Por que existem pessoas que negam a esfericidade da Terra?
— Carl Sagan, Contato (ficção científica, 1985)
— Aristóteles, Sobre o céu (Livro 3)
Em algumas culturas arcaicas, quando não havia observações suficientes para se obter uma boa visão do formato da Terra, se cogitou que o planeta poderia ser plano, em particular na Grécia até o período helenístico, na Índia anterior ao período Gupta e na China até século 17. A hipótese não é absurda nessas circunstâncias. Resumidamente a Terra é uma esfera gigantesca, com raio em torno de 6.371 km, uma distância aproximada à entre Ushuaia, Argentina e Boa Vista, Brasil. Um habitante com capacidade de observações restritas, em termos de deslocamentos sobre a superfície, verá o seu mundo como plano pois a curvatura é muito pequena. Para perceber e medir essa curvatura é necessário um deslocamento sobre a superfície ou, o que era ainda mais difícil no passado, abandonar a superfície por meio de aviões, foguetes ou balões.
Apesar da bem consolidada lenda de que Colombo teria mostrado a esfericidade da Terra, a despeito da crença da época, pessoas cultas na Europa há muito tinham conhecimento desse fato. De fato nem a viagem de Colombo até o novo mundo, nem a circunavegação do globo em 1522 por Fernão de Magalhães podem ser vistas como provas empíricas do globo, uma vez que ambas poderiam ser realizadas no modelo plano.
Como sabemos que é Terra é (aproximadamente) esférica?
A história da descoberta do formato da Terra e da habilidade de desenhar mapas que a representem é muito interessante e elucidativa da própria história da ciência. Algo que parecia ser apenas um debate filosófico e teológico se mostrou de fundamental importância em termos práticos. Boa parte do entendimento da ciência e tecnologia moderna, e de seu uso prático, depende da compreensão do formato do planeta, de como as coisas podem ser localizadas sobre a superfície e se movimentar sobre ela. Sem esse embasamento não se pode entender a visão de mundo construída após Galileu.
A visão intuitiva e natural de que o planeta é plano decorre na observação ingênua que se tem de um ambiente aberto. Tudo o que vemos é uma grande extensão que aparenta ser plana na média, apesar de deformações locais como grandes vales e montanhas. Essa observação e sua interpretação sempre esteve associada à noção de que estamos em repouso enquanto o astros se movem ao nosso redor. O grande debate entre heliocentrismo e geocentrismo ocupou o pensamento de estudiosos com Tycho Brahe, Johanes Kepler, Nicolau Copérnico e Galileu Galilei. A solução do problema praticamente inaugurou a afirmação do método científico e da física na história humana.
A questão é mal compreendida até os dias de hoje. É usual se ouvir afirmações de que o heliocentrismo foi considerado a visão correta após ter derrotado a visão geocêntrica, mas isso não é exatamente correto. Como foi bem solucionado por Newton, a mecânica do universo tem comportamento relativo. Referenciais de observação podem ser postos em qualquer parte e são inteiramente arbitrários. Os geocentristas colocavam um referencial fixo sobre a superfície da Terra. Neste referencial o Sol, a Lua e as estrelas giram ao nosso redor, enquanto estamos solidamente em repouso sobre a superfície. Ocorre que explicar ou descrever o movimento dos objetos astronômicos nesse referencial é incrivelmente complexo. Essa descrição fica muito mais simples se o referencial for deslocado para o Sol, no que se refere ao estudo do Sistema Solar.
A gravura em madeira, feita por artista desconhecido, apareceu pela primeira vez no livro L’atmosphère: météorologie populaire de Camille Flammarion (1888). A imagem retrata um homem rastejando sob a borda do céu para olhar para o além misterioso. A legenda (não mostrada aqui) continha o texto “Um missionário medieval diz que encontrou o ponto onde o céu e a Terra se encontram …”A ideia de que poderia existir um contato sólido entre o céu e a terra aparece várias vezes na obra de Flammarion. Em Les mondes imaginaires et les mondes réels, 1864, ele menciona a lenda de três monges (Teófilo, Sérgio e Hyginus) que “desejavam descobrir o ponto onde o céu e a terra se tocam” ubi cœlum terræ se conjungit por onde pudessem ir para o céu sem deixar a terra.
