— Donald Hoffman
Este artigo é continuação de Vieses de cognição e Viés de Confirmação e Efeito Dunning-Krueger mas pode ser lido independentemente.
A ilusão dos sentidos
Você vai atravessar a rua e olha para os dois lados. Um veículo se aproxima mas você faz um cálculo rápido e percebe que há tempo suficiente para prosseguir. Confiamos em nossos olhos e em nosso cálculo mental. Aprendemos que o mundo é feito de ruas e carros, pessoas e semáforos. Pessoas e carros se movimentam de forma previsível e adquirimos uma confiança progressiva em nossos sentidos e senso comum. Concluímos que eles são bons guias de segurança e de conhecimento. Mas, será que isso é sempre verdade?
É claro que os sentidos se desenvolveram para uma melhor adaptação ao ambiente, por meio dos mecanismos de evolução conhecidos. Como exemplo, nossa visão tem maior sensibilidade na cor do Sol mais intensa (que é um amarelo esverdeado), assim como plantas de cavernas são mais escuras para captar melhor a pouca luz que recebem. Os ajustes dos sentidos foram aqueles que melhor prepararam a nós, e todas as demais espécies, para a sobrevivência em seu habitat. Dentro de uma população de qualquer espécie, indivíduos que melhor avaliam seu meio têm maior chance de se alimentar, lutar ou fugir dos predadores, e procriar.
Mas, mesmo reconhecendo que nossos mecanismos de contato com o mundo foram finamente ajustados para a sobrevivência, temos muitas indicações de que nossos instrumentos sensoriais não são perfeitos para nos informar sobre o que existe no mundo. Eles podem falhar de maneiras e níveis diversos e nos iludir em várias situações. Por isso uma análise dessas falhas devem ser parte importante de qualquer tentativa de compreender, com algum grau de objetividade, o que está em nosso ambiente.
O grau de objetividade de nossa percepção vem sendo discutida há muito tempo. É esse, afinal, o objetivo de Platão em sua alegoria da caverna. Nela Platão descreve um grupo de filósofos presos dentro de uma caverna, vendo apenas as sombras que a realidade externa projeta em suas paredes. Por mais que tentem apreender o que está no mundo eles só vêm suas sombras, como informações parciais e distorcidas de uma suposta realidade objetiva.
A física da ilusão
Os pensadores gregos foram bons no desenvolvimento do raciocínio lógico e da matemática, mas não avançaram muito em física (ou ciências, em geral). Por pura observação do cotidiano os gregos concluíram que objetos em movimento tendem a perder velocidade até parar e que o estado parado é o natural dos corpos. Foram necessárias várias reviravoltas históricas até que, no século 16, Galileu Galilei introduziu o conceito de experimentação na ciência, algo ausente no pensamento grego. Galileu concluiu em seus experimentos, e na racionalização sobre eles, que objetos em movimento permanecem em movimento até que uma força atue sobre eles. Com o aperfeiçoamento do conhecimento sobre mecânica, Newton mostrou que não existe nada especial sobre o estado de estar parado e que, na verdade, estar parado ou em movimento retilíneo uniforme são estados completamente equivalentes, dependendo apenas do referencial de observação.
Temos uma grande dificuldade para interpretar o movimento. Uma pessoa dentro de um trem que parte sem solavancos terá a impressão de que a plataforma de embarque está se afastando para trás, assim como as pessoas antes de Kepler e Galileu achavam que o Sol, os planetas e as estrelas giravam em torno da Terra. O abandono dessa visão primitiva foi um processo lento e doloroso, incluindo a morte daqueles que ousaram abandonar o consenso da época. Do ponto de vista científico moderno esse debate é de todo irrelevante. Qualquer referencial pode ser usado para descrever o movimento do sistema solar. Ocorre que um referencial centrado no Sol (embora não exatamente em seu centro) e se movendo junto com ele torna a descrição matemática muito mais simples.
Parte dessa ilusão se deve à lentidão de nossos sentido e da forma como eles devem se focar sobre o objeto considerado, desprezando a visão ampla do examinado. Quando assistimos a um filme, por exemplo, estamos expostos a uma sequência de imagens estáticas mas as interpretamos como estando em movimento contínuo. Um ponto de luz em rápido movimento circular (como uma brasa amarrada na ponta de uma corda sendo girada) se parece com uma circunferência pois pontos acessos na retina demoram a se apagar de forma que vemos um círculo inteiro quando apenas um ponto está iluminado.
