
“Sempre vejo meu vizinho com seu cachorro quando saio para caminhar. Acho que ele só caminha quando eu saio.”
Praticamente todas as falácias induzem a um erro do tipo non sequitur. Alguns autores recorrem a essa definição quando a falácia não se encaixa em nenhuma outra bem definida.
Ao homem
A falácia de ad hominem costuma ser mencionada por seu nome em latim e consiste no ataque à quem profere uma afirmação em vez de discutir o mérito da afirmação. Ela tem a intenção de desviar o foco da discussão desacreditando o oponente.
Exemplo:
“Você não pode afirmar nada sobre o regime militar de 1964 porque não é um historiador”.
“Pessoas céticas não acreditam que OVNIS (objetos voadores não identificados) vêm de outros planetas porque têm a mente fechada”.
Por mais que seja útil ouvir o relato de um historiador sobre eventos do passado, o fato de alguém não ser historiador não invalida suas afirmações no tema. Ele pode ter estudado o assunto ou simplesmente retirado a afirmação de alguma fonte válida, e pode até ter acertado por sorte. Atribuir a descrença sobre a origem extraterrestre de OVNIS à deficiência de quem não quer acreditar é outro exemplo.
De qualquer forma, diminuir o mérito de alguém para derrotá-lo em um debate consiste em ad hominem ofensivo. Também existe um segundo tipo, o ad hominem circunstancial, que ataca a argumentação questionando a motivação de quem debate.
Exemplos:
“O prefeito tomou medidas para diminuir a taxa de espalhamento da doença contagiosa na cidade, mas ele apenas quer agradar seu eleitorado e ser reeleito”.
A: “Não posso dar emprego a esse candidato porque desconfio de sua integridade. Por que ele foi demitido de seu último emprego”?
B: “Você não está qualificado para avaliar o candidato pois só mantém seu emprego por ser parente do patrão”.
Independentemente da motivação do prefeito as medidas tomadas devem ser avaliadas por seus méritos. Ataques ad hominem podem desviar o foco do debate e levar a uma mera troca de acusações.
Como em outros casos de falácias pode ser difícil saber se o argumento empregado tem ou não relevância no contexto da discussão. Um insulto ao oponente não representa, em si, um ad hominem se não for usado como meio de chegar a uma conclusão. O importante é que o argumento não é suficiente para que as partes cheguem a uma decisão. Existem casos, como em um depoimento judicial, em que podem ser extremamente importantes atacar ou defender a credibilidade de quem levanta uma argumentação.
Apelo à hipocrisia
A falácia do apelo à hipocrisia, tu quoque ( que significa: você também) ocorre quando, ao invés de considerar argumentos, o debatedor aponta alguma contradição entre o que a pessoa está defendendo e suas ações ou afirmações prévias. O objetivo é de desviar a atenção do mérito da argumentação, apontando para uma suposta incoerência do adversário. Essa falácia é também uma modalidade de ad hominem.
Exemplo:
“Você defende o socialismo mas usa um iPhone”.
A: “Se você tratar seus colegas de trabalho com cordialidade você será bem tratado por eles”. B: “Mas você é muito grosseiro com seus subordinados”.
A: “O cristianismo é bom porque estimula as pessoas a serem melhores em sua vida”. B: “Você não poderia afirmar isso porque é um péssimo pai e marido”.
Se a alegação de incoerência for falsa e inventada ela representa apenas um ataque gratuito que pode ter outras consequências além da perversão do debate. Mas, mesmo que seja verdadeira, ela não é uma argumentação válida pois é perfeitamente possível que uma pessoa incoerente esteja dizendo algo válido.
Culpa por associação
A culpar por associação consiste na tentativa de invalidar um argumento porque ele está associado a uma pessoa, ou grupos de pessoas, consideradas de má reputação por quem argumenta.
Exemplos:
“O presidente Obama queria estabelecer um sistema de saúde nos EUA semelhante ao de países socialistas, o que é inaceitável”.
“Mulheres não deveriam ter permissão para dirigir, como acontece nos países não muçulmanos.”
“O catolicismo está desacreditado no mundo porque Hitler era católico.”
O projeto de Obama para o sistema de saúde poderia ser bom (ou não) independente de ter sido o modelo adotado em alguns países socialistas. É um exemplo claro de non sequitur. A conclusão não é consequência lógica da premissa. O segundo exemplo é usado em países islâmicos que, com frequência, buscam se distanciar do comportamento ocidental. Claro que a argumentação só pode ocorrer entre pessoas que concordam com a premissa. Caso contrário ele seria um contra-argumento.
Uma forma de se conseguir aderência mais ampla para a argumentação é usar premissas universalmente (ou quase) aceitas, tais como a rejeição à Hitler e o nazismo.
Apelo às consequências
Uma afirmação pode ser verdadeira mesmo que, em decorrência dela, coisas desagradáveis possam ocorrer ou que tenhamos que concluir coisas de que não gostamos. Da mesma forma as consequências positivas de uma proposição não implicam que ela seja verdadeira. Defender ou refutar um argumento apelando para as suas consequências é uma falácia lógica comum. Reagimos com esperança às proposições com consequências positivas e com temor quando elas são negativas. Nada disso tem poder para tornar uma argumentação verdadeira ou falsa. A falácia do apelo às consequências (argumentum ad consequentiam) pode ser reconhecida como uma pista falsa ou manobra de distração (algo que nos alerta para um problema nos argumentos usados), porque desvia a atenção da proposição original para as consequências que ela gera.
A falácia pode assumir as seguintes formas:
Uma proposição é considerada falsa porque, se fosse verdadeira, implicaria ou causaria algo ruim, imoral ou indesejável (subjetiva ou objetivamente).
Uma proposição é considerada verdadeira pois, assim sendo, ela implica ou gera algo bom, desejável e moral (subjetiva ou objetivamente).
Muitas vezes essa falácia é também um apelo aos sentimentos.
Exemplos:
Historicamente a Teoria da Evolução de Darwin levou à políticas de eugenia. Logo a Teoria da Evolução é falsa.
Acreditar em Deus torna as pessoas mais caridosas (ou mais felizes), logo Deus existe.
Se a gravidade existe uma queda de um local alto pode machucar ou matar. Logo a gravidade não existe.
Uma política de redução dos gases que causam aquecimento global teria um custo alto para a economia das países. Logo esses gases não afetam o clima.
A alma humana é imortal, caso contrário não haveria motivo para viver.
Se Deus não existisse as pessoas seriam todas assassinas.
O espantalho
A falácia do espantalho consiste em desvirtuar o argumento do seu debatedor para torná-lo mais fácil de atacar, tornando-o uma caricatura deformada (o espantalho) que contém apenas aspectos desfavoráveis ou simplesmente mentirosos. Esse é um tipo de desonestidade intelectual que prejudica a racionalidade do debate. Ela conta com a ingenuidade e ignorância de quem ouve e, quando compreendida, deveria minar a confiança sobre quem usou o artifício pois, se ele é capaz de representar negativamente o argumento do oponente, provavelmente também desvirtuaria seus próprios argumentos positivamente. Deturpar um ideia é muito mais fácil do que refutar as evidências que a apoiam.
Exemplos:
“Ana disse que o governo deveria investir mais em educação. Bela respondeu dizendo que Ana odeia o Brasil pois quer que o país fique indefeso sem acesso à verbas para os militares”.
A: “Por que o governo só se preocupa com o combate ao crime relegando políticas sociais a um segundo plano”? B: “Você subestima o aumento da violência, da quebra de lei e ordem em grande escala. Você deseja uma sociedade onde as pessoas não se sintam seguras”.
“Este biólogo quer me convencer de que nossos avós eram chimpanzés que estão agora se balançando entre as árvores, uma afirmação ridícula”.
“Se humanos vieram dos macacos por que ainda existem macacos”?
Para tornar o debate mais fácil foi feita uma representação errônea e simplista da biologia evolucionária que afirma a existência de um ancestral comum de humanos e chimpanzés, há milhões de anos.
A falácia do espantalho é uma tentativa de se evitar o real assunto em debate. Ela pode ocorrer por mera ignorância do debatedor ou ser voluntária. Nesse último caso ela é uma atitude de má fé. Uma maneira sutil de fazer isso consiste em desvalorizar as defesas do adversário sem considerá-las, o que viola uma regra básica de um debate que é ouvir com atenção o que o outro diz e procurar compreender o que foi dito.
Um caso muito interessante1 diz respeito ao comportamento de pessoas contrárias ao pensamento da filósofa americana Judith Butler, reconhecida por seus estudos sobre gênero. Em sua visita ao Brasil em 2017 esses opositores se manifestaram contra a sua visita fazendo protestos no aeroporto e em frente ao local do seminário. Um dos manifestantes, um advogado de 24 anos, se explicou da seguinte forma:
“A gente não está aqui pelo tema da palestra, a gente está aqui porque Judith Butler é uma propagadora da ideologia de gênero, uma das principais criadoras e a que mais propaga isso aí. Não é contra as pessoas que são homossexuais ou contra o homem que quer se vestir de mulher. É contra uma ideologia que está sendo pregada às crianças, tentando dizer que mesmo que você nasça homem ou mulher, você pode ter um gênero diferente disso aí. É um absurdo”!
A rejeição à Butler e o protesto foram baseados numa distorção de seu pensamento. Nesse caso é difícil dizer se houve má fé com a distorção intencional das propostas da autora, ou se foi mera ignorância.
Exemplos mais sutis da falácia do espantalho:
Ateus odeiam Deus.
Ateus não acreditam em nada.
“Cherry picking” ou escolha seletiva de argumentos é uma das formas de construir um espantalho, onde apenas características favoráveis ao argumento são apresentados.
Apelo à autoridade
A falácia do apelo à autoridade consiste em afirmar que alguém, um suposto perito no assunto debatido, afirmou ou concorda com o que está sendo afirmado. O inverso também pode ser usado: as afirmações de uma pessoa não é qualificada sobre um tema devem ser falsas. A autoridade pode ser concedida a alguém que estudou o assunto por muito tempo, que tem formação acadêmica ou é reconhecido pela comunidade. Devemos nos lembrar que uma pessoa ou instituição em posição de autoridade pode estar errada. Também não é impossível que a afirmação de alguém não qualificado esteja correta.
Na prática pode ser bastante difícil lidar com essa falácia. É natural que em um debate se evoque a autoridade de um especialista no tema em questão. Se a autoridade citada for alguém realmente bem informado sua afirmação deverá ter peso no debate. No entanto as conclusões daí deduzidas não devem ser consideradas finais. Um argumento deve ser completo e formado por seus próprios méritos.
Se a opinião de um especialista for usada é necessário compreender porque ele tem esse posição e como ele obteve sua certeza. Muitas vezes é difícil, se não impossível, que pessoas não qualificadas em um aspecto específico do conhecimento compreendam plenamente as afirmações de um cientista, por exemplo. Nesse caso é importante que os debatedores compreendam, pelo menos em princípio, o método científico.
(2) Essas palavras só fazem sentido para quem quer refutar a teoria da evolução, da mesma forma que alguém que não aceita as teorias conspiratórias dos que defendem a “terra plana” não se intitulam “terra-redondistas” ou “terra-bolistas”!
Um exemplo é o debate realizado entre “evolucionistas” e “criacionistas”. A Teoria da Evolução é hoje um esteio básico para todo o entendimento da biologia. Existem inúmeras evidências que comprovam seus postulados, conclusões e previsões. Mesmo assim, principalmente com base na fé religiosa, muitas pessoas, inclusive alguns cientistas, defendem que a vida foi programada e construída por Deus em pouquíssimo tempo. É possível, portanto, encontrar estudiosos “criacionistas” (embora em pequeno número!).
Outro debate importante é sobre o aquecimento global e sua origem nas atividades humanas. Há um consenso amplo na comunidade científica de o aquecimento está ocorrendo. Um número expressivo deles ainda defende que a causa é a descarga de gás carbônico na atmosfera, principalmente devido ao uso de combustíveis fósseis. Existem também, embora em menor número, alguns estudiosos que negam o aquecimento ou que sua origem esteja na atividade humana.
Em ambos os casos a decisão sobre quem tem razão deve passar, necessariamente, por um estudo da questão e dos métodos de conclusão utilizados.
Exemplos:
“Impossibilitado de defender a sua posição de que a teoria evolutiva ‘não é real’, Caio diz que conhece um cientista que também questiona a evolução e cita uma de suas famosas afirmações”.
“Pilotos da aeronáutica, que são profissionais altamente treinados, relataram ter visto OVNIS no céu. Logo eles devem existir”.