Depois de muita análise das coordenadas observadas dos planetas (palavra derivada do grego significando objeto errante) se deu conta que a descrição heliocêntrica torna mais simples a matemática envolvida na descrição dos astros. Com essa escolha, e com o uso da mecânica de Newton, é possível criar bons modelos para descrever o movimento celeste. Aos poucos uma imagem diferente do mundo foi construída. O Sol é uma estrela afastada aproximadamente (e em média) 145 milhões km. Em torno dela giram os planetas com seus satélites, cometas e outros objetos menores, todos eles satisfazendo a lei da gravitação universal. Com o uso dessa lei e das equações da mecânica se pode calcular a massa do Sol, dos planetas e da própria Terra.
O posicionamento de referenciais no centro do Sol não é perfeito e não resolve todos os problemas. O sistema Terra-Sol gira em torno de seu centro de massa. O sistema solar inteiro gira em torno de um centro de massa móvel, um ponto que leva em consideração a massa e distância de todos os planetas e demais objetos. Além disso o próprio Sol se desloca com velocidade acima de 220 mil km/h em uma órbita quase circular em torno da galáxia, um gigantesco aglomerado de estrelas que denominamos Via Lactea. Para o estudo desse movimento e das outras estrelas pode ser muito mais simples a adoção de coordenadas fixas na galáxia. Para tornar mais complexo o problema a própria Via-Lactea se move em relação a outras galáxias, se afastando da maioria delas e aproximando daquelas em seu grupo local. Isso significa que não existe um referencial ótimo e absoluto. A escolha de referenciais depende apenas da conveniência relativa ao problema que se quer estudar.
O entendimento das posições, distâncias e movimentos dos corpos celestes forma a base mais sólida para a compreensão do formato esférico da Terra. A gravitação, a interação que age entre todas as partículas no cosmos, é a responsável pelas trajetórias dos objetos e pelo formato dos mesmos. Planetas e estrelas são formados por poeira interestelar atraídos pela gravidade recíproca. Eles colapsam sob formas esféricas porque a gravidade de uma partícula tem simetria esférica, ou seja, ela é igual em todas as direções, dependendo apenas da massa da partícula e da distância até ela.
Existem muitas maneiras de se observar a forma da Terra e seu tamanho. Medidas como as de Eratóstenes, se realizadas com precisão e em muitos pontos do globo poderiam dar essa resposta. A Geodesia é a ciência relativa à tomada de medidas na superfície terrestre. Ela se utiliza de instrumentos como o teodolito, bússolas e taqueômetros para determinar ângulos e distâncias. Hoje, com o uso de GPS (Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global, baseado em satélites em órbita essa medidas se tornaram muita mais precisas.
Com essas medidas se verifica que a Terra tem um formato aproximado de uma esfera. Devido ao giro em torno do próprio eixo (responsável pelos dias e noites) o diâmetro ao longo do equador (12.756,1 km) é um pouco maior que o diâmetro na direção dos polos (12.713,5 km). Além disso a atração dos outros corpos, principalmente Sol e Lua, deformam um pouco esse formato através do efeito de marés. Essa diferença é pequena, assim como os desvios locais, como montanhas e vales) são mínimos, relativos ao tamanho do planeta. Resumindo: a Terra é uma esfera quase perfeita!
O que é a Terra Plana?
Apesar da evidência acumulada existe um grupo de pessoas que rejeitam a afirmação de que a Terra seja esférica. Terraplanismo se tornou um exemplo de teoria conspiratória, motivo de piadas nos grupos da internet. No entanto cresce o número daqueles que aceitam e se dedicam ao estudo dessa possibilidade.
Há quem afirme que terraplanistas estão apenas brincando, pregando uma peça em larga escala, e esses devem realmente existir. Existem os curiosos, que não tem condições de decidir sobre o tema e, principalmente, existem aqueles que transformaram a questão em item de fé e se apegam a ela com fervor religioso. O modelo mais popular afirma que a Terra é um disco contendo o polo norte no centro enquanto o polo sul é a borda do disco, margeada por uma enorme e intransponível parede de gelo. Uma alternativa é o modelo bipolar onde ambos os polos estão no disco, igualmente circundadas por água e gelo. Os dois grupos negam que seja possível conhecer o que está além do disco, acima da redoma que divide a abóbada terrestre do mundo celeste, ou abaixo dele. Existe ainda uma minoria que acredita que a Terra é um plano infinito.