O estudo físico do movimento revelou níveis mais profundos de incompreensão de nossa visão ordinária. Em movimentos rápidos (quando comparados à velocidade da luz) muito efeitos extraordinários se manifestam. Esse é o objeto da TRR, responsável pelo entendimento de que distâncias no espaço e no tempo (intervalos) não são os mesmos para observadores em diferentes velocidades. A TRR introduz o conceito de espaço-tempo, totalmente inesperado para nossos sentidos e cognição uma vez que não interagimos rotineiramente com esse tipo de entidade. Além disso ela mostra que existe uma relação entre matéria e energia, algo inesperado e pouco intuitivo para o senso comum e, no entanto, capaz de transformar totalmente nossa visão de mundo e tecnologia.
Outra revolução no entendimento físico das coisas ocorreu com a teoria quântica. Nesse caso fenômenos ainda mais exóticos são expostos, entre eles a impossibilidade de se localizar uma partícula e simultaneamente afirmar sua velocidade com precisão. A mecânica quântica, apesar de distante dos sentidos e experiências comuns, é responsável pelo entendimento de muitos fenômenos a que estamos rotineiramente expostos. Para entender porque uma barra de ferro parece ser mais fria ao toque do que uma peça de madeira, porque o vidro é transparente ou as coisas tem cores, porque uma lâmpada de filamentos ou uma de led se acendem, porque o Sol brilha e é quente, porque o gelo boia na água líquida, etc, você precisa da mecânica quântica. Observe que a linguagem usada nesse parágrafo foi propositalmente pouco precisa. Solidez é o que sentimos na interação eletromagnética, matéria é o conjunto de partículas e seus campos.
Sabemos, por meio da mecânica quântica, que uma parede sólida possui mais espaço vazios entre seus átomos que matéria, no sentido da palavra usado no dia a dia. Considere um portão rígido de ferro. Os átomos de ferro se agrupam de forma cristalina, com espaçamento regular entre os átomos. Os núcleos (26 prótons e o mesmo número aproximado de nêutrons) ficam distantes uns dos outros e o espaço intermediário é preenchido com nuvens eletrônicas que carregam pouquíssima massa. Pode-se assim dizer que uma chapa de ferro é como uma peneira. No entanto você não deve socar essa chapa pois as partículas de sua mão sofrerão interação eletromagnética com as do aço e você se machucará. Curiosamente, nenhuma partícula de sua mão colidirá diretamente com as da placa metálica exceto por meio da interação elétrica e magnética. Portanto, o sentido do tato nos informa que a placa é uniformemente sólida. Nossa visão dará a mesma informação pois a luz será absorvida nesse “interstício vazio de matéria” fazendo a placa ser opaca.
Os últimos exemplos mostram como falhamos na compreensão de coisas diminutas, como núcleos, elétrons, fótons (as partículas da luz) e suas interações. Não temos nenhum senso comum apropriado para pensar sobre fenômenos no mundo das partículas. Isso é natural pois não experimentamos nada disso em nosso processo evolutivo. Não temos ferramentas sensoriais naturais nem estrutura cognitiva cerebral para lidar com essas coisas. Por isso a mecânica quântica causou tanta surpresa em sua descoberta. O mundo microscópico não funciona como o mundo cotidiano de carros e pedestres.
Uma mostra adicional de como nosso senso comum é insuficiente para captar as nuances do mundo microscópico está no chamado problema da seta do tempo. No nível microscópico não é claro o motivo do tempo fluir do passado para o futuro. Se assistirmos a filmes de interações entre partículas não seremos capazes de dizer se o filme roda na direção natural do tempo ou se foi invertido. Nossa intuição sobre tempo se refere à um fenômeno macroscópico, ligado à entropia que, por sua vez, está conectada à probabilidade de ocorrência de certos eventos.
Da mesma forma o universo em grande escala, no nível das galáxias e aglomerados galáticos, não se comporta como dita nossa intuição. Existe uma relação intrínseca entre a massa dos objetos dentro do espaço e a própria geometria desse espaço (a forma como se mede distâncias e ângulos). A matéria (e energia) modificam o espaço que, por sua vez, modifica o movimento dos corpos naquele espaço.