Uma variante mais restritiva e mais fácil de ser refutada é o apelo à autoridade irrelevante.
Apelo à autoridade irrelevante
Ocorre em argumentações que o apelo faz referência a pessoas não habilitadas para opinar. O apelo a uma autoridade irrelevante, alguém que não é um especialista no tema debatido, embora não seja prova do erro, levanta uma dúvida séria sobre a afirmativa defendida. Um exemplo é o apelo a uma autoridade não revelada ou vaga, no sentido em que não se pode conferir qual foi a verdadeira afirmação por ela proferida. Hoje são clássicas as frases do tipo “estudos revelam”, “cientistas provaram”, etc. A falácia ad populum, a crença de que algo deve ser verdadeiro se é defendido por um grande número de pessoas, é outro exemplo. Outra forma clássica é o apelo à sabedoria antiga, onde se assume que algo é verdadeiro porque foi originado num passado distante. Da mesma forma o apelo à uma autoridade religiosa pode constituir uma falácia grave.
Exemplo:
“A astrologia era praticada há milênios na China, logo deve ter um fundamento”.
“Meu pastor afirma que o elo perdido entre humanos e macacos nunca foram encontrados, logo a evolução não existe”.
“Não acredito em átomos com prótons e elétrons porque nunca vi nada disso”.
O argumento de antiguidade não serve para mostrar que a astrologia tem qualquer vinculação com a realidade (embora também não sirva para desqualificá-lo). O pastor pode ser bem instruído sobre as doutrinas que ensina mas isso não o qualifica a fazer afirmações sobre biologia. No último caso a autoridade irrelevante, como ele mesmo se declara, é o próprio afirmador.
Falácia naturalista
A falácia naturalista consiste em afirmar que algo está correto ou é bom porque é natural, derivado diretamente de um objeto da natureza. Alternativamente, afirmar que algo é falso, ou ruim (mal) se não está disponível na natureza.
Exemplos:
“Medicamentos fitoterápicos não fazem mal pois são extraídos de plantas”.
“Alimentos geneticamente modificados são um grande perigo para a saúde humana”.
A falácia naturalista é o conceito de que tudo o que é encontrado na natureza é bom por princípio. Ela foi usada na base do Darwinismo Social, a crença de que ajudar pobres e doentes seria algo contrário à evolução, que depende da sobrevivência do mais adaptado. Hoje os biólogos denunciam isso como uma falácia pois eles pretendem descrever o mundo natural com honestidade, sem fazer apelos morais àquilo que julgamos ser normas de comportamento. Um exemplo é a afirmação: ‘se pássaros e outros animais cometem adultério, infanticídio e canibalismo então humanos também podem fazer isso’.” (Steven Pinker, The Blank Slate)
Remédios fitoterápicos podem ser danosos à saúde como qualquer outro remédio, principalmente se tomados em doses exageradas. Algumas plantas são venenosas, mesmo em baixas dosagens. Alimentos geneticamente modificados tem sido usados há muito tempo sem que nenhum efeito colateral para a saúde humana tenha sido detectado. Vale lembrar que a absoluta maioria dos produtos que hoje consumimos, inclusive verduras e frutas, não estão em sua forma natural mas passaram por longo processo de alteração por meio de seleções não naturais.
Esse significado do termo “falácia naturalista”, como idêntico à “apelo à natureza” e algo diferente do significado original, tem sido bastante empregado na atualidade.
A falácia do equívoco
A falácia do equívoco consiste na exploração de significados ambíguos de palavras que são usadas de maneiras diferentes durante o argumento para sustentar uma conclusão infundada. Por isso, em qualquer debate, os termos usados devem ser claramente definidos dentro do contexto em que são aplicados. Quando se emprega o mesmo sentido para uma palavra em todo o argumento, ela está sendo usada de modo unívoco ou inequívoco.
Exemplo:
“Você diz que não tem fé mas quando age com fé o tempo todo. Fecha negócios, confia em amigos, acredita que o sol vai nascer pela manhã”!
Aqui, o significado da palavra “fé” é usado à princípio como crença espiritual num criador e depois muda para uma questão de confiança em outras pessoas ou eventos naturais.
Um exemplo clássico pode ser encontrado na discussão entre religião e ciência. A expressão “por que” pode ser empregada com o significado de “quais são as causas”, e nesse sentido ela é plenamente contemplada pela busca científica. Um objeto cai porque é atraído pela massa da Terra e essa atração obedece a lei da gravitação de Newton. Essa lei não é completa e não explica a causa da atração mas apenas a sua forma. Essa limitação foi saneada (em certa medida) pela teoria de Einstein que explica a atração entre massas como causada pela curvatura do espaço-tempo. Mas, se a expressão for usada com o significado “com qual propósito”, algo que pode ser importante para a abordagem religiosa, ela não terá nenhuma resposta científica.
Exemplo:
“A ciência pode explicar como as coisas funcionam mas é incapaz de nos explicar porque existimos, porque alguma coisa é correta ou imoral. Portanto precisamos de outra fonte, como a religião, para nos dizer porque as coisas acontecem, o que é ético e o que não é.”
“Um amigo estava caminhando na calçada quando foi atingida por um tijolo que se soltou, provocando sua morte. Por que logo ele foi atingido?”
A ideia de propósito em geral envolve motivação moral que são importantes para a psique humana mas que não tem representação real na natureza. No exemplo do tijolo solto, houve motivação para que o tijolo atingisse a pessoa? Alguma justiça ou injustiça foi aplicada?
A falácia do equívoco pode estar baseada em uma falha geral na definição dos termos.
Exemplo:
“O homem é o único animal racional. Mulheres não são homens, logo nenhuma mulher é racional.”
“Beto disse que deve chover hoje. Mas não acho que nuvens não vão atender a sua expectativa.
O uso da palavra “homem” (bem equivocado!) se refere à “humanidade”, e não ao gênero. Esse é um erro comum como se vê no uso universalizado de expressões como “Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem”. No segundo caso a palavra “deve” foi usada como “é provável”, mas o outro a interpretou como “desejo que”.
Falsa dicotomia
A falsa dicotomia, ou falso dilema, é um erro lógico que consiste em excluir todas as possibilidades de resolução de uma questão deixando apenas duas categorias possíveis. Essa falácia procura estabelecer a verdade de uma afirmação em contraposição a uma única posição divergente oposta à primeira, em geral mal escolhida e fácil de refutar. Com frequência as posições consideradas representam facetas extremas de alguma questão que suporta um espectro vasto de opções. Ela se aproveita do chamado “pensamento binário”, uma consequência da crescente radicalização das posições em voga na atualidade. Ao rejeitar uma das opções apenas a versão oposta pode ser verdadeira. Essa forma de pensamento provavelmente decorre do fato de que, muitas vezes na natureza, as coisas realmente são dicotômicas, tal como a ocorrência de um evento. Algo ocorreu ou não ocorreu!
Exemplo:
“Marcos falou contra o sistema capitalista, logo ele é comunista.”
“Se não reduzirmos os gastos públicos nossa economia entrará em colapso.”
“Brasil: ame-o ou deixe-o.”
O universo não pode ter sido criado do nada, então deve ter sido criado por Deus.
O proponente de um falso dilema pode agir de forma desonesta, ocultando as demais possibilidades, mas também pode ignorar que elas existam. Em qualquer dos casos é útil que um dos debatedores possa ter uma visão mais ampla do problema, apresentando soluções adicionais.
O oposto dessa falácia também ocorre no falso contínuo, que consiste em amenizar diferenças de coisas que são, de fato, extremos opostos. Ela consiste em tomar duas coisas distintas e antagônicas e buscar amenizar a diferença entre elas sob a o argumento de que são parte de um espectro contínuo.
Exemplo:
“Políticos de extrema direita e de extrema esquerda são idênticos. Todos são apenas políticos”.
Causa questionável
A causa questionável ou causa falsa é a confusão, muito frequente, entre correlação e causalidade. A falácia que consiste em estabelecer, sem provas, que a causa de alguma coisa é um evento anterior ou simultâneo a ele. Ela é denominada também pela expressão latina post-hoc ergo propter hoc que significa “depois disso, logo causado por isso”. Se um evento ocorre depois de outro assume-se que ele foi causado pelo primeiro.
A correlação entre eventos pode ser pura coincidência ou resultado de algum outro fator. Sem evidências extras não é possível concluir que um evento causou o outro. Existem inúmeros exemplos clássicos de coisas que exibem comportamentos sincronizados (talvez aproximadamente) por algum tempo sem que um seja o causador do outro.
Exemplos:
Em uma universidade (fictícia) se verificou que 80% dos alunos que abandonam cursos tiravam notas abaixo da média. Logo se conclui que o baixo desempenho é a causa da evasão.
“Na década de 1990 o envolvimento das pessoas em grupos religiosos e o uso de drogas estavam em alta. Portanto a religiosidade provoca o uso de drogas”.
Nesses casos as conclusões apressadas geram falácias lógicas. Estudos mostram que existem muitos fatores que causam essa evasão. O abandono do curso e o baixo desempenho podem ter causas comuns tais como acesso do estudante à recursos financeiros e escolha errônea da carreira. Pode ocorrer que as drogas incrementem a religiosidade, que as variáveis estejam atreladas a uma terceira, ou ainda que sejam totalmente não correlacionadas.
Existe também abuso lógico na atitude contrária: a negação de causalidade bem estabelecida por estudo estatístico.
Exemplo:
No estudos clínicos de verificação de eficiência de um medicamento novo envolve muitas variáveis que devem ser controladas. Não basta correlacionar o uso de medicamento com a melhora do paciente. Controles usuais são o uso de placebos e de controle randomizado e cego de pacientes que usam a droga, usam o placebo ou não usam nada.
Foi observado que o fumo causa câncer. A indústria do cigarro tentou descartar a afirmação alegando que “correlação não prova causalidade”. Vários outros teste foram necessários, tais como associar tempo de uso do cigarro e uso de filtros com a incidência da doença.
Essa busca forçada por explicações causais são uma característica evolutiva de nosso cérebro treinado para encontrar padrões. Ele é falho pois nos faz perceber padrões e relações que não existem. É o que ocorre quando julgamos ouvir alguém invadindo nossa casa quando escutamos um barulho natural ou não ligado a um invasor. Efeito parecido é o da pareidolia, que nos faz ver faces em borrões e manchas.
Exemplo:
“Os terremotos e furações estão muito frequentes porque as crianças não rezam mais nas escolas”.
“A AIDS é uma doença gerada pelo comportamento imoral de algumas pessoas”.
Resta lembrar que, mesmo que se verifique mais tarde que a suposta causa é responsável pelo evento que se deseja explicar, a afirmação continua falaciosa pois é logicamente incompleta. A falácia seguinte não raro ocorre junto com a causa questionável.
Generalização precipitada
Generalização precipitada é a falácia que ocorre quando se conclui algo a partir de amostra pequena ou específica demais para representar o conjunto sobre o qual se quer decidir algo.
Exemplos:
“Alguns adolescentes vandalizaram o praça pública. Adolescentes são sempre mal comportados”.
“Em Nova Iorque e fui maltratado por vendedores nas lojas. Americanos são muito grossos”.
“A maioria dos brasileiros apoiam o plano do governo federal para aumentar a oferta de empregos diminuindo os direitos trabalhistas. Sabemos isso porque perguntamos a opinião de quase todos os moradores de um bairro nobre de São Paulo.”
“As pessoas acreditam que um determinado medicamento funciona bem porque foi testado e aprovado por alguns conhecidos”.
Generalizações precipitadas podem levar a erros catastróficos. Foi o que se deu com a explosão do foguete europeu Ariane 5 em seu primeiro voo de teste. O software de controle do foguete havia sido utilizado sem falhas com o modelo anterior, Ariane 4. No entanto os engenheiros descobriram que nem todos os cenários possíveis de ocorrer no Ariane 5 estavam previstos pelos testes anteriores. Exatamente um desses que causou a falha.
Apelo ao medo
A falácia do apelo ao medo (argumentum ad metum) cria a ameaça de consequências desastrosas caso a proposta do adversário seja escolhida, sem provas objetivas dessas consequências (ou não seria uma falácia). O argumento é portanto baseada em distorções dos fatos, de retórica ou puras mentiras.
Exemplo:
“Todos os funcionários dessa empresa devem votar no meu candidato. Se o outro candidato ganhar ele vai aumentar impostos e vocês ficarão desempregados.”