Para eles o Sol e a Lua são luminares, lanternas pequenas e próximas do disco. A alternância de dias e noites e as fases da Lua ocorrem porque essas lanternas se movem circularmente sobre a superfície. Para eles a gravidade é um problema pois produziria atrações diferentes daquelas observadas. No caso do disco finito a atração gravitacional estaria sempre voltada para o centro do disco e quem estivesse nas proximidades do polo sul seria atraído para baixo e para dentro do disco.
Por causa dessas dificuldades os terraplanistas negam a existência da gravidade. Alguns sustentam que a Terra está se acelerando para cima com a mesma aceleração da gravidade. Neste caso a aceleração seria sempre igual em todos os pontos da Terra, coisa que não é observada. Outros argumentam que a atração para baixo se deve à efeitos magnéticos devido a algum mecanismo obscuro e mal descrito. Ainda existem aqueles que atribuem todo o efeito gravitacional à forças de empuxo associadas à densidades das coisas, se esquecendo que o próprio empuxo resulta da força gravitacional.
Existem terraplanistas dedicados que reuniram farta argumentação contra todas as tentativas de fazê-los ver que o modelo da Terra plana é irracional e contraditório com as evidências observadas e teóricas. Muitos de seus argumentos são difíceis de responder e pessoas com menor treinamento científico podem não conhecer essas respostas. Nesse sentido o desafio dos terraplanistas pode ser visto como educativo, forçando as pessoas a avaliarem o quanto conhecem sobre o ambiente científico moderno.
Um exemplo é a acusação constante de que não existem fotos da Terra completa tiradas do espaço. Nesse quesito terraplanistas mergulham na mais profunda das teorias conspiratórias, onde a NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, comanda um complô mundial para enganar a opinião pública, levando-a a aceitar a ideia de que a Terra é esférica. Os motivos são absurdos e vão desde uma tentativa de controle da economia e poder mundial por um grupo de “operadores ocultos” até a visão de que esses operadores estão preparando o planeta para exterminar humanos e dar lugar a máquinas usando inteligência artificial. No esforço para provar essas afirmações extremas terraplanistas descobriram que muitas das belas fotos da Terra fotografada do espaço são resultado de montagens e ajustes de photoshop, o que é um fato. É verdade que a NASA tem um especialista em montagens porque muitas das fotos tiradas do espaço enquadram apenas partes do planeta. Essas fotos parciais são montadas para o efeito de divulgação científica para a comunidade leiga. Isso significa que não existem muitas fotos enquadrando em um único disparo a Terra como um globo. A maioria delas foram tiradas das missões Apolo, outras das sondas enviadas para os planetas externos.
Terraplanistas argumentam que é impossível que naves saiam da atmosfera da Terra, uma vez que atingiriam o domo, e que todas essas fotos são falsificações. Segundo eles as fotos e filmagens das sondas, feitas na Lua, Marte, Júpiter, Saturno, e até além desses, não passam de computação gráfica e animações. Evidentemente não acreditam na viagem de astronautas até a Lua. As filmagens da ISS (International Space Station) percorrendo um volta completa em torno do planeta a cada 92,68 minutos em tempo real e disponíveis da internet são descartadas como meros efeitos cinematográficos.
Esse estado de coisas provê uma fonte farta de exemplos de que fé infundada pode ser perigosa. Em fevereiro de 2020 Mike Hughes, um stunt man de 64 anos, se lançou em um foguete feito por ele mesmo em uma tentativa de descobrir se a Terra é plana. Hughes, que já havia se machucado em outras tentativas, foi ejetado do foguete sem o paraquedas e morreu na queda. Vários outras pessoas se lançaram em balões ou foguetes na esperança de verificar pessoalmente a planicidade ou de encontrar o domo. Em setembro de 2020 um casal de italianos se lançou ao mar na tentativa de alcançar as “bordas” da Terra. Eles se perderam no meio do mar e tiveram que ser salvos por uma embarcação do serviço italiano de resgate de imigrantes. A imprensa aproveitou a oportunidade para ridicularizar os aventureiros porque eles estavam se guiando por uma bússola, algo que não deveria funcionar na terra-plana.