A psicologia da ilusão
No entanto não precisamos apelar para o mundo das coisas microscópicas ou dos objetos em alta velocidade ou grandes escalas para perceber a ilusão. Nosso cérebro está enclausurado na caixa craniana e só entra em contato com o mundo através de impulsos elétricos que chegam dos órgãos sensoriais, levados até ele por neurônios e sinapses. No entanto existem muitas evidências de que as percepções integradas que temos do ambiente externo são mais uma composição processada pelo cérebro do que uma fotografia exata.
Uma parte importante de nossa recepção do mundo externo nos vem através da visão e interpretação das cores. No entanto enxergamos uma faixa muito estreita do vasto espectro eletromagnético, do vermelho até o violeta (o que chamamos de luz visível!) Todas as demais frequências, as ondas de rádio, do infravermelho, do ultravioleta, raios X e raios gama são invisíveis para nós porque não temos sensores capazes de entrar em ressonância com essas vibrações. Essa limitação não é igual para todos os seres vivos: Abelhas podem ver na faixa do ultravioleta (uma “cor” que existe em flores) e cobras podem perceber o infravermelho, a radiação emitida por corpos em temperatura ambiente na Terra. Elefantes ouvem ruídos na faixa do ultrassom, ursos podem sentir cheiros de animais mortos em lugar distante, tubarões percebem campos elétricos e pombos se orientam por esses campos.
Neurocientistas usam os enganos da percepção para aprender mais sobre esse mecanismo e suas falhas. As mesmas pesquisas também são úteis para ajudar na construção de sistemas inteligentes que realizam tarefas usualmente atribuídas a humanos, tais como o reconhecimento facial.
O que vemos não é uma representação fiel do está no mundo exterior. Para compreender o cérebro faz suposições usando uma quantidade mínima de informações. A rica experiência que acumulamos olhando uma paisagem ou um belo quadro é uma reconstrução e não um mapeamento direto do observado. O cérebro sadio erra, gerando percepções falsas, ilusórias. Pacientes portadores de patologias neurológicas e cerebrais são expostos à ilusões ainda mais sérias.
Muita complexidade existe em nossa percepção de formas, cores e contrastes em áreas mais ou menos escuras. Observe que, dependendo da iluminação ambiente, as cores podem ter aparências totalmente diversas. Essa variação é corrigida por processamento cerebral. Somos obrigados a reconhecer que os sentidos não são uma aferição rigorosa do mundo exterior, como se fossem instrumentos de laboratório bem calibrados. Eles são os mecanismos adaptados para uma vida segura e eficiente, no sentido evolutivo.
A
ou B
é mais escuro?A pesquisa em neurociência tem mostrado que boa parte das imagens capturadas pela visão são mais devidas à uma reconstituição processada no cérebro do que imagens objetivas e diretas do mundo exterior. A construção das cores é um bom exemplo disso. O que chamamos de azul
ou vermelho
são as representações montadas pelo cérebro à partir das frequências de luz recebidas. Os olhos transformam imagens em sinais elétricos que são enviados para o cérebro que, por sua vez, constrói a cor. Nas palavras de Kim e seu grupo de pesquisa (veja referências):
— Kim, I; Hong, S., Shevell, S., Shim W.; Neural representations of perceptual color experience ..
Imagem e cor são reconstruções feitas pelo cérebro em um processo muito parecido com o que é feito nas belas fotos do Hubble e de radiotelescópios onde uma determinada faixa de frequência é convertida em cor visível para a nossa apreciação (e para a análise científica dos dados). A pesquisa mostra que há uma tentativa de economizar recursos e que o cérebro pode decidir pela cor de um objeto com muito pouca informação. Uma vez reconhecida a cor (mesmo que o reconhecimento esteja incorreto) o cérebro preencherá a imagem com aquele tom.
Além da faixa restrita de frequências de ondas que podemos captar, nossa visão só é nítida em uma região muito pequena do campo visual, e desfocada no entorno. Se você esticar o braço e levantar o polegar o tamanho da unha em seu polegar é aproximadamente o mesmo da região onde você enxerga claramente. A imagem periférica é borrada e imprecisa e a noção de que estamos olhando uma imagem ampla e detalhada é construída. (Experimente fixar os olhos em uma parte desse texto e ler as palavras que estão fora de seu olhar direto!) Quando você muda o foco de visão o ponto que recebe sua atenção se ilumina e se torna mais definido enquanto as demais partes da imagem são alimentados pelo cérebro usando a memória e cálculo.