“É melhor você me entregar todos os seus objetos de valor antes que a polícia chegue aqui. Senão, os policiais vão colocá-los num depósito e suas coisas ficarão perdidas no depósito.” (Do livro O processo de Kafka).
“Converta-se à minha religião e vá para o céu. Do contrário vá para o inferno”.
“Respeito sua opinião mas ela te trará muito sofrimento na vida”.
“Faça esse plano de seguros pois você pode sofrer um acidente grave”.
Ameaças ostensivas e genéricas tendem a não oferecer evidências e são, quase sempre, tentativas de manipulação. No apelo ao medo há a tentativa de argumentação, em geral obscurecendo a ligação frágil entre a decisão e a consequência nefasta.
Quando um apelo ao medo descreve uma série de eventos indesejáveis como consequência de uma determinada opção, sem mostrar a conexão causal entre a proposta e essas consequências, ele se assemelha à falácia da bola de neve ou rampa escorregadia. Quando o apelo menciona apenas uma alternativa ela pode ser um tipo de falso dilema.
Note que existem afirmações que fazem apelo ao medo mas não são falaciosas. Nesse caso a ameaça pode ser comprovada por estudo ou argumentação posterior.
Exemplo:
“Ao dirigir em caso de chuva forte diminua a velocidade, ou você poderá sofrer um acidente”.
A insinuação de medo, incerteza e dúvida é uma técnica usada com frequência em campanhas de marketing (onde se criou a expressão FUD, fear, uncertainty and doubt). Ela é muito usada na busca de fidelização de clientes a uma determinada marca através de sugestão de que háa algum risco na compra de produto de outra marca.
Apelo à ignorância
O apelo à ignorância (ad ignorantiam) consiste em afirmar que algo é verdade apenas porque não foi provado falso. Ele transforma a ausência de evidência em evidência de ausência.
Exemplos:
“Não temos como explicar todas as aparições de OVNIs, logo eles são naves de outros planetas.” (Citado por Carl Sagan)
“A perceção extrassensorial é um fato pois não conhecemos a totalidade do funcionamento do cérebro humano”.
“Não posso entender como humanos podem ter viajado até a Lua, logo isso nunca aconteceu.”
“Não temos a menor compreensão de como a vida surgiu na Terra e nem como foram formadas as estruturas biológicas mais complexas. Por isso defendo o desenho inteligente”.
Ela é uma forma de esquecer um fato lógico básico e importante que é o ônus da prova é de quem faz afirmação“. Se afirmo que possuo um unicórnio rosa e invisível guardado no armário eu terei que provar isso, e não esperar que outra pessoa mostre que isso não é possível.
Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Caso contrário temos que assumir nossa ignorância sobre o fato. Além disso não é correto se afirmar que, coisas para as quais não existem explicação no momento, são inexplicáveis.
Nenhum escocês de verdade
Essa falácia recebeu o nome do exemplo dado por Antony Flew em 1975 em seu livro Thinking about Thinking (Pensando sobre pensar). “Lendo o jornal Hamish se depara com uma notícia sobre um inglês que cometeu um crime horroroso. Ele reage dizendo: ‘Nenhum escocês faria algo tão horrível’. No dia seguinte o jornal traz outra notícia sobre um escocês que cometeu outro crime, ainda mais terrível. Mas Hamish não muda de opinião e afirma: ‘Nenhum escocês de verdade faria tal coisa’”.
A segunda afirmação redefine o que se entende por escocês de forma a manter inalterada a afirmação. Esse tipo de argumento surge quando alguém faz uma generalização sobre um determinado conjunto de elementos e, sendo mais tarde desafiado por evidências que mostram o contrário, ele redefine a natureza de conjunto a que se referia, de forma vaga e arbitrária.
Exemplo:
“Programadores são pessoas antissociais e de difícil convívio.” Outra pessoa nega essa afirmação dizendo: “Conheço o Paulo, um programador extrovertido e afável, que se relaciona muito bem com todas as pessoas da empresa”. O afirmador inicial refaz sua afirmação: “Verdade, mas o Paulo não é um programador típico.”
Aqui, não está claro o que ele considera ser um programador típico. Com uma redefinição apropriada do conjunto mencionado, a afirmação seria sempre verdadeira perdendo portanto a sua importância.
Se o debatedor redefine uma categoria flexibilizando o significado do termo usado para definí-la ele pode estar usando também a falácia do equívoco (onde um termo é usado de formas diferentes). Se ele altera o escopo do conjunto para menosprezar o argumento do adversário ele pode estar usando o espantalho.
Falácia genética
Nesse caso a palavra genética se refere às origens de um argumento, tanto histórica como da pessoa que o gerou. A falácia genética ocorre quando um argumento é defendido ou desvalorizado com base em suas origens, sem o exame de seu mérito intrínseco. Ela exibe apreço (ou desprezo) pelo argumento apenas devido às suas origens.
Exemplo:
“Ele apoia a greve dos sindicatos porque era um sindicalista antes de se tornar político”.
“Estamos no século XXI, não podemos continuar mantendo crenças da Idade do Bronze.”
“Carros produzidos na China não são bons porque eu não confio em chineses.”
“Não deveríamos continuar usando os termos ‘por do sol’ ou ‘sol nascente’ pois essas expressões foram criadas quando se pensava que o sol girava em torno da terra.”
No primeiro caso não há análise do mérito em se apoiar a greve mas apenas uma tentativa de desvalorizar o apoio com base na origem do político. No segundo não existe uma consideração sobre o porque das ideias antigas não permanecerem válidas. A terceira espera lançar descrédito sobre um produto baseado na desconfiança vaga de quem o produziu. Todas as três afirmações podem ser verdadeiras, mas não devido à argumentação que apresentam. A afirmação sobre geocentrismo parte de uma premissa verdadeira, a origem das expressões, mas desconsidera que as palavras ganharam novo significado com o novo entendimento da astronomia.
Inconsistência
A inconsistência consiste na aplicação de um critério ou regra para apenas alguns membros de alguma classe, deixando indevidamente outros de fora.
Exemplo:
“Somos a favor de uma regulamentação forte sobre o uso e comercialização de medicamentos, mas pela liberação da venda indiscriminada de fitoterápicos e complementos alimentares”.
“A Bíblia é um livro que só contém verdades e os cientistas são pessoas iludidas por sua própria vaidade. De fato muitos cientistas mostraram que o dilúvio de Noé realmente aconteceu”.
Afirmação do consequente
Na lógica formal se usa a expressão modo de afirmar (modus ponens) com o seguinte significado: supondo que A implica C (ou seja, sempre que A é verdade C também é) então basta mostrar a veracidade de A para concluir a de C. A é chamado de antecedente, C o consequente. Essa é uma regra de inferência, já citada pelo pensador grego Teofrasto.
Exemplos:
Premissa: Se A então C: A: Se você tem uma senha válida, C: você pode entrar na rede de computadores
Se sabemos que a premissa A é verdadeira podemos concluir que C é verdadeiro: A: Você tem uma senha válida,: C: logo pode entrar na rede de computadores.
“Uma pessoa nascida no Canadá é canadense.”
“Bela nasceu em Ontário logo ela é canadense.”
A falácia da afirmação do consequente inverte, erroneamente, a lógica do modus ponens. Ele promove uma inversão da relação de causa e efeito, afirmando que algo é causado por sua própria consequência.
Exemplos:
“Carlos é canadense logo ele nasceu no Canadá.”
“Dario entrou na rede de computadores, logo ele possui senha válida.”
“Pessoas que frequentam bons cursos universitários se tornam cultas. Erasmus é culto, logo cursou boa universidade.”
No primeiro caso é possível que Carlos tenha nascido em outro país e se naturalizado canadense. E a rede de computadores pode permitir o acesso de usuários “convidados”, sem necessidade de senha. Erasmus pode ser um autodidata.
Ladeira escorregadia
A ladeira escorregadia (“slipery slope”, em inglês) é conhecida também como “bola de neve”. Esta falácia busca refutar uma proposta sob a argumentação de que sua aceitação produziria uma sequência de eventos indesejáveis. Aqui também, pode ser correto dizer que existe uma certa chance de que os eventos possam ser produzidos, mas a argumentação falaciosa não oferece prova de que eles são inevitáveis, como se tenta fazer parecer. É frequente que essa argumentação esteja associada ao medo, estando relacionada a outras falácias como o apelo ao medo, falso dilema e argumento a partir das consequências.
Em outras palavras ela afirma que se uma posição for aceita como verdadeira necessariamente posições muito extremas e radicais terão que ser igualmente aceitas.
Exemplos:
“Não permite que seu filho jogue video-games violentos. Isso vai torná-lo antissocial, irritadiço e tendente a partir para uma vida de criminalidade”.
“O acesso à internet não pode ser livre. Com ele as pessoas frequentam sites pornográficos, o que deteriora a moralidade social e nos leva a um comportamento de meros animais”.
“O rock (música) ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo.”
Nenhum dos argumentos apresenta evidências de que existem relações entre as premissas e as conclusões. Argumentos desse tipo muitas vezes estão carregados de premissas ocultas, algumas delas sobre temas que nem o afirmador gostaria de revelar publicamente.
Apelo à popularidade
O apelo à popularidade, ou apelo ao povo (argumentum ad populum), visa mostrar que algo é verdadeiro apenas porque muitas pessoas o aceitam como tal. Ele se baseia na crença comum de que algo aceito pela maioria deve ser verdade ou correto.
Exemplos:
“Todo mundo diz que não há problema em mentir, desde que você não seja pego.”
“Pode ser contra a lei beber quando você tem 18 anos mas todo mundo faz isso. Então está tudo bem.”
“25% da população acredita que o aquecimento global é uma farsa. Logo deve haver alguma verdade nisso!”
Dietas de baixo carboidrato devem ser saudáveis pois todos os meus amigos estão fazendo, com sucesso!”
Vários exemplos interessantes podem ser encontrados na história da ciência. Quando Galileu Galilei, com base em suas observações e estudo da obra de Copérnico, concluiu que a Terra girava em torno do Sol ele foi ridicularizado porque era crença comum, mesmo entre as pessoas cultas da época, que todos os astros giravam em torno de nosso planeta. O mesmo ocorreu quando ele viu manchas no Sol, algo impossível para o pensamento da época que considerava a substância celeste como imaculada.
O médico australiano Barry Marshall concluiu que as bactérias H. pylori poderiam causar úlceras estomacais em pessoas infectadas. A comunidade científica rejeitou totalmente a ideia que destoava do pensamento estabelecido na época. Para que seus colegas considerassem seu argumento, em 1984 Marshall se inoculou com essas bactérias provocando úlceras em si mesmo e se curando depois com antibióticos.
O ambiente de publicidade usa a técnica de convencer as pessoas a usar um produto fazendo-as crer (ou perceber) que muitas outras pessoas já o fazem. Independentemente de ser um bom produto ou não a argumentação é falaciosa. Um exemplo é vender um sabonete sob a alegação de que os artistas usam esse produto. Também os políticos se aproveitam de popularidade para serem eleitos e, depois, para impulsionar suas campanhas. É o que faz com que tantas pessoas da mídia, apresentadores de televisão, radialistas, etc., sejam eleitos com tanta frequência. Não é impossível que um apresentador de televisão famoso possa ser um político mas sua fama, apenas, não é suficiente para estabelecer essa afirmação.
Exemplo do argumento sendo usado de forma reversa:
Todo mundo ama os Beatles e isso significa, provavelmente, que eles não eram tão talentosos quanto os Rolling Stones, que não se esforçaram tanto para agradar ao grande público.
Raciocínio circular
No raciocínio circular as premissas são tomadas diretamente como sendo a conclusão. Essa conclusão pode ser apenas uma repetição das premissas, ditas em outras palavras. A afirmação, se A é verdade então A, é óbvia mas não acrescenta nada. Em alguns casos podem existir premissas não declaradas, o que torna a falácia mais difícil de ser detectada. Essas premissas podem ter sido consideradas conceitos fundamentais ou de domínio de todos, ou estarem omitidas por má fé de quem faz a afirmação.
Exemplo:
“Você está completamente equivocado, pois o que falou não faz o menor sentido.”
“Deus existe pois a Bíblia afirma isso. A Bíblia tem autoridade porque foi inspirada por Deus”.
No primeiro caso as duas afirmações significam a mesma coisa. No segundo o argumento é inteiramente inválido pois, para quem não acredita em Deus, ele não pode ter escrito ou inspirado os autores da Bíblia.