História do terraplanismo moderno
No final do século 19 Samuel Rowbotham realizou no Reino Unido uma série de experimentos sobre a curvatura dos leitos de água e concluiu que eles eram planos e não acompanhavam a curvatura esperada da Terra. Ele iniciou uma sequência de debates com estudiosos e cientistas e, aos poucos, desenvolveu sua argumentação a ponto de criar dificuldades para seus oponentes. O experimento de nível de Bedford foi realizado ao longo de um trecho de águas tranquilas do rio Bedford, medindo 6 milhas (9,7 km). Sob o pseudônimo de Parallax, Rowbotham escreveu um panfleto, mais tarde expandido em livro, Earth not a Globe, publicado em 1865.
Rowbotham recebeu pouca atenção na época, até que um de seus apoiadores ofereceu um prêmio em dinheiro para quem demonstrasse que sua conclusão estava errada. O desafio foi aceito pelo naturalista Alfred Russel Wallace que mostrou que o erro decorria da não consideração de efeitos de refração atmosférica, ganhando o prêmio acertado.
Rowbotham atribuiu à sua metodologia o nome de “Zetetismo”, da palavra grega zeteo que significa “buscar”. No fundo ele pretendia aplicar uma versão extrema da filosofia do empirismo, onde se acredita exclusivamente na informação direta dos sentidos. Para ele, e seus seguidores mais recentes, o exercício complexo da ciência, onde se exige uma aplicação intensa de conceitos e modelos teóricos, é inválido.
Ele também publicou um folheto intitulado A Inconsistência da Astronomia Moderna e sua Oposição às Escrituras onde argumentava que “a Bíblia, juntamente com nossos sentidos, apoia a ideia de que a terra é plana e imóvel e esta verdade essencial não deveria ser deixada de lado por um sistema baseado exclusivamente em conjecturas humanas “. Usando seus resultados experimentais, cálculos matemáticos e passagens bíblicas, ele passou a argumentar que a terra está fixa no centro do universo, tem menos de seis mil anos e foi criada em seis dias, e está se aproximando rapidamente da destruição por fogo. Além dessa leitura literal da Bíblia Parallax afirmou que a Terra é um disco plano com o Polo Norte no centro e o Polo Sul limitado por uma imensa barreira de gelo. O que existe após a barreira do polo sul é desconhecido e impossível de ser determinado por humanos. Todas essas conjecturas mostram que, desde sua origem, há um componente de crença religiosa na afirmação de planicidade da Terra.
O sonho empiricista da Terra plana não morreu com Rowbotham. Outro inglês, Samuel Shenton, criou em 1954 a Sociedade Internacional da Terra Plana, assumindo a tarefa de mostrar ao mundo o grande erro científico. O mesmo empirismo ingênuo aparece nas palavras de Shenton: “Nenhum homem conhece a verdadeira forma da terra. Sabemos, no entanto, que essa parte onde vivemos é definitivamente plana. Ninguém jamais saberá como é toda a complexidade, eu imagino, porque vai além sua esfera de observação, investigação e compreensão.”
Após a morte de Shenton, em 1971, o americano Charles Johnson assumiu a responsabilidade pela Sociedade da Terra Plana. Quando Johnson morreu em 2001, a Sociedade tinha cerca de 3500 membros e não despertou a atenção da mídia. A sociedade passou a ser liderada por outro americano, Daniel Shenton (não parente de Samuel) que disse em entrevista para o The Guardian em 2010: “Não creio que haja provas sólidas. Não estou sendo teimoso intencionalmente sobre isso, mas sinto que nossos sentidos nos dizem essas coisas, e levaria um nível extraordinariamente de evidências para neutralizá-los“.
Shenton criou uma página wiki para a comunidade da terra plana, ainda sem produzir muito impacto na opinião pública. Em 2016, no entanto, alguns devotos terraplanistas começaram a postar vídeos no YouTube, época em que os mecanismos de sugestão de conteúdo, animados pelas inteligências artificiais, já estavam em pleno vapor levando os usuários a consumir conteúdo cada vez mais extremo e viciante. O mesmo mecanismo que criou uma polarização política nunca vista, a separação radical entre grupos de opiniões diferentes, também impulsionou ambientes de radicalização filosófica e de contestação intelectual. As teorias conspiratórias encontraram o ambiente propício para sua proliferação e o terraplanismo, para a surpresa de muitos, encontrou muitos adeptos.