Para mostrar que, da mesma forma, as pessoas enxergam cores apenas em uma parte pequena de sua visão, pesquisadores apresentaram imagens que iam perdendo colorido gradualmente (desaturando a cor) na periferia do campo visual. Algumas pessoas não perceberam a dessaturação na periferia mesmo quando quase toda a cor (até 95%) foi removida. Se você está olhando para um objeto na parede e seu cachorro caramelo entra na sala é bem possível que você enxergue a cor de seu pelo, mas apenas porque você a conhece de antemão. Caso contrário só conhecerá a cor do animal se olhar diretamente para ele.
Em testes de laboratório pesquisadores descobriram que ilusões que aparecem em sentidos diferentes podem usar os mesmos circuitos cerebrais. Por exemplo, uma pessoa olha para objetos que se movem em uma direção. Se ela troca o foco do olhar para objetos imóveis ela tem a impressão de que esses estão se movendo na direção oposta. Se, ao invés de olharem coisas imóveis, eles receberem estímulos táteis estacionários as pessoas os percebem como se movendo na direção oposta. A sensação de estímulos táteis em movimento também fez com que os participantes percebessem cenas visuais se movendo na direção oposta. Esses resultados indicam que o cérebro usa o mesmo sistema para processar movimentos visuais e táteis.
A percepção do tempo não é linear e pode ser manipulada em experimentos. Qualquer coisa que aconteça e receba toda a nossa atenção parece fluir mais lentamente. Há um experimento que exibe para os sujeitos de teste uma série de imagens contendo discos de cores diferentes, a maioria deles com o mesmo tamanho na tela. Todas as imagens ficam visíveis pelo mesmo tempo. Quando os discos aumentam de tamanho os observadores têm a impressão de que eles ficam visíveis por tempo maior. Uma sugestão para entender isso é a de que os discos que crescem parecem se aproximar do observador e que, evolutivamente, objetos que se aproximam merecem atenção mais detalhada.
Eagleman (veja referências) sugere um exercício: Olhando seu rosto de perto em um espelho tente alternar o foco de sua atenção entre o olho esquerdo e o direito. Há uma certa demora (mesmo que pequena) durante a troca de foco de um olho para outro mas esse intervalo não é percebido. Você não vê nada exceto sua visão pulando instantaneamente de um olho para outro. De fato nosso cérebro apaga a imagem borrada durante o movimento e, possivelmente altera sua percepção de tempo nesse intervalo.
Na descrição de Hoffman o ato de perceber requer uso considerável de energia. Cada caloria despendida nesse ato deverá ser reposta por meio de alimentação. Por mais fácil que seja na modernidade conseguir uma refeição isso não foi sempre assim. No passado era dispendioso, às vezes perigoso, conseguir sua alimentação. Por esse motivo o gasto de energia foi minimizado nas percepções e suas interpretações. Sempre que pode empregar um atalho para nos passar uma visão funcional do objeto que olhamos o cérebro o faz. Essa é a causa básica das inúmeras ilusões de óticas que encontramos, com imagens que parecem se mexer ou construções que não fazem sentido após um exame mais minucioso.
O neurocientista Donald Hoffman (The Case Against Reality) sugere uma alegoria interesssante. Um ícone em sua área de trabalho no computador não é o arquivo nem o aplicativo que ele representa. Na verdade ele está ali para simbolizar um objeto muito mais complexo que está armazenado eletronicamente em seu disco rígido. Ele guarda muitas informações e oculta a maioria delas do olhar do usuário. De fato ele oculta muito mais do que mostra, servindo como um mero atalho para que você encontre e use seu arquivo.
Da mesma forma chamamos cobra de cobra, mas isso nem de longe carrega todo o conteúdo que o animal, em si, possui. A palavra cobra não contém, por exemplo, a sequência de DNA necessária para formar o animal. Ela também não carrega o perigo e o medo que sentimos ao avistar uma verdadeira serpente. Cobra
é um ícone que, dependendo da situação, faz o indivíduo correr para se afastar do local de sua aparição. Imagine que uma pessoa esteja saindo de um riacho, em uma região com cobras em abundância, e pisa em uma corda molhada. Seus sentidos o alertam para o perigo informando que há uma cobra debaixo de seu pé. É muito mais útil tirar o pé rapidamente e se afastar do que agir filosoficamente para investigar a natureza do objeto pisado. Essa é uma forma de heurística mental, um atalho que gera um ato reflexo imediato. Nossos sentidos agem para preservar nossa vida, não para que entendamos o universo.