Argumentos circulares muitas vezes apenas afirmam tautologias, que são argumentos que devem ser verdadeiros em qualquer leitura que deles se faça, ou seja, a conclusão é a própria premissa. Em alguns casos a conclusão é expressa de modo diferente da premissa, o que é uma estratégia para dissimular a falácia.
Exemplo:
“Terapias de imposição de mãos são eficazes porque manipulam a força vital do paciente”.
A definição de “terapia de imposição de mãos” está exatamente na alegada possibilidade de manipulação de uma “força vital”, sem contato físico com o paciente. Para mostrar que tais terapias são eficazes seria necessário apresentar outras provas que não a definição do termo, entre elas a existência da chamada “força vital”.
Petição de princípio
A petição de princípio (petitio principii), algumas vezes chamada de “implorando pela pergunta” (ou begging the question, em ingles) é similar ao raciocínio circular. Esta falácia é a tentativa de inserir a conclusão dentro da premissa, em geral de forma insidiosa e pouco clara. Ela pode aparecer na forma de perguntas que, em si mesmas, já carregam a conclusão desejada. Ela difere do raciocínio circular pois a pergunta ou premissa não precisa ser necessariamente idêntica à conclusão desejada.
Exemplos:
“Você já parou de usar drogas?”
“Por que os cientistas temem as afirmações dos religiosos?”
A primeira pergunta afirma que a pessoa usava drogas. A segunda supõe que tal temor existe.
Falsa analogia
A consideração de coisas análogas pode ser útil para o entendimento de algo desconhecido, pelo menos em princípio. O organismo de ratos reage de forma análoga ao humano. Teste de medicamentos em ratos podem sugerir efeitos importantes que uma pessoa teria ao usar o mesmo medicamento. Esses efeitos devem ser depois testados em pessoas antes que seja colocado para uso comum.
Um argumento baseado em falsa analogia supõe similaridade entre coisas, pessoas ou situações que não são similares. Ou, pelo menos, não são similares da forma proposta.
Exemplo:
“A probabilidade de que um organismo complexo se desenvolva ao acaso é idêntica a de que um tornado passando por um ferro-velho crie um avião”.
Não existe similaridade entre os processos. A evolução não funciona ao acaso, como se costuma afirmar. Ela é o resultado de transformações aleatórias (essa parte ocorre por acaso!) filtradas pela seleção natural. Ela é a acumulação, ao longo de muito tempo, de transformações favoráveis, no sentido de favorecer a preservação e multiplicação dos organismos.
Outra forma de se usar falsas analogias consiste em tomar coisas que são realmente análogas, mas não no aspecto considerado no debate.
Composição e divisão
A composição e divisão são dois tipos de falácias assemelhados. A falácia da composição ocorre quando alguém afirma que um conjunto inteiro de elementos têm um atributo, partindo do conhecimento que alguns elementos do conjunto tem esse atributo. Ou seja, quando se julga o todo por suas partes.
Exemplo:
“Em um curral repleto de bois sabemos que cada boi tem (ou teve) uma mãe. Logo todos os bois do curral têm a mesma mãe”.
“Cada módulo desse software foi submetido a testes e passou em todos. Portanto podemos integrar os os módulos em um software final, sabendo que ele também passará nos testes”.
Quando as partes de um software (por ex.) são juntadas para formar um sistema, um outro nível de complexidade é criado apresentando novas propriedades e possíveis erros.
O oposto acontece na falácia da divisão, quando se infere que as partes devem ter um atributo que pertence ao todo.
Exemplo:
“Esse é um excelente time de futebol. Logo todos os seus jogadores são ótimos”.
Claro que existem ótimos times onde todos os jogadores são bons. Mas também pode ocorrer que as habilidades de cada um deles, combinadas com as de seus colegas, tornem o time de excelência sem que cada jogador particularmente seja tão bom.
O tema é bastante difícil. Um sistema muito complexo pode ser (e geralmente é) composto por grande número de partes simples. A simplicidade das partes não pode ser usada para argumentar pela simplicidade do conjunto inteiro.
Alegação especial
Alegação especial (raciocínio ad-hoc) consiste na introdução arbitrária de novo elementos na argumentação de forma a torná-la válida.
Exemplo:
A: “A percepção extrassensorial não foi demonstrada em nenhum experimento controlado”.
B: “Percepção extrassensorial não funciona na presença de céticos”.
Uma forma de alegação especial é a falácia seguinte.
O Objetivo móvel
O Objetivo Móvel é um método de negação que altera arbitrariamente os critérios exigidos para uma prova. Ele usa a exigência da exibição de evidências que estão além do alcance. Caso novas evidências surjam, atendendo aos critérios anteriores, a meta é empurrada para mais longe de modo a ficar sempre inalcansável. Em alguns casos, critérios impossíveis são exigidos logo no início, movendo a meta definitivamente para fora do alcance da argumentação.
Exemplo:
A: “É impossível ir até a Antártica pois existem guardas armados que impedem o acesso”. B: “Muitas pessoas já foram à Antártica”. A: “Mas só alcançaram as bordas, sem nunca ultrapassá-las”. B: “Existem voos do Chile até a Austrália que cruzam o polo Sul”. A: “Todas essas pessoas estão mentindo. Todas fazem parte de uma conspiração global para que acreditemos na terra redonda”.
Uma pessoa se diz contra o uso de vacinas pois ouviu dizer que elas contêm mercúrio que causaria autismo. Então ela é informada que o mercúrio deixou de ser usado em vacinas mas a incidência do autismo não se alterou. A pessoa então afirma que outro produto na vacina é o causador do autismo. A recusa à vacinação tem causado problemas sérios nas comunidades, inclusive com o retorno de doenças contagiosas consideradas derrotadas.
Defensores da terra plana são fonte farta de exemplos de falácias generalizadas, em particular o objetivo móvel. Quando confrontadas com imagens em tempo real feita pela ISS (Estação Espacial Internacional) elas alegam efeitos de distorção das lentes. Imagens do planeta tiradas de fora da atmosfera são tidas como montagens que corroboram sua crença em um complô mundial.
Algo parecido ocorre com aqueles que se recusam a aceitar que o programa espacial levou pessoas até a Lua. Eles possuem um número de argumentos que são mantidos, independente das explicações dadas aos seus questionamentos. Observe que não é fácil alguém demonstrar de forma final que o programa Apolo existiu e foi bem sucedido3 (exceto se você tiver acesso à documentação da NASA ou um laser e souber direcioná-lo para o espelho deixado na Lua pela Apolo 11). Negar isso, no entanto, implica em aceitar uma conspiração entre todas as agências espaciais, cientistas da área, jornalistas, autoridades, etc.
(3) Em julho de 1969 a Apolo 11 levou três astronautas até a superfície da Lua. Eles colheram material do solo lunar e deixaram lá alguns objetos, entre eles um espelho que reflete raios lasers emitidos da Terra. Várias novas descobertas decorreram do experimento, entre elas:
A distância da Terra à Lua pode ser medida com precisão milimétrica.
A Lua está se afastando da Terra em uma taxa de 3,8 cm/ano.
A Lua provavelmente tem núcleo líquido ocupando cerca de 20% de seu raio.
A força da gravidade universal é muito estável.
A Teoria da Gravitação de Einstein faz predições corretas sobre a órbita da Lua.
Na foto o “Experimento de Alcance de Laser”, espelho deixado na Lua pela Apolo 11.
Definições
Argumento é um conjunto de proposições que buscam concluir alguma coisa ou persuadir outra pessoa por meio do debate. Proposições, ou afirmações, podem ser verdadeiras ou falsas.
Premissas são afirmação usadas como base de um raciocínio ou argumento.
Conclusões são afirmações que decorrem logicamente das premissas.
Uma argumentação correta, ou o debate, é a forma de partir de premissas e obter uma conclusão que logicamente decorre delas. Premissas falsas levarão à conclusões falsas.
Falseabilidade é uma característica de uma proposição que permite que ela seja refutada (desmentida), por meio de raciocínio, uma observação ou um experimento.
Cientificamente hipóteses são argumentações, em geral complexas, que podem ser falseadas. Se as tentativas de falsear a hipótese não forem bem sucedidas ela adquire o status de teoria. Uma afirmação que não é falseável não é uma afirmação científica.
Exemplo:
“Existe um universo paralelo que não interage com o nosso de nenhuma maneira”.
“A alma humana não pode ser detectada por nenhum instrumento, por mais sensível que seja”.
Nenhuma das duas afirmações são falseáveis.
Falácias lógicas são erros no raciocínio usado para fazer a transição de uma proposição para outra e resultam em um argumento falho. Isso ocorre quando conclusões são obtidas através de premissas que não justificam aquele resultado. Falácias violam princípios lógicos e as regras que norteiam um bom argumento. No entanto é possível que uma conclusão esteja correta mesmo que obtida por meio de falácias. Elas são, portanto, indicações ou alertas para erros. Para uma boa conduta de raciocínio ou debate as falácias lógicas devem ser evitadas.
Hoje é comum se ver discussões (veja por exemplo as seções de comentários na internet) onde uma afirmação é descartada porque o afirmador não fez uma boa defesa de sua afirmação. Não é raro se ver um leigo explicando de forma fraca ou incorreta um aspecto técnico ou científico.
Um argumento dedutivo é uma forma de extrair conclusões corretas de premissas corretas. A conclusão decorre das premissas, como consequência lógica.
Exemplo:
“Todos os homens são mortais. Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal.”
Um argumento dedutivo é válido se não existem falhas lógicas que partem das premissas para alcançar a conclusão. Um argumento é inválido se isso não ocorrer. Um argumento dedutivo é sólido se for válido e suas premissas verdadeiras. Em princípio se busca estabelecer a verdade verificando que as premissas estão corretas e as conclusões decorrem logicamente delas.
Um argumento indutivo é uma forma de coletar evidências parciais para compor uma hipótese mais ampla. Ao contrário do pensamento dedutivo, que fornece resultados verdadeiros (se o processo for logicamente correto), o resultado da indução tem uma probabilidade de estar correto, dependendo do número de evidências coletadas. Quanto melhor se escolher os resultados que nos fornecem evidências para uma conclusão indutiva, mais confiável é essa conclusão.
Exemplos:
“Em uma pesquisa eleitoral é impossível coletar a intenção de voto de todos os eleitores. Por isso se entrevista parte deles e se induz qual seria o resultado das urnas”.
“Todas as medições feitas até hoje da velocidade da luz no vácuo (geralmente denotada pela letra \(c\)) resultam em \(c = 3×10^8 m/s\). Dai se conclui que essa é uma constante universal”.
Para as pesquisas eleitorais existem técnicas sofisticadas de escolha da amostra (os votos verificados) que melhor representam a população (todos os votos). Quanto melhor for essa escolha menor a faixa de erro envolvida. Quanto à velocidade da luz, não temos como saber se ela é a mesma em um ponto muito distante do universo ou em algum tempo remoto no passado. Uma única medida não compatível bastará para entendermos que essa não é uma quantidade universal.
Na ciência o raciocínio indutivo é geralmente usado na construção dos modelos que são testados e depois se tornam teorias. Um único fato discordante põe por terra toda a teoria.
Teorias científicas devem ter poder explicativo (explicar os fatos já observados) e poder preditivo (a capacidade de prever ocorrências de coisas nunca vistas). A teoria da evolução, por exemplo, prevê que ancestrais comuns devem ser encontrados para quaisquer dois seres vivos na atualidade. Esses ancestrais são encontrados em abundância no registro fóssil.
Exemplo:
É possível verificar a idade de fósseis por vários meios. Se um único fóssil for encontrado em uma camada geológica com data diferente da data medida por outros meios, como a datação por carbono 14, a teoria da evolução poderia ser questionada.
Se um único objeto com massa de repouso não nula for encontrado com velocidade superior à da luz a teoria da relatividade ficaria questionada.
Redução ao absurdo
Redução ao absurdo (reductio ad absurdum) é uma argumentação válida da lógica formal. Ela assume a seguinte forma: para demonstrar que uma premissa é falsa se supõe provisoriamente que ela seja verdadeira. Em seguida se mostra que essa suposição conduz a conclusão absurda (claramente falsa) ou contraditória com a própria premissa. Se a contradição é derivada de várias premissas se pode concluir que menos uma delas é falsa.
Exemplo:
Na matemática essa técnica é bastante usada. Aristóteles em Analytica Priora apresentou a prova de que a raiz quadrada de 2 é um número irracional (não pode ser escrito como uma fração). Para isso ele supôs que esse número pudesse ser expresso como um racional a/b irredutível e concluiu que tanto a como b devem ser par, o que contraria a afirmação de que a fração é irredutível (não pode ser simplificada). Essa demonstração foi muito importante para o pensamento grego porque se julgava que todo número deveria ser um racional.