Esses vídeos foram assistidos por milhões de pessoas. Uma pesquisa de 2018 nos Estados Unidos mostrou que 2% dos entrevistados afirmaram acreditar que a terra é plana enquanto outros 7% reconhecem que não sabem decidir qual é o formato correto. Um número alto de pessoas no mundo desenvolvido rejeita partes da ciência que está estabelecida desde a Idade Média. Além disso existe uma correlação entre acreditar na Terra plana, ser jovem, religioso e de baixo poder aquisitivo.
Atualmente a Sociedade da Terra Plana se ramificou em diversos movimentos, alguns deles compostos por um único influenciador digital e seus seguidores. Um exemplo marcante entre eles, por exótico e falante, é o de Mark Sargent que, além do elenco padrão de afirmações conspiratórias acrescenta afirmações tais como:
- Após 1957 os EUA e a então União Soviética mandaram sondas para o espaço e ficaram apavorados com o que descobriram. Por isso iniciaram um programa de detonar bombas nucleares na atmosfera, que durou 4 anos.
- Em 1959 dez nações estabeleceram que todo o acesso à Antártica deveria ser vetado. Mais de 50 nações assinaram, mais tarde, um tratado concordando com essa imposição.
- O programa Apolo que levou humanos à Lua foi forjado para fixar no imaginário popular o conceito de uma terra esférica, inclusive apresentando uma foto tirada à distância. Os militares americanos impedem que companhias privadas iniciem a exploração espacial, caso contrário eles encontrariam o domo e descobririam a verdade.
— Albert Einstein
Alguns terraplanistas, para afirmar que a Terra não se move pelo espaço, usam como argumento o experimento de Michelson e Morley, realizado em 1887. Este experimento, com resultado inesperado e surpreendente, tentou detectar o movimento do planeta através do suposto éter luminoso que se acreditava na época ser o meio por onde a luz se propaga. Físicos consideraram o resultado como uma prova de que não existe tal éter. Considerando que o movimento da Terra estava bem estabelecido Albert Einstein formulou a Teoria da Relatividade Restrita que usa a invariância da velocidade da luz para construir uma nova mecânica, diferente da proposta por Newton. Suas conclusões são altamente não intuitivas e violam o entendimento ingênuo da natureza (o chamado senso comum). A teoria da relatividade causou um impacto muito grande na opinião pública e muitas pessoas, inclusive cientistas, inicialmente se recusaram a aceitar suas afirmações tais como de comprimentos e intervalos de tempo que variam de acordo com a velocidade em relação ao observador, e a equivalência entre massa e energia. Até hoje muitas pessoas tentam provar que a teoria está errada. Apesar disso ela faz um grande número de previsões importantes, todas elas observadas na natureza. A teoria da relatividade, tanto restrita quanto geral, são amplamente testadas e não se conhece experimento em discordância com ela.
Religião e terraplanismo
As origens do movimento, como vimos, foi certamente inspirada pela interpretação literal dos textos religiosos (particularmente os cristãos, judaicos e islâmicos). Grande parte dos autores sobre o assunto confessam com orgulho sua leitura literal da Bíblia. Muitos terraplanistas rejeitam a Teoria da Evolução e defendem a “Terra jovem” e criacionismo, a ideia de que o planeta tem pouco mais que 5 mil anos e que foi criado por Deus como está, inclusive com seus habitantes vivos atuais.
A terra plana, por mais que alguns tentem esconder esse fato para dar uma roupagem mais moderna à sua hipótese, é o conceito de que Deus teria feito o mundo apenas para o testar os seres humanos. Nessa visão não existe nada mais exceto aquilo necessário para esse fim.
O Mundo é dividido em Paraíso, Terra, Mar e Submundo (Sheol). O céu (firmamento está apoiado sobre fundações (talvez montanhas) e possui portas e janelas por onde entra a chuva. Deus mora no Paraíso, oculto sob as nuvens.
Vivemos em um disco flutuando sobre as águas, apoiado em pilares. A terra é o único domínio que pode ser conhecido. O restante é incognoscível.
O Submundo (Sheol) é uma prisão de água ou terra da qual é impossível escapar. Embora sendo um local físico abaixo da terra ela só pode ser alcançada através da morte.
Citações bíblicas
“Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles;” Mateus, 4:8.