Por argumentos desse tipo compreendemos que nossa percepção não é uma janela para a realidade mas um atalho para a sobrevivência. Mas qualquer consideração sobre o tema seria desonesta se omitisse os fatos: (1) não sabemos sequer se existe uma realidade externa, algo se movendo fora da caverna de Platão; (2) nossa interação com seja lá o que existe
, por meio de cognição, é algo sobre o que sabemos muito pouco. Mesmo assim a discussão sobre o tema é essencial se desejamos ter alguma noção sobre a realidade objetiva.
Plasticidade Cerebral
Apesar das limitações de nossos sentidos uma grande área de pesquisa hoje explora a possibilidade de ampliar nossas percepções e da expressão de nossa consciência através de membros e sensores artificiais acoplados ao cérebro. Um experimento transforma uma imagem em pontos de pressão, aplicados sobre alguma parte do corpo. Na figura à esquerda uma matriz de pontos contendo a imagem exerce pressão sobre a testa de uma pessoa deficiente visual. Com um pouco de treino a pessoa passa a identificar objetos que são a ela expostos, como se “enxergassem” pelo tato. Embora existam regiões do cérebro especializadas em realizar uma determinada tarefa ele pode realocar recursos, se necessário, desenvolvendo uma funcionalidade onde ela não existia. É o que ocorre com pessoas acidentadas que perderam ou danificaram parte de seu cérebro e que, no entanto, conseguem superar suas limitações através da plasticidade cerebral.
O mesmo efeito se verifica nos implantes mecânicos, tais como um exo-esqueleto. Se o operador recebe um feedback (uma informação de retorno da máquina) ele pode aprender a operá-la como se fosse um de seus membros naturais. É o que explora o cientista brasileiro Miguel Nicolelis com sua tecnologia cérebro-máquina. Na Universidade de Duke, EUA, Nicolelis e seus colegas implantaram eletrodos no cérebro de um macaco capazes de controlar e receber retorno de um braço mecânico. Inicialmente o macaco usava o braço artificial para mover um joystick que movimentava uma figura em um videogame. Depois de um tempo o macaco aprendeu que bastava pensar no movimento da figura, dispensando o braço mecânico.
Na abertura da Copa do Mundo de futebol em 2014 um homem paraplégico se levantou e deu o primeiro chute na bola usando um exoesqueleto controlado por seu cérebro, como parte do Walk Again Project, um esforço colaborativo de 150 pesquisadores coordenados por Nicolelis.
Nossa vaga memória
A memória é um dos processos mais importantes na definição de quem somos e na compreensão do que vemos no mundo. Nenhum valor teriam instrumentos de percepção ultra sofisticados se não tivéssemos conhecimentos prévios sobre o que vemos guardados na memória. Sem ela teríamos que reinventar a roda a cada momento, partir sempre do zero. Na ciência, além da memória individual, é necessário estabelecer uma linguagem comum, não ambígua e de precisão, que dure muito mais que o prazo de vida de cada pesquisador.
A memória pessoal não é um fenômeno único mas sim um aglomerado de efeitos. Existe a memória de curta duração que mantemos ativa por alguns segundos, como a que usamos quando lemos um número de telefone em um anúncio e o discamos imediatamente. Também temos memória de longo prazo que são divididas em duas categorias: memória declarativa ou explícita e memória não declarativa ou implícita. Memórias não declarativas são responsáveis por hábitos e habilidades adquiridas, tais como saber manusear talheres, nadar ou andar de bicicleta. Com o uso essas habilidades se tornam automáticas e pode ser usadas com muito pouco esforço. A memoria declarativa é responsável pelo armazenamento de eventos que ocorreram em nossas vidas. Elas são também chamadas biográficas ou episódicas, contendo o conteúdo de nossas vivências e praticamente definem quem somos.
Sabemos que memórias de tipos diferentes são armazenadas em diferentes regiões do cérebro. Essas regiões foram descobertas primeiro através do estudo de pessoas que sofreram danos em partes diversas do cérebro, por doenças, acidentes ou cirurgias. Hoje os instrumentos de ressonância magnética permitem ver que partes do cérebro estão mais ativas quando o paciente é sujeito a cada tipo de experiência. Pacientes com amnésia clássica podem perder a habilidade de registrar novas memórias de curta duração e se esquecer de eventos do passado. Mesmo assim eles continuam sabendo quem são e quem são seus familiares, diferente do que acontece em um tipo de demência onde a pessoa perde a noção de sua individualidade.