A navalha de Occam
A navalha de Occam é um dos princípios básicos norteadores do pensamento lógico, considerado auto-evidente e sem necessidade de demonstração. Ela afirma que entre várias hipóteses formuladas para explicar evidências observadas a mais simples deve ser preferida. A proposta do princípio por William de Occam (1285-1347), monge e filósofo inglês, era um pouco diferente da que usamos hoje e era em princípio usada como argumento teológico.
Exemplo:
Imagine que você chega em casa e encontra tudo desarrumado. Gavetas e portas de armários estão abertas e seu conteúdo espalhado pelo chão. Antes de qualquer perícia alguém sugere três hipóteses para explicar o sucedido.
Um ladrão entrou em sua casa para roubar.
Alienígenas do espaço sideral vieram estudar o comportamento humano.
Almas de pessoas já falecidas vieram cumprir algum plano de vingança pessoal.
Mesmo que se aceite as três hipóteses como possíveis é mais sensato considerar a primeira delas como válida, exceto se provas extraordinárias sugerirem as demais.
Occam não foi o primeiro usar o princípio o princípio da parcimônia. Aristóteles no século 4 a.C. já afirmava coisa semelhante. Em seu livro Análise Posterior: “Podemos supor a superioridade de uma demonstração que é derivada de um número menor de hipóteses.” Mais tarde Ptolomeu afirmou que “consideramos um bom princípio explicar os fenômenos com as hipóteses mais simples possíveis”.
Bibliografia
Almossawi, Ali: An illustrated book of bad arguments, The Experiment, New York, 2013.
Em 1796 Edward Jenner retirou uma secreção de lesões de vacas infectadas com a varíola bovina, uma forma mais branda que a humana, e injetou esse líquido em um garoto de oito anos. Ela havia observado previamente que pessoas que estavam em contato com aquelas vacas não contraiam a varíola que, na época, matava um número grande de pessoas. O experimento (que hoje jamais seria permitido por nenhum conselho de ética, é claro!) foi bem sucedido e o menino não adoeceu. Esta foi a primeira vacina de todos os tempos, recebendo essa denominação do termo latina vaccus (vaca).
Quando microrganismos externos entram em nosso corpo o sistema imunológico desencadeia uma série de respostas na tentativa de identificar e remover os intrusos. Esse processo é contínuo pois estamos sempre em contato com microrganismos que podem ser nocivos. O sistema imunológico consiste em um conjunto complexo de células, tecidos, órgãos e moléculas que cumprem funções específicas em uma resposta coordenada para neutralizar vírus, bactérias, fungos e parasitas. Quando expostos a novas ameaças o corpo tem de partir do zero e construir as defesas necessárias.
Macrófagos são glóbulos brancos que engolem e digerem germes, células mortas ou bastante enfraquecidas. Eles deixam para trás partes dos germes invasores chamados antígenos, que o corpo identifica como perigosos e estimula o ataque de anticorpos. Os linfócitos B são glóbulos brancos defensivos. Eles produzem anticorpos que atacam os antígenos deixados pelos macrófagos. Os linfócitos T são outro tipo de glóbulo branco defensivo. Eles atacam células infectadas do corpo.
O sistema imunológico usa várias ferramentas para combater agentes infeciosos externos. O sangue contém glóbulos vermelhos que transportam oxigênio para tecidos e órgãos, e células brancas ou imunes, que combatem infecções. Esses glóbulos brancos consistem principalmente de macrófagos, linfócitos B e linfócitos T.
Quando o corpo encontra um patógeno pela primeira vez, ele pode levar vários dias para desenvolver as ferramentas de combate à infecção. Frequentemente os sintomas que sentimos em uma infecção são mais provocados pela resposta imune do que pelo agente infeccioso em si. Esses sintomas surgem como tosse, espirros, inflamação e febre que são os sinais de que nossas defesas estão agindo. Essas respostas imunes inatas também acionam uma segunda linha de defesa chamada imunidade adaptativa: células especiais chamadas linfócitos B e T são recrutadas para combater os invasores e registrar informações sobre eles, criando uma memória de como são os invasores e qual a melhor forma de combatê-los.
Apesar de termos esse mecanismo sofisticado de resposta ainda existe risco envolvido. O corpo demora um pouco para desenvolver essas respostas a responder aos patógenos. Há um gasto de energia nesse processo e, se o infectado estiver muito fraco, se for um idoso ou muito jovem, ou se tiver qualquer estado prévio que o debilite, pode ocorrer que o organismo não consiga enfrentar o patógeno, principalmente se ele for muito agressivo. Nesse caso a pessoa infectada pode adoecer gravemente ou até morrer. Quando os antígenos familiares são detectados, os linfócitos B produzem anticorpos para atacá-los.
Como funcionam as vacinas
Vacinas são formas de se introduzir no indivíduo um fator que faça seu corpo reconhecer e atacar um determinado patógeno. Elas ajudam a desenvolver a imunidade simulando uma infecção. Depois depois que o elemento de ataque desaparece o corpo retém linfócitos B e T que representam uma forma de memória, capaz de reconhecer e combater o invasor no futuro. Após a vacinação o organismo leva algumas semanas para produzir linfócitos T e linfócitos B. É possível, portanto, que uma pessoa seja infectada antes ou imediatamente após a vacinação porque a vacina não teve tempo suficiente para fornecer proteção necessária.
Tipos de vacinas
Existem alguns tipos diferentes de vacinas:
Vacinas vivas atenuadas: Existem vacinas que contém o organismo (vírus ou bactéria) que se quer combater vivo mas atenuado ou enfraquecido para que não cause doenças graves em pessoas saudáveis. Elas são eficientes para treinar o sistema imunológico pois causam um ataque parecido com uma infecção natural. Exemplos incluem a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola (MMR) e varicela (varicela).
Apesar de serem eficazes, a produção de vacinas com organismos vivos atenuados é complexa e existe uma chance de que pessoas com sistemas imunológicos mais fragilizados não consigam derrotar o agente infeccioso e contraiam a doença.
Vacinas de patógeno inativado: Estas vacinas são produzidas por um processo de desativação ou morte do agente patogênico e podem combater vírus e bactérias. A vacina inativada contra a poliomielite é um exemplo. As vacinas inativadas produzem respostas imunes diferentes das vacinas vivas e atenuadas. Em alguns casos pode ser necessária a aplicações de várias doses para se atingir a imunidade desejada. Microrganismos inativados não conseguem se desenvolver dentro do corpo infectado e não adoecem a pessoa vacinada. Mesmo assim eles desencadeiam a resposta imune que ensina o sistema imunológico a reconhecer um ataque de forma que, em caso de um ataque real, o corpo já sabe se defender. Esse mesmo processo funciona na natureza, onde muitas doenças só podem infectar uma vez a pessoa, que depois terá sua imunidade reforçada para aquele microrganismo.
Toxóides: Essas vacinas previnem doenças causadas por bactérias que produzem toxinas no organismo. Em sua fabricação as toxinas são enfraquecidas para não causaram dano à pessoa vacinada. As toxinas enfraquecidas são chamadas de toxóides. Quando o sistema imunológico recebe uma vacina contendo um toxóide ele aprende como combater a toxina natural. Exemplos são as vacinas da difteria e do tétano.
Vacinas de subunidades: São vacinas que incluem apenas partes do vírus ou bactérias. Como essas vacinas contêm apenas os antígenos essenciais, aquelas partes do agente infeccioso que despertam a imunidade no corpo afetado, elas têm menos chance de provocar a doença ou efeitos colaterais. São exemplos as vacinas que usam apenas o envelope protéico de um vírus.
Vacinas conjugadas: As vacinas conjugadas combatem um tipo de bactéria que possue antígenos com um revestimento externo de polissacarídeos, que são substâncias semelhantes ao açúcar. Esse revestimento disfarça o antígeno e dificulta seu reconhecimento pelo sistema imunológico imaturo de uma criança. Vacinas conjugadas são eficazes para esse tipo de bactéria porque conectam (ou conjugam) os polissacarídeos a antígenos contra os quais o sistema imunológico responde muito bem. Essa associação ajuda o sistema imunológico imaturo a reagir ao revestimento e a desenvolver uma resposta imune. Um exemplo desse tipo de vacina é a vacina da influenza, tipo B (Hib).
Vacinas de DNA: Está sendo desenvolvida uma nova classe de vacinas que carregam apenas os genes do patógeno que produzem os antígenos específicos reconhecidos pelo corpo para desencadear sua resposta imune. Quando injetados esses genes instruem as células a produzir uma resposta imunológica mais específica e forte. Essa é a variedade mais segura de vacinas porque inclui apenas material genético específico, insuficiente para a reprodução do patógeno nas células infectadas. Entre elas está a vacina de RNA mensageiro.
Vacinas de RNA mensageiro: Vacinas que utilizam RNA mensageiro são uma novidade na prátiva médica, embora já venham sendo estudadas a algum tempo. Com a pandemia de SARS-CoV-2 se apressou a produção dessas vacinas, com bom resultado. Esses imunizantes são desenvolvidos a partir da replicação de sequências de RNA.
RNA mensageiro (RNAm) é um ácido nucleico é formado no núcleo da célula que transmite as informações contidas no código genético (DNA) e as leva para os ribossomos. Ele informa quais os aminoácidos e qual a sequência devem compor as proteínas no citoplasma.
No caso do Coronavírus existe uma proteína em formato de espinhos que a dão ele esse nome (a coroa). Esses espinhos, a proteína Spike, são responsáveis pela fixação do vírus às células do hospedeiro. As vacinas de RNAm forçam as células do sistema imunológico a gerar um pedaço de proteína. Em seguida as instruções do RNAm são destruídas. O sistema imunológico reconhece que essa proteína está fora de seu ambiente e constroi proteções contra esse material. Quando uma infecção verdadeira se apresenta o sistema imunológico já possui defesas construídas contra ela.
Imagem colorida de microscópio eletrônico de transmissão mostra o SARS-CoV-2, causador da COVID-19 – isolado de um paciente nos EUA. Os picos na borda externa das partículas do vírus são as proteínas spike que dão aos coronavírus seu nome, semelhante a uma coroa. Crédito: NIAID-RML.
É importante observar que a vacina NÃO contém vírus vivo e não pode causar a COVID-19. Embora se tenha verificado que pessoas vacinadas ainda podem adoecer com a COVID, também se sabe que a gravidade da doença se torna bem menor após sua administração.
Vacinas são uma grande conquista e continuam a fornecer meios eficazes e seguros para combater doenças que, sem elas, continuariam a matar milhões de pessoas no mundo todo ano.
Vacinas que requerem mais de uma dose
Existem algumas razões pelas quais algumas vacinas precisam ser aplicadas mais de uma vez para atingirem eficácia completa. Algumas vacinas (principalmente as inativadas) não produzem imunidade completa com uma única dose. A vacina contra a bactéria Hib, que causa meningite, é um bom exemplo.
Em outras a imunidade começa a diminuir após algum tempo, quando se torna necessária uma dose de reforço, o que pode ocorrer vários anos após a administração da aplicação inicial. É o caso da vacina DTaP que protege contra difteria, tétano e coqueluche: crianças recebem 4 doses iniciais sendo necessária uma dose de reforço aos 4 anos até os 6 anos. Outro reforço é necessário aos 11 ou 12 anos de idade. Principalmente para as vacinas vivas mais de uma dose é necessária para o completo desenvolvimento de melhor resposta imune.
No caso da vacinas contra a gripe, adultos e crianças com mais de 6 meses devem tomar uma dose a cada ano. Isso acontece porque o vírus passa por mutações aceleradas, fazendo com que o sistema imunológico não mais o reconheça. As principais cepas em circulação, mas não todas, são usadas nesse desenvolvimento.
Existem muitas vacinas que usam apenas algumas cepas de vírus quando na natureza uma variedade grande deles é encontrada. É o caso da vacina contra o HPV e a própria gripe. Em princípio se estima que o combate àquelas cepas já causa benefício suficiente para quem toma a vacina. Há muito debate sobre o tema e uma grande esforço para o desenvolvimento de novas formas de vacinação. É considerada inclusive a possibilidade de se aplicar vírus bacteriófagos para combater bactérias que estão se tornando resistentes aos antibióticos.