Comentário: “Se todos os reinos podem ser vistos de um ponto elevado, a Terra deve ser plana.”
“E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no livro de Jasar? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro.” Josué 10:13
— “Portanto Sol e Lua são luminares pequenos e não astros enormes”.
“Vestido de esplendorosa luz, como num manto, Ele estende os céus como uma tenda”. Salmos 104:2
Um manto e uma tenda são ambos finitos. O universo é finito.
“Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Quem marcou os limites das suas dimensões? Talvez você saiba! E quem estendeu sobre ela a linha de medir? E os seus fundamentos, sobre o que foram postos? E quem colocou sua pedra de esquina, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam? Quem represou o mar pondo-lhe portas, quando ele irrompeu do ventre materno, quando o vesti de nuvens e em densas trevas o envolvi, quando fixei os seus limites e lhe coloquei portas e barreiras, quando eu lhe disse: Até aqui você pode vir, além deste ponto não; aqui faço parar suas ondas orgulhosas?” Jó 38: 4-11 (trechos)
“Farei com que os quatro ventos, que vêm dos quatro cantos do céu, soprem contra Elão. E eu os dispersarei aos quatro ventos, e não haverá nenhuma nação para onde não sejam levados os exilados de Elão.” Jeremias 49:36
Se a Terra fosse um globo onde estariam os quatro cantos do céu?
Terraplanismo e rejeição da autoridade
A física Sabine Hossenfelder faz uma analogia interessante em seu vídeo “Ciência” da Terra Plana. Suponha que você vá ao supermercado e compre um produto alimentício preparado qualquer. Você consome o produto sem se questionar se aquilo é comestível, se é algo preparado com o devido asseio ou até se é um veneno. Por que você acredita que o produto é confiável sendo que, quase sempre, nem sabe quem o preparou? Você faz isso porque conhece, pelo menos em princípio, o sistema de produção em seu país, confia que existem regulamentações que o protegem e que elas estão sendo vigiadas. Você sabe que a existência de um contaminante no produto traria problemas para o fabricante. Existe uma confiança implícita no ambiente de produção e vigilância em sua comunidade.
Da mesma forma não somos, pelo menos a maioria de nós, capazes de avaliar os níveis de segurança de um medicamento ou uma vacina. Confiamos que os testes foram feitos e a vacina é eficiente e segura. Igualmente poucas pessoas podem medir o raio da Terra por si mesmas. Mas elas confiam que toda uma comunidade científica sabe como fazê-lo, que fizeram medidas e cálculos minuciosos e conferiram seus resultados. Seria muito difícil conseguir um complô global envolvendo engenheiros, físicos, astrônomos, pilotos de avião, etc.
Entretanto, em todos esses casos, não seria prudente depositar confiança cega e absoluta sobre todas as afirmações de fabricantes de alimentos, de vacinas e cientistas. Não é impossível que o alimento preparado contenha produtos que você não quer comer, que um medicamento tenha efeitos colaterais ou, até mesmo, que a comunidade científica esteja errada, como já aconteceu tantas vezes. Por isso é necessário que as pessoas tenham um entendimento mínimo do método científico, da estrutura das organizações de pesquisa e ensino e de como a comunidade científica interage para apresentar, confirmar ou descartar cada descoberta.
Críticas ao modelo do disco plano
A argumentação mais frequente dos terraplanistas é a de que se pode ver objetos distantes com o uso de um binóculo, mais longe do que seria possível se considerada a esfericidade. Assim como ocorreu no experimento do rio Bedford por Rowbotham, que não conseguiu perceber a curvatura de um leito de água com 9,7 km de extensão, dois erros são cometidos comuns. Um deles subestima o raio da Terra que, por ser muito grande relativo às distâncias medidas, resulta em efeito muito pequeno na curvatura. Outro foi o efeito apontado por Alfred Russel Wallace, que consiste em ignorar a refração atmosférica. Com a variação da temperatura do ar em diferentes altitudes o índice de refração da luz se altera, fazendo com que o feixe luminoso mude de direção, se curvando para baixo. Desta forma temos a impressão de que o horizonte está mais distante. Mesmo assim os navios observados se afastando mar adentro ficam invisíveis primeiro na parte inferior, depois nas partes mais altas.