Na formação de uma memória vários elementos separados são armazenados. Um evento composto de formas, cores, cheiros e emoções podem ser recapturados com muito mais facilidade que uma noção pura. Textos associados à imagens e até o estudo de coisas teóricas são melhor memorizados se associados a alguma sensação. Apesar de existir ainda muita dúvida sobre como funciona a memória, é sabido que ela não é guardada no cérebro da mesma forma que um arquivo é gravado em um disco rígido. Pelo contrário, a cada requisição de uma informação o evento que se pretende recuperar é reconstruído à partir de partes lembradas, associadas aos vários sentidos.
Considere os seguintes casos envolvendo memórias:
- Um grupo de pessoas testemunha um acidente entre automóveis. Um policial as interroga perguntando para algumas delas: (a) Qual era a velocidade do carro quando colidiram? (b) Qual era a velocidade do carro quando se esbarraram? Pessoas do grupo (b) relatam velocidades menores que aquelas do primeiro grupo. A forma em que a pergunta foi feita altera a reconstrução do evento.
- Você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”, etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
- Diversos experimentos realizados pela polícia e por pesquisadores mostram que o resultado da identificação de criminosos onde a vítima escolhe um entre uma fila de vários suspeitos é pouco confiável. Há a tendência da vítima escolher uma pessoa mal encarada, um negro em comunidades onde há muito racismo, etc. Por isso essa técnica vem sendo abandonada.
- Quando se pergunta às pessoas em diversos países: “Onde você estava quando ocorreu o ataque às Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001”, a maioria delas se lembra com detalhes de sua localização e das sensações que tiveram naquele momento. Um estresse emocional forte tende a se tornar uma boa âncora para a reconstrução de uma memória.
Os exemplos mostram que uma memória pode ser plantada com alguma antecedência ou até mesmo na hora em que se faz a pergunta. Além disso é possível termos falsas memórias, quando partes de uma memória verdadeira se conectam incorretamente, levantando um quadro falso do que aconteceu. É esse o caso quando você julga que foi o protagonista de uma evento que, na verdade, foi relatado por uma terceira pessoa.
Outro exemplo comum é de pessoas que passaram por situações traumáticas e que buscam apoio em terapias de recuperação de memórias reprimidas. Em alguns casos se mostrou que as memórias recuperadas não passavam de sugestões, algumas vezes do próprio terapeuta, sonhos ou imaginação do paciente. Uma memória falsa pode ter o mesmo efeito de uma verdadeira, inclusive despertando felicidades, tristezas e até traumas. O cérebro reage de forma parecida, senão igual, a memórias de experiências vividas ou imaginadas, da mesma forma que fazer exercícios físicos ou pensar neles estimula as mesmas partes do cérebro.
Finalmente, nossas memórias podem, e são, reajustadas para fazer sentido ou afirmar as narrativas que temos de nós mesmos ou de eventos que presenciamos. O caso clássico são de pessoas que estiveram em coma por um tempo, sem atividade cerebral, mas acordam se lembrando de experiências fora do corpo, em algum tipo de céu religioso, etc.
Concluindo
Procurei argumentar que faz sentido o que foi proposto em Vieses de Cognição e artigos subsequentes:
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Por isso:
- Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
- Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
- Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Claro que essa discussão não esgota o assunto e apenas indica uma direção a ser considerada. Dessas considerações se conclui pela necessidade de uma atitude de ceticismo, a ser explorada no próximo artigo.
Bibliografia
- Shaw, Julia, The Memory Ilusion, Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory, Penguin Random House, New York, 2016.
- Hoffman, Donald: The Case Against Reality; Why Evolution Hid the Truth from Our Eyes, WW Norton and Co., New York, 2019.
- Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
- Novella, Steven at all: The Skeptics Guide to the Universe. Grand Central Publishing, New York, 2018.
- Site BrainFacts.org, Speert, D.; Sensory Ilusions, acessado em maio de 2020.
- Site David Eagleman; Brain Time, acessado em maio de 2020.
- Site David Eagleman; Sensory Substitution, acessado em maio de 2020.
- Site David Eagleman; Time Perception, acessado em maio de 2020.
- PNAS; Kim, I; Hong, S., Shevell, S., Shim W.: Neural representations of perceptual color experience in the human ventral visual pathway, Resumo e Abstract acessado em maio de 2020.
- Youtube, Elizabeth Loftus: How reliable is your memory?, acessado em junho de 2020.
- Youtube, Eleanor Maguire : The Neuroscience of Memory, acessado em junho de 2020.