Conclusão
Muitas pessoas acreditam que só serão imunizadas adquirindo a doença, ou que a imunização natural é melhor do que a fornecida pelas vacinas. Deve-se lembrar que muitas infecções naturais podem causar complicações graves e levar a morte, além de se espalharem de modo perigoso para outras pessoa. Isso acontece até em doenças que as pessoas consideram brandas e não perigosas, como a gripe e a varicela. Mesmos nesses casos não se pode prever quais dos pacientes terão complicações que os levem à hospitalização ou à morte.
Como qualquer medicamento as vacinas podem causar efeitos colaterais. Os mais comuns são leves mas não é impossível que ocorram efeitos graves. O estudo desse tema é complexo. Para que uma vacina seja aprovada pelos orgãos fiscalizadores de saúde é necessário que o dano porventura causado por ela seja muito inferior ao benefício que ela traz. Existe ainda a questão do controle coletivo de uma doença. Muitas pessoas não podem ser vacinadas, por fragilidade de seu sistema imunológico ou por terem alergia a algum componente utilizado. Para que toda a comunidade fique livre de uma infecção é necessário que um número crítico de pessoas tenha sido imunizado.
Nos últimos tempos tem surgido movimentos antivacinas, formados por pessoas que preferem acreditar em um influenciador digital ou em algum site explorador de credulidade, e não em seu médico ou nos cientistas. Existem aqueles que negam que doenças possam ser causadas por organismos minúsculos que eles não podem ver. Essa atitude tem causado problemas de saúde pública em todo o mundo, inclusive com o retorno de doenças que estavam quase erradicadas.
Essa tendência é parte de um movimento muito mais grave que agrupa negadores da ciência em várias áreas. Entre esses estão aqueles que defendem com ferveor que vacinas causam autismo, uma correlação nunca encontrada em pesquisas científicas. A melhor vacina para esse fenômeno é o conhecimento.
Em dezembro de 2019 começaram a aparecer nos hospitais de Wuhan, China, os primeiros casos suspeitos de infecção por um novo tipo de vírus. As primeiras pessoas infectadas haviam circulado por um grande mercado especializado em frutos do mar e que também vendia animais vivos, sugerindo que a nova infecção fosse um tipo de coronavírus. O mercado foi rapidamente fechado e as pessoas com os sintomas foram isoladas. Um teste para o diagnóstico específico detectou a presença do novo vírus, então denominado SARS-CoV-2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2, também chamado de HCoV-19). A doença por ele provocada foi chamada de COVID-19 e 41 pessoas foram diagnosticadas com o vírus, entre elas visitantes e trabalhadores do mercado.
Em 9 de janeiro ocorreu a primeira morte decorrente da epidemia. A Comissão Nacional de Saúde da China confirmou, em 20 de janeiro, que o novo vírus poderia ser transmitido entre seres humanos, quando médicos e enfermeiro começaram a adoecer. Um aumento acentuado de casos ocorreu na China, incluindo pessoas em outras cidades. A preocupação aumentou com a aproximação do Ano Novo chinês, que reúne todos os anos milhares de pessoas em todo o país. Em 23 de janeiro Wuhan foi colocada em quarentena, seguida de cidades em sua vizinhança. Em 24 de janeiro o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado fora da China, na França. A confirmação de casos ocorridos em um prédio de Wuhan levou os pesquisadores suspeitarem de que o vírus possa ter se espalhado pela tubulação de água. O prédio foi evacuado.
Logo no início da epidemia cientistas chineses sequenciaram o genoma do SARS-CoV-2 e disponibilizaram os dados para pesquisadores de todo o mundo. Enquanto isso o CDC (Center for Disease Control) nos EUA verificou que pessoas contaminadas assintomáticas poderiam infectar outras pessoas, o que torna o controle da difusão do vírus mais difícil. Em 11 de março a OMS decretou o estado de pandemia, o que significa que todo os países do planeta estão sujeitos à infecção. Até 18 de abril de 2020 foram confirmados mais de 2 milhões de infectados, com mais de 155 mil mortes em todo o mundo. Esses números devem ser considerados inferiores aos números reais devido à subnotificação, que são casos de infectados e mortos não confirmados ou não registrados oficialmente. Comparado com o surto de SARS (2002-2003), em apenas dois meses o surto da Covid-19 causou um número maior de infecções. O novo vírus parece ter uma taxa de mortalidade bem menor, de 4% comparados com SARS (10%). Mas essa taxa varia muito entre faixas etárias, podendo chegar a ser acima de 15% entre os mais idosos.
A resposta global está sendo rápida para impedir a propagação do vírus. A maior parte dos países adotou medidas fortes para conter o espalhamento da doença. Entre elas está o confinamento das pessoas, a restrição da circulação daqueles que podem ficar em casa. O objetivo do confinamento é o de impedir que muitas pessoas adoeçam simultaneamente, causando colapso do sistema de saúde. Naturalmente o confinamento também traz grandes problemas tais como danos severos à economia dos países. Uma grande recessão é prevista para esse ano de 2020.
Não se conhece tudo sobre o vírus. Existem muitos tipos de coronavírus que usam morcegos e outros animais como hospedeiros. A maior parte deles não consegue transpor a barreira entre espécies para infectar outros animais. Provavelmente uma mutação do vírus permitiu esse espalhamento e dados indicam que a infecção se deu por meio de animais selvagens vendidos no mercado de Wuhan. A doença ataca as vias respiratórias inferiores com sintomas de febre, tosse e dificuldade em respirar. Pneumonia pode surgir em 20% dos casos, com risco para a vida. Acredita-se o vírus se espalhe pelas secreções respiratórias, por exemplo com a tosse ou espirro de um infectado a menos de 2 metros.
O vírus SARS-CoV-2 é um parente próximo do vírus que causou a epidemia em 2002. Ele é o sétimo coronavírus a infectar humanos. Como um vírus novo, significando que sua sequência genética foi elaborada a pouco tempo, não existem medicamentos nem vacinas para combatê-lo. Além disso nosso sistema imunológico não o reconhece e não tem as instruções necessárias para impedir sua proliferação. Tem havido bom sucesso na recuperação dos afetados — o que significa que médicos conseguiram controlar os sintomas da covid-19 por tempo suficiente até o próprio corpo consiga eliminá-lo. Ainda não se sabe se podem ocorrer reinfecções, i.e., se pessoas curadas podem contrair novamente a COVID-19. Existem indicações de que os anticorpos formados durante a primeira infecção podem não durar por muito tempo.
Foram analisadas as agulhas do vírus, projetadas para fora do envelope, que ele usa para se grudar e penetrar nas paredes externas das células humanas e animais. Todas as evidências apontam para uma evolução natural desse vírus, hipótese apoiada pelos dados do genoma SARS-CoV-2 e sua estrutura molecular geral. Esse vírus se assemelha a vírus da mesma família encontrados em morcegos e pangolins.
De onde vieram os SARS-CoV-2s?
Com base na análise do sequenciamento genético os pesquisadores concluíram que as origens mais prováveis para o SARS-CoV-2 estão em um dos cenários seguintes:
O vírus evoluiu por meio da seleção natural em um hospedeiro não humano e depois saltou para os humanos. Esse mesmo mecanismo deu origem a surtos anteriores de coronavírus quando humanos contraíram o vírus após exposição direta a gatos selvagens (SARS) e camelos (MERS). Acredita-se que os morcegos são o reservatório mais provável para o SARS-CoV-2, pois ele se parece muito com o coronavírus deste animal. Como não há casos documentados de transmissão direta de morcego para humanos isso sugere a existência de um hospedeiro intermediário (como os gatos e camelos, nos casos passados). Nesse cenário o vírus teria desenvolvido os ganchos de ligação com humanos antes da transferência, o que explicaria a rápida difusão assim que os humanos foram infectados.
Como muitos casos do COVID-19 foram associados com o mercado Huanan em Wuhan é bastante provável que o animal transmissor estivesse à venda neste local. O vírus corona no morcego rhinolophus affinis é 96% (aproximadamente) idêntico ao SARS-CoV-2. Mas suas protuberâncias (as agulhas responsáveis pela fixação do vírus na célula hospedeira) são diferentes, uma indicação de que esse vírus não se afixaria à células humanas. Já o pangolim da Malásia, Manis javanica, que é comercializado ilegalmente na China, é portador de um corona similar ao vírus que afeta os humanos. Para os cientistas essa é uma indicação forte de que o SARS-CoV-2 sofreu mutações dentro de animais, saltando a barreira entre espécies até atingir as pessoas que circulavam no mercado de Wuhan.
Apesar de que nenhum vírus em animais (nem do morcego nem do pangolim) foi encontrado com as exatas características de um ancestral direto do SARS-CoV-2, as espécies de vírus em animais não são totalmente conhecidas. O hospedeiro ancestral teria que ser abundante na região para que as mutações naturais progredissem ao ponto de gerar um vírus que pode infectar humanos.
Outro cenário proposto sugere que uma versão não patogênica do vírus saltou de um hospedeiro animal para humanos e depois evoluiu para seu estado patogênico. Por exemplo, um coronavírus de pangolins, com sua estrutura semelhante à do SARS-CoV-2, poderia ter sido transmitido a um ser humano, diretamente ou através de um hospedeiro intermediário, como gatos selvagens ou furões. Nesse caso a habilidade de se fixar e penetrar a célula humana teria evoluído dentro de um hospedeiro humano, possivelmente através de circulação não detectada na população.
Todos os genomas já sequenciados de SARS-CoV-2 possuem características comuns, o que leva à conclusão de que possuem um ancestral comum. Estimativas indicam que o ancestral mais recente do SARS-CoV-2 deve ter infectado seu hospedeiro em algum momento entre o final de novembro e início de dezembro de 2019, o que é consistente com a estimativa do surgimento do primeiro infectado. Este cenário presume que houve um período de circulação não detectada do vírus em humanos.
Muitos laboratórios em todo o mundo estão desenvolvendo pesquisas com coronavírus do tipo SARS-CoV, fazendo culturas em células e simulações. Em várias circunstâncias foram documentados o escape de SARS-CoV, apesar do alto nível de segurança desses laboratórios. Torna-se, portanto, indispensável pesquisar a possibilidade de que esse vírus tenha escapado de algum destes laboratórios. No entanto a semelhança entre coronavírus de pangolins com os de humanos, possuindo células e mecanismos de invasão celular análogos, tornam essa hipótese menos provável.
Com o que se sabe do vírus hoje é difícil decidir entre essas hipóteses. Se verificado que SARS-CoV-2 infecta humanos já em sua forma patogênica podemos supor que futuros surtos são possíveis, pois a cepa do vírus original ainda pode estar circulando em animais. A segunda possibilidade torna mais improvável um novo surto semelhante.
Apesar da insistente acusação de que essa cepa de vírus possa ter sido desenvolvida em laboratório com fins políticos e econômicos a análise de vários grupos de pesquisa indicam que ela não foi artificialmente manipulada. Esses estudos mostram que o novo vírus não foi desenvolvido a partir de nenhuma das variantes conhecidas de corona vírus, o que seria mais provável no caso de uma manipulação genética intencional.
A maioria das pessoas infectadas com o vírus desenvolve doença respiratória leve a moderada e se recupera sem a necessidade de tratamentos especiais. Os idosos e pessoas com condições prévias, como doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias crônicas e câncer, são mais vulneráveis e suscetíveis de desenvolverem doenças graves.
É provável que em um futuro próximo a maioria das pessoas no planeta tenham sido expostas ao vírus. No momento é importante garantir que o número de doentes com necessidade de intervenção médica não seja superior à capacidade de atendimento em hospitais e UTIs. Por isso é importante desacelerar a transmissão. O isolamento social, com pessoas evitando a circulação tanto quanto possível, é uma forma de retardar o contágio. Outra forma seria realizar o teste em muitas pessoas, isolando apenas os contaminados. A curva na animação mostra que, ainda que um número idêntico de pessoas seja contaminado, se esse processo for mais lento existirá, a cada momento menos pacientes a serem tratados. A curva inicial tem um pico alto ocorrendo em menor tempo, representando o número de doentes se nenhuma iniciativa de desaceleração for feita. A curva final indica o espalhamento no tempo que deve ocorrer se medidas apropriadas forem adotadas. A reta tracejada significa a capacidade médica de atendimento, que pode ser incrementada se houver tempo suficiente para isso.Eventualmente teremos maiores recursos para tratamento dos doentes, ou uma vacina que impeça a infecção. O retorno às atividades normais, após a fase de distanciamento social, deverá ser feito com cuidado, obedecendo critérios científicos. Veja, por exemplo, o artigo em Jacobs Consultoria, Como alguns países europeus retomarão suas atividades escolares.