A sombra da Terra na Lua durante um eclipse é sempre circular. Se o planeta fosse um disco ele produziria sombras elípticas. Além disso ninguém foi capaz de apresentar uma boa explicação para os eclipses no modelo plano. Uma pessoa no hemisfério norte vê a Lua invertida em relação ao que vê alguém no hemisfério sul. O mesmo ocorre com as constelações. A estrela polar, acima do polo norte, não pode ser vista do hemisfério sul. Uma filmagem de longa duração das estrelas mostra movimentos circulares incompatíveis com o modelo plano.
A sombras provocadas por um Sol pequeno e próximo da Terra também variam de acordo com as latitudes mas de modo incompatível com as sombras observadas. O tamanho aparente do Sol como luminar variaria durante o dia mais do que o observado.
O suposto complô entre cientistas do mundo inteiro para esconder uma realidade que pode ser verificada com o uso de equipamentos simples é impossível. A NASA não é o único organismo de pesquisa espacial e cada afirmação, cada nova descoberta de um grupo de pesquisa, é verificada exaustivamente por cientistas de vários países. A afirmação de que a NASA proíbe a entrada de civis no círculo polar antártico, mantendo guarda armada para afugentar intrusos, não tem nenhum sentido quando se sabe que quase todos os países investem em estudo dessa região e lá mantêm postos de pesquisa.
A maioria dos vídeos mais recentes postados na internet e visualizados por muita gente são simplórios, ignorantes, quando não demonstram a total deficiência cognitiva de seus autores. Existe, por exemplo, um vídeo brasileiro onde o “instrutor” coloca uma bola debaixo de uma torneira para mostrar que a água escorre e “não gruda na esfera”.
A acusação de que a ciência possui uma agenda secreta de destruição da religião merece ser considerada. Cientistas como Isaac Newton e muitos outros nos primórdios da ciência declaravam fazer os seus estudos “para revelar e exaltar a glória de Deus”. No entanto muitos passos foram dados para explicar a natureza sem que a intervenção divina se fizesse necessária. Uma boa descrição da origem das espécies dada por Darwin e a explicação bem sucedida dos movimentos celestes representaram um golpe poderoso sobre a religião. Há o relato, provavelmente apócrifo mas ilustrativo, de como Napoleão manuseou o livro onde Pierre de Laplace propunha uma teoria física para a formação do sistema solar. Napoleão teria dito que não encontrou referências a Deus na obra, ao que Laplace retrucou: “Não precisei dessa hipótese”.
Por que existem terraplanistas?
Devido ao viés conspiratório extremado dos defensores da terra plana pode parecer fácil descartar suas afirmações e terminar as discussões com o deboche. Mas, assim como o fundador da moderna sociedade terraplanista, Rowbotham, se preparou exaustivamente para debater com os pensadores de sua época, também hoje é possível encontrar pessoas que pensaram em respostas para praticamente toda a argumentação contra as suas “teorias”. Alguns de seus argumentos não são fáceis de rebater para alguém que não tenha formação na área ou que não tenha pelo menos pensado sobre o assunto. Eles explicam, por exemplo, a diferença na sombra do Sol em cidades com latitudes diferentes, usada por Eratóstenes, como um efeito devido à proximidade do Sol, e não à curvatura da superfície. As sombras provocadas pelo Sol no modelo terra-plana não correspondem às observadas mas quantas pessoas estão aptas e dispostas a fazer o cálculo trigonométrico necessário? O surgimento da dúvida sobre o formato do planeta tem um aspecto educativo: você sabe explicar como se concluiu pela esfericidade e como se calcula o tamanho do planeta? Você sabe que a Terra é esférica ou apenas acredita no que te foi dito?
Por outro lado a aceitação crescente dessa pseudo-ciência deve causar preocupação. Ela não é apenas manifestação de ignorância científica mas um movimento de revolta e rejeição do conhecimento institucionalizado. Essa tendência vem se aprofundando nos últimos anos. O conhecimento técnico científico está se tornando muito complexo e ramificado e nosso sistema educacional está deixando para trás a absoluta maioria das pessoas. Embora (quase) todos se utilizem de tecnologia avançada poucos a compreendem. As pessoas se vêm imersas em um mundo mágico onde ela tem pouquíssima chance de contribuir. Elas sequer podem se recusar a participar do sistema que as engole. O sistema complexo, incompreendido e compulsório se torna o fermento ideal para a especulação conspiratória de onde surge o conceito de que estamos vivendo na matrix. Se estamos sendo enganados por que não acreditar que somos controlados por uma única família, por um grupo secreto de indivíduos ou até por alienígenas?