O vírus se espalha principalmente por meio de gotículas de saliva ou secreção nasal quando uma pessoa infectada tosse ou espirra. Por isso é importante que as pessoas mantenham distância entre si e impeçam o espalhamento de gotícula durante a tosse ou espirro. O período de incubação vai de 1 a 4 dias. Durante esse período a pessoa pode estar contaminada mas não apresentará sintomas da doença. No momento (abril de 2020) não existem vacinas ou tratamentos específicos para o COVID-19 embora muitos ensaios clínicos estejam em andamento. A Organização Mundial da Saúde, a OMS ou WHO (em inglês) tem sido a melhor fonte de informação sobre o vírus e a pandemia por ele causada.
Origem dos Vírus
Essa seção trata da origem evolucionária de todos os vírus, e não apenas do novo coranavírus, tratada acima. Apesar de não existirem vírus fossilizados é possível desvendar a histórias de alguns vírus devido ao fato de que os genes de muitos vírus, como os da herpes e da mononucleose (causado pelo vírus de Epistein-Barr), compartilham propriedades com os genes das células que infectam . Isso sugere que eles se originaram como grandes blocos de DNA celular que mais tarde se tornaram independentes. Também pode ter ocorrido que esses vírus surgiram bem no início do processo evolutivo e que seus genes se incorporaram depois ao genoma das células. Alguns vírus que infectam humanos possuem estruturas parecidas com as de vírus de bactérias, uma indicação de que têm uma origem comum. Por outro lado a maioria dos vírus modernos têm em seu genoma segmentos provenientes de diferentes origens, de plantas, animais e outros vírus. Isso representa um problema adicional busca por suas origens.
Considerando que vírus como o do Ebola e Marburg (causador de uma febre hemorrágica) são relacionados com aqueles que causam sarampo e raiva, e são encontrados em poucas espécies, surgiu a sugestão de que todos eles são relativamente novos, em termos evolutivos. É possível que tenham se originado em insetos há milhões de anos e, em algum momento de sua evolução, conseguiram saltar a barreira entre espécies.
Vírus não são um aglomerado fortuito de genes e seu DNA (ou RNA) representa um arquivo genético que está evoluindo no planeta há bilhões de anos. A pesquisa atual considera a hipótese de que eles tenham surgido antes das células mais complexas ou de que o DNA tenha surgido primeiro nos vírus e depois passado para seus hospedeiros por meio das infecções e trocas genéticas.
O origem dos vírus continua um enigma. Sabemos que eles são muito antigos. Vírus muito parecidos infectam organismos nos três domínios da vida (Archaea, Bactéria e Eukarya), o que sugere que eles já existiam antes que esses domínios se separassem de seu ancestral comum, chamado de LUCA, o último ancestral celular universal.
Como eles não formam fósseis são necessárias técnicas moleculares para investigar seu surgimento. Além disso, como o material genético viral ocasionalmente se integra ao genoma dos organismos infectados, que são passados para seus descendentes por muitas gerações, o estudo da genética dos próprios hospedeiros podem revelar coisas interessantes sobre os vírus.
Existem três hipóteses principais que visam explicar as origens dos vírus:
Hipótese regressiva: No passado remoto vírus podem ter sido células pequenas que parasitavam células maiores. Com o passar do tempo a informação genética celular não necessária para a realização desse parasitismo foi perdida, deixando apenas o núcleo de RNA ou DNA e os envelopes. Como apoio a essa hipótese encontramos bactérias como a rickettsia e clamídia que só podem se reproduzir dentro de células hospedeiras, da mesma forma que os vírus.
Hipótese de origem celular: Vírus podem ter surgido a partir de pedaços de DNA ou RNA que se destacaram do genoma de um organismo mais complexo. Existem nos organismos pedaços de DNA que vagam livres entre as células (os plasmídeos), assim como moléculas de DNA internos à célula mas que se replicam e se movem para posições diferentes daquelas em que estavam (os transposons). Transposons já foram chamados de genes saltadores sendo elementos genéticos móveis que podem ter dado origem de alguns vírus.
Hipótese de co-evolução: Essa hipótese propõe que os vírus podem ter evoluído a partir de moléculas complexas de proteínas e ácidos nucléicos simultaneamente com as primeiras células. Eles poderiam ser dependentes da vida celular desde a formação, há bilhões de anos. Existem os viróides, moléculas de RNA soltas que não possuem uma camada protéica e por isso não são considerados vírus, mesmo possuindo características comuns a vários vírus. Os viróides são patógenos importantes das plantas e não codificam proteínas, mas interagem com a célula hospedeira usando seu mecanismo de replicação. O vírus da hepatite delta humana tem genoma de RNA semelhante aos viróides, mas possui uma camada protéica derivada de outro vírus (da hepatite B) e é incapaz de se reproduzir. Ele é considerado um vírus defeituoso que pode se replicar dentro de uma célula mas necessita da presença do vírus da hepatite B para receber dele um revestimento protéico sem o qual ele não poderia se transmitir para novas células. De maneira semelhante existem os chamados vírus satélites como o virófago sputnik que depende de um mimivírus. Esse tipo de vírus pode ser um intermediário evolutivo entre viróides e vírus.
Nenhuma dessas hipóteses é totalmente satisfatória para explicar o que se sabe sobre os vírus. É bem aceito pela comunidade científica que eles são seres muito antigos, provavelmente anterior ao LUCA, o ponto de bifurcação entre os três domínios. Já se sugeriu que os vírus conhecidos não são todos derivados de um único ancestral comum. Se isso for correto houve várias ocorrências do passado, por um ou mais mecanismos, de geração de vírus.
A evolução do vírus é um campo fascinante de pesquisa que continua sendo um tópico importante, mas até que seja resolvido, a questão de como os vírus se encaixam na árvore da vida permanece sem resposta.
Bibliografia:
Crawford, Dorothy: Viruses, A Very Short Introduction, Oxford University Press, New York, 2011.
Zimmer, Carl: A planet of viruses, The University of Chicago Press, Chicago, 2011.
ScienceDaily: COVID-19 Coronavirus epidemic has a natural origin. Disponível em <https://www.sciencedaily.com/releases/2020/03/200317175442.htm>. Acesso em 05 abr 2020.
Já sabemos que, além dos vírus, bactérias representam um enorme desafio à saúde humana. Muitos problemas causados por elas foram resolvidos pela descoberta dos antibióticos. Um exemplo é a tuberculose que matou tantas pessoas no passado e hoje pode ser resolvida com um tratamento com antibióticos.
Em 1917 a médico canadense Felix d’Herelle, tratando de soldados infectados por bactérias na segunda guerra mundial, fez uma descoberta importante. Ele coletou as fezes de soldados com disenteria, causada pela bactéria Shigella, e passou esse material por filtros finos capazes de impedir a passagem da bactéria causadora. Depois ele desenvolveu culturas de amostras de Shigella e misturou nelas o primeiro líquido filtrado. A bactéria se desenvolveu deixando, no entanto, áreas limpas onde a bactéria estava morta. Herelle concluiu que algum elemento nessas manchas, provavelmente contendo vírus (pois passaram por poros diminutos) , havia dizimado as bactérias. Ele os denominou bacteriófagos ( comedores de bactéria). Mais tarde, com o uso de microscópios eletrônicos, essa descrição foi confirmada. Na visão ampliada foram vistos os fagos formados por pequenas caixas dotadas de pernas, que se aderiam às bactérias e as matavam. Muitas outras espécies de fagos foram descobertas e se entendeu que eles formam uma classe de vírus especializados no ataque à bactérias.
Herelle usou esses fagos no tratamento de soldados. Para se certificar de que o procedimento era seguro ele ingeriu uma porção desses vírus sem adoecer. Primeiro ele tratou pacientes com disenteria e cólera. Depois aplicou o mesmo remédio a doentes de peste bubônica, curando todos eles. Apesar desse sucesso alguns médicos se sentiam desconfortáveis com o uso de vírus vivos como remédio. Eventualmente o desenvolvimento dos antibióticos, que são produtos químicos e proteínas produzidos a partir de fungos e bactérias, tornou obsoleta essa abordagem.
O estudo dos fagos não terminou por aí e existe uma grande chance de que eles ainda se tornem necessários na medicina. Em 1963, na Georgia, então parte da União Soviética, foi realizada um grande teste clínico usando 30.769 crianças. Metade das crianças tomaram um comprimido com fago da Shigella, a outro metade tomou um placebo (pílulas contendo apenas açúcar, no caso). As crianças foram observadas por 109 dias e se constatou que aquelas que ingeriram o fago tiveram 3,8 vezes menos disenteria. Os resultados permaneceram secretos por um tempo devido ao isolamento dos soviéticos com o mundo ocidental. Com a queda da União Soviética, em 1989, esses relatórios começaram a circular e um grupo de pesquisadores no ocidente iniciaram suas pesquisas com fagos, apesar da relutância de muitos em usar vírus ativos como remédios.
Aqueles que são contra o uso desses vírus, além do receio de que eles possam sofrer mutações adversas em nosso organismo, argumentam que cada espécie de fago ataca apenas um tipo de bactéria enquanto os antibióticos matam uma variedade delas. Além disso bactérias sofrem mutações e evoluem para se tornar resistentes aos fagos, o que pode gerar organismos difíceis de serem combatidos. Os que são a favor nos lembram que temos em nossos corpos uma grande quantidade de bactérias (em torno de 100 trilhões) que certamente são alvos de fagos. Além disso qualquer produto que consumimos na alimentação estão repletos de fagos. Eles defendem que a aplicação de fagos de espécies variadas poderia ser usada para aumentar o espectro de eficácia. E, finalmente, que se poderia evoluir fagos artificialmente para dar combate às bactérias resistentes.
Esse é o motivo para a firme controle do uso de antibióticos. Tratamentos incompletos, ou medicamentos indevidamente escolhidos, promovem a proliferação de bactérias resistentes. Antibióticos no organismo ou atirados ao meio ambiente são responsáveis pela proliferação de bactérias que evoluíram para suportar os antibióticos.
Enquanto esse debate se desenrola a prática médica se depara com um problema emergente. Bactérias tratadas com antibióticos evoluem e adquirem resistência. Existem motivos para acreditar que uma bactéria pode se desenvolver ao ponto de não ser suscetível a nenhum dos antibióticos existentes, se tornando uma superbactéria. Nesse caso pode se tornar estritamente necessário lançar mão do uso de vírus para combater bactérias resistentes.
Retrovírus endógenos
No genoma humano, hoje completamente mapeado, existem milhares de segmentos de genes importados de vírus. Considerando que as trocas genéticas entre vírus e hospedeiro, e vice versa, são comuns em microrganismos e em mamíferos, e são parte integrante da história de nossa formação como espécie e indivíduo, cabe perguntar quanto de nosso DNA foi ali colocado por vírus e o que essa parte representa em nossa formação.
Pesquisando a causa de câncer pesquisadores identificaram o vírus da leucose aviária como um dos grandes causadores da doença. Esse vírus pertence à classe dos retrovírus. Em certas condições a célula é forçada a replicar o vírus completo, inclusive com sua capa de proteína. Em seguida esse vírus pode escapar da célula e partir para novas infecções. Nessa operação, algumas vezes, os genes do hospedeiro que estavam desabilitados são reativados por influência do vírus. Esses genes podem causar câncer .
Foi observado que galinhas saudáveis podem portar o vírus e, ainda assim, gerar descendentes sadios. A pesquisa mostrou que os segmentos genéticos do retrovírus estavam incorporados e inertes dentro do DNA das aves. Sob o efeito de influenciadores externos (como produtos químicos ou radiação) esses segmentos podem ser arrancados de dentro das células, provocando a doença nos animais testados. Aves selvagens consideradas ancestrais das galinhas domésticas também têm esses segmentos virais embutidos em seu DNA. Denominou-se então esse tipo de vírus de retrovírus endógeno (onde endógeno significa vindo de dentro). Muitas outras espécies, além das galinhas, carregam esse mesmo vírus.
Alguns segmentos de retrovírus no DNA humano se parecem com segmentos encontrados em macacos. Outros se assemelham aos de outros animais. Hoje se estima que 8% do DNA humano é formado por fragmentos de retrovírus, a maioria deles desativados. Mas também existem aqueles que estão ativos e são úteis para a nossa existência. Por exemplo, quando um feto se desenvolve no ventre da mãe parte de seu material genético é usado na formação da placenta, responsável por levar alimentação da mãe até o bebê. Um retrovírus endógeno, há muito incorporado ao DNA humano, instrui a formação de uma proteína que permite a fixação das células da placenta com o organismo da mãe.
Vírus da Imunodeficiência Humana, HIV (Human Immunodeficiency Virus)
No final de 1980 alguns homens jovens, sem histórico de outras doenças, foram atendidos em hospitais de Los Angeles com uma forma rara de pneumonia causada pelo pneumocystis pneumonia, um fungo bastante comum que o organismos saudáveis conseguem combater sem maiores problemas. Todos eles foram diagnosticados com a incidência de um vírus que ataca as células de defesa do organismo, então denominado HIV. Descobriu-se que esse vírus estava agindo por mais de 50 anos e, até o final da década de 1980, já havia infectado 60 milhões de pessoas, matando quase a metade deles.
O HIV se transmite por meio de fluidos corporais , em particular pelo sangue e sémen. As pessoas se contaminam fazendo sexo sem proteção, compartilhando seringas entre usuários de drogas, através de transfusões com sangue contaminado ou diretamente entre gestante e bebê. Como outros vírus, o HIV insere seu material genético em células hospedeiras, se multiplicam dentro delas e depois escapam para provocar novas infecções. Dentro do corpo infectado o HIV se multiplica rapidamente e é logo combatido pelo sistema imunológico. Eventualmente ele derrota as células de imunização e o paciente fica desprovido de suas defesas naturais, ficando à mercê das chamadas doenças oportunistas que podem levá-lo à morte.
A pesquisa mostrou que o HIV é um tipo de retrovírus, da classe dos lentivírus que infectam também outros mamíferos. Dois tipos desses lentivírus foram encontradas em humanos, ambos descendentes de vírus que antes só afligiam macacos. Uma delas descende de vírus de chimpanzé, outra do cercocebus atys, um macaco encontrado nas florestas do Senegal e Gana. Ambas as espécies são mantidas em cativeiro e usadas como alimento.
No combate ao HIV foram necessárias campanhas educativas para uma mudança de comportamento, principalmente com o uso de preservativos na prática sexual. Como o vírus evolui rapidamente adquirindo resistência às substâncias usadas para combatê-lo, várias drogas antivirais devem ser usadas em conjunto, um coquetel de medicamentos que protege as células de defesa do organismo. Apesar de eficientes estas drogas podem estimular o surgimento de cepas resistentes, forçando a busca por novos medicamentos. Quando um vírus resistente às drogas disponíveis é passado adiante a nova infecção é mais difícil de ser controlada. Uma vacina não foi ainda desenvolvida e, mesmo que exista, ela pode não ser a solução final para o problema. O HIV se multiplica de forma errática produzindo e espalhando muitas mutações. A vacina para uma cepa pode não cobrir variantes que certamente existirão.
O vírus do Nilo Ocidental
Pouco antes do início do ano 2000 foram observadas as mortes de pássaros no zoológico de Bronx, Nova Iorque. O exame dos cuidadores indicou que eles sofreram de derrames internos no cérebro devido a uma encefalite provocada por um vírus endêmico na África, em particular nas nascentes do Nilo. O estudo mostrou também que pessoas estavam morrendo da mesma forma, devido ao mesmo patógeno. Em todas as Américas existe um grande número de vírus, alguns antigos, trazidos pelos primeiros colonizadores que cruzaram o Estreito de Bering há mais de 15 mil anos, outros modernos que migraram para o continente com a colonização europeia ou transportados em navios e aviões na era moderna.
O vírus do Nilo é do género Flavivírus, que também inclui os vírus zica, da dengue e da febre amarela. Ele é geralmente transmitido pela picada de mosquitos do género Culex e é conhecido há algum tempo, tendo adoecido pessoas em Uganda, Ásia e Austrália. Também se sabia que ele não depende de humanos para sua preservação, sendo capaz de infectar pássaros, o seu reservatório natural. Quando infecta um pássaro o vírus se multiplica rapidamente danificando diversos de seus tecidos. Mas apesar de estar em grande número no corpo da ave ele não consegue escapar dela para alcançar outras presas. Para isso usam um mosquito como vetor. Mosquitos picam as aves e se infectam. Depois picam um humano (ou outro pássaro) transmitindo para ele o vírus. Apesar da dificuldade adicional de ter que sobreviver em organismos muito diferentes, com essa estratégia o vírus aumenta muito sua capacidade de atingir novos hospedeiros.
Não se conhece exatamente como o vírus chegou na Europa e nas Américas. Ele pode ter cruzado de um continente para outro em um pássaro ou mosquito infectado. Como a variante encontrada nos EUA mostrou ter parentesco com o vírus detectado em Israel é também possível que ele tenha sido trazido de lá, provavelmente junto com o tráfico de animais domésticos. Enquanto na África ele se espalhava em meio a uma população que já possuía anticorpos, nos novos domínios ele provocou uma epidemia de grandes proporções. Nos EUA se registrou 28.961 casos, com 1.131 mortes.
A doença causada pelo vírus do Nilo também obedece a uma sazonalidade, sendo mais frequente no verão, em locais úmidos e chuvosos, quando o mosquito encontra condições ideais para sua proliferação. Infelizmente, com o aumento das temperaturas médias causado pelo aquecimento global também é esperado um crescimento no número de infecções por essa doença.
Existe hoje um esforço para identificar novas espécies de vírus com potencial para afetar a saúde humana antes que eles o façam. Muitas populações se alimentam de caça e de animais exóticos que contem vírus que podem adquirir a capacidade de saltar a barreira entre espécies, como já ocorreu tantas vezes. Com o avanço do entendimento sobre o funcionamento de vírus estas novas infecções podem ser mais rapidamente identificadas.
Em 2002 algumas pessoas na China começaram a morrer de uma doença respiratória desconhecida. O problema não teve muita repercussão mundial até que um empresário americano, retornando da China, adoeceu em pleno voo. O voo foi interrompido em Singapura onde o homem morreu. Em pouco tempo pessoas estavam adoecendo em vários países. Sem saber o que causava a doença os médicos deram a ela o nome de Síndrome Respiratória Aguda, SARS.
Em Hong Kong os pesquisadores mapearam os genes de um vírus encontrado nos pacientes, um membro do grupo dos coronavírus. Esse vírus teve sua origem em morcegos, realizando um salto entre espécies para infectar um gato selvagem que, por sua vez, era usado como comida entre os chineses. Com isso foi possível identificar e isolar as pessoas contaminadas, além da proibição da venda dos animais contaminadores, evitando uma crise de maiores proporções. Mesmo assim o vírus da SARS se espalhou pelo mundo causando 8 mil casos de infectados e 900 mortes.
É esperado que novos vírus saltem a barreira entre espécies e contaminem humanos, possivelmente gerando epidemias sérias. Na medida em que as florestas estão sendo devastadas novas espécies animais, antes afastadas de nós, estão cada vez mais próximas. Alguns desses vírus são muito agressivos, como o Ebola. Ele se transmite com facilidade de pessoa para pessoa gerando hemorragias que fazem o doente sangrar por todos os orifícios. No entanto, sendo tão agressivo, o ebola mata seu hospedeiro antes de conseguir se espalhar. Um surto de ebola mata um número relativamente pequeno de pessoas até ser contido.
Varíola
Programas de vacinação devem alcançar um número suficiente de pessoas para serem afetivos. Existem aqueles que não podem tomar vacinas e ficam protegidos pelos que fora imunizados naquele mesmo ambiente. Um programa pode erradicar um determinado tipo de vírus em um país mas não em outro, fazendo com que o primeiro possa ser reinfectado.
O vírus da varíola afligiu a humanidade durante séculos, causando sofrimento e morte. O infectado tem febres e dores fortes, manchas vermelhas dentro da boca que depois se espalham pelo corpo, doloridas e cheias de pus. 30% dos infectados morrem e os demais podem ficar com marcas profundas por todo o corpo. Quando os europeus chegaram no Novo Mundo, além das armas convencionais, eles levaram a varíola para uma população que nunca havia sida exposta e por isso não tinha qualquer proteção. Uma grande parte da população, especialmente da América Central, morreu dessa infecção.
Mesmo na China Antiga já havia a prática de se espalhar resíduos das feridas causadas por varíola em crianças saudáveis, numa tentativa de imunizá-las. Esse conhecimento foi propagado por diversas partes do mundo. No final do século 16 um médico inglês, Edward Jenner, observou que mulheres que tiravam leite de vacas não adoeciam de varíola. Ocorre, como sabemos hoje, que as vacas são acometidas pela varíola bovina, uma forma mais branda e parente próxima da varíola humana. Jenner descobriu que podia imunizar uma pessoa inoculando nela um soro produzido com material retirado de lesões de vacas doentes. Ele chamou de vaccine este líquido, um nome derivado do latim vacca.
Um esforço mundial se deu no início do século 20 para combater a varíola em todos os países. Médicos da Organização Mundial da Saúde, ao identificar surtos, colocaram em quarentena as pessoas infectadas e vacinaram todos na vizinhança. A última ocorrência de varíola se deu na Etiópia, em 1977, quando a OMS declarou extinto o vírus. Para efeito de estudo amostras do vírus foram guardadas em dois ambientes seguros na extinta União Soviética e no CDC americano, com o compromisso mútuo de que essas amostras seriam destruídas mais tarde. Com a tensão política entre Rússia e EUA e o medo do uso do vírus na construção de armas biológicas elas nunca foram destruídas. Existe uma controvérsia sobre o que fazer com essas amostras, uma discussão que está ficando irrelevante uma vez que o genoma da varíola é totalmente mapeado e o vírus pode ser reconstruído em laboratório usando as técnicas modernas de manipulação genética.
Mimivírus
Em 1992 Timothy Rowbotham, um microbiólogo inglês, procurando a causa de um surto de pneumonia, coletou uma amostra de água no equipamento de resfriamento de um hospital na cidade de Bradford. A análise microscópica da água revelou a existência de amebas e protozoários unicelulares do tamanho de células humanas. Dentro de uma ameba ele encontrou um objeto esférico grande (quase do tamanho da bactéria) que ele batizou de Bradfordcoccus. Estudos posteriores mostraram que, embora fosse grande demais para ser um vírus, o Bradfordcoccus mais se assemelhava a um deles. Também foi observado que ele invadia bactérias e as forçava a reproduzir seus genes, sendo portanto reconhecido como um vírus. Os pesquisadores renomearam o objeto para mimivírus (uma abreviação do inglês mimicking virus), uma alusão a sua capacidade para imitar bactérias.
A análise da genética do mimivírus revelou que ele tem genes de vírus, embora em número grande quando comparado a outros vírus (1262 genes, mais do que algumas bactérias). A maior parte desses genes são de origem e funcionamento desconhecidos. Uma vez revelada a existência do mimivírus uma busca foi iniciada para encontrá-lo em outros lugares. Ele foi então detectado no pulmão de pacientes com pneumonia embora não se saiba ainda se eles causam essa doença ou apenas se aproveitam do estado fragilizado do paciente. Eles estão nos oceanos infestando algas e, talvez, esponjas e corais. A complexidade do mimivírus e o número de seus genes levanta mais uma vez o debate sobre se vírus são ou não organismos vivos. De fato há uma questão aberta sobre o que é a vida.
Considerando a forma simplista e pouco precisa com que vírus se multiplicam, o que provoca neles tantas mutações, sempre se considerou que eles não poderiam ter uma sequência muito longa de genes. Desta forma não poderiam conter informações para a execução de tarefas complexas, além de produzir cópias de si mesmo e prover sua auto-proteção. Muitos cientistas defendem que organismos vivos devem ser constituídos de células. Como estruturas muito mais simples do que células os vírus foram considerados meros aglomerados de material genético, provavelmente resíduos deixados por organismos mais complexos. Nos últimos 20 anos esse conceito tem sido questionado. Suspeita-se, por exemplo, que os mimivírus realizem tarefas bem complexas. Quando entram em uma ameba eles não se dissolvem em seu interior. Eles montam uma estrutura complexa chamada de fábrica viral, parecida com uma célula. Ela é capaz de absorver ingredientes e construir novo DNA e outras proteínas. Existe inclusive um vírus especializado em infectar o mimivírus para sua própria reprodução. Aparentemente não há uma linha rígida e bem desenhada separando a vida da não-vida.
Humanos são um aglomerado de células de mamíferos, de bactérias e vírus. Sem essas bactérias morreríamos. Sem os segmentos de DNA importados dos vírus seríamos incapazes de nos reproduzir. Uma compreensão profunda do que são os vírus provavelmente será essencial para compreender a origem da vida.