Terraplanismo, entre outros apelos pseudocientíficos e conspiracionistas, é uma resposta a um sistema educacional deficiente e basicamente elitista. Considere, por exemplo, a educação nos EUA, notoriamente fraca em seus níveis mais básicos, peneirando os estudantes por mérito, que frequentemente significa poder aquisitivo, até conseguir juntar um grupo de excelência que ocupa os centros avançados de formação. No Brasil é problema é ainda mais sério, quando se verifica uma qualificação pobre em testes de proficiência internacionais, mesmo quando comparado a países mais carentes. Junte-se a isso o proliferação de cursos superiores que na verdade formam grande parte da população com nível similar ao de técnico.
Pessoas excluídas do processo formador são igualmente excluídas do processo decisório e mais expostas à manipulação. Resta a elas rejeitar a construção acadêmica, o que hoje se reflete em ampla desconfiança popular em relação às universidades. Isso leva, por exemplo, à rejeição das vacinas, da oposição à instrução médica no combate à pandemia de covid-19, da suspeita infundada sobre efeitos nocivos de novas tecnologias. E promove ambiente fértil para o reavivamento do pensamento mágico na forma da astrologia, de medicinas não comprovadas, de religiões espúrias e teorias conspiratórias.
A divulgação fácil de conteúdo pela internet, que supostamente popularizaria o conhecimento, tornou acessíveis pensamentos marginais. Juntamente com as intrigas provocadas artificialmente pelos algoritmos de fidelização das redes sociais, notórios pela exploração do radicalismo, essas ideias encontraram campo fértil em um grupo de revoltados que pretendem ser ouvidos.
Esse é o ambiente ideal para profissionais desqualificados e políticos populistas e sem conteúdo. A crítica da imprensa, advertências de médicos ou experts de qualquer área é inócua para aqueles que já destruíram, em sua visão de mundo, a credibilidade do establishment. O perigo para a sociedade é enorme. O apelo de solução fácil para problemas difíceis tende a atrair pessoas ingênuas, incultas ou com suas capacidades intelectuais e reflexivas prejudicadas. Também são atraídos pessoas hábeis na manipulação, indivíduos que podem ser brilhantes mas que teriam dificuldades para se projetar na sociedade mais ampla. As lideranças desses grupos, algumas vezes eles mesmos afligidos por deficiência cognitiva grave ou movidos por má fé, manipulam a sensação de acolhimento no grupo e de superioridade por serem eles os detentores de verdades desconhecidas pelo “mortal comum”. (Não raro esses grupos possuem um termo pejorativo para se referir aos não membros. Terraplanistas fazem piadas sobre os “terra-bolistas”, aqueles que acreditam na terra molhada girante.)
— Bernard Shaw
Bibliografia
- Garwood, Christine: Flat Earth: The History of an Infamous Idea, Macmillan, New York, 2008.
- Stanton, Guy: Flat Earth: A handbook meant to help those in pursuit of the Truth, disponibilizado pelo autor em Free ebooks-net, acessado em setembro de 2020.
- Russell, Jeffrey: Inventing the Flat Earth: Columbus an d Modern Historians, Praeger Publishers, New York, 1991.
- Sargent, Mark; Flat Earth Clues, The Sky’s The Limit, Booglez Limit, London, 2016.
- Youtube, Canal Business Insider: How Eratosthenes calculated the Earth’s circumference, acessado em setembro de 2020.
- Youtube, Canal Sabine Hossenfelder: “Ciência” da Terra Plana – Errada, porém não estúpida, acessado em setembro de 2020.
- Youtube, Filmes: Behind the Curve, acessado em setembro de 2020.
- Youtube, Aviões e Músicas, Episódio 163: Terra Plana e o voo impossível para o Sul, acessado em setembro de 2020.
- Youtube, Aviões e Músicas, Episódio 468: A volta ao mundo pelos dois pólos, acessado em setembro de 2020.
- Youtube, Aviões e Músicas, Episódio 472: Por que não tem voo cruzando a Antártida?, acessado em setembro de 2020.