Introdução e Conclusão
Nosso mecanismo de percepção, incluindo os órgãos sensórios e de processamento das informações obtidas, é sofisticado e muito eficiente. Mas não é perfeito. Diversas falhas são conhecidas e é útil conhecermos seus efeitos. Essas falhas afetam nossa forma geral de ver e compreender o mundo, mas também de ver a nós mesmos, as outras pessoas e nossa relação com elas.
Pretendemos aqui explorar os argumentos que indicam as seguintes conclusões:
- Não podemos confiar no que vemos, ouvimos ou percebemos por qualquer de nossos mecanismos sensoriais.
- Não podemos confiar na interpretação que fazemos dessa captação sensorial.
- Não podemos confiar na memória que temos dessas experiências e da interpretação que delas obtivemos.
Em seguida, dentro da suposição de que queremos conhecer as coisas com algum grau de confiança, pretendemos argumentar que existe uma forma de contornar, em algum nível, essas limitações. Ela consiste em analisar o próprio mecanismo, algo que vem sendo chamado de metacognição. Além disso, de muitas formas diferentes, o método científico foi desenvolvido para anular (ou minorar) o efeito do erro cognitivo e nos permitir um vislumbre de como funciona a natureza.
Para efeito de discussão é praxe se estabelecer uma distinção entre órgãos sensoriais, dos quais os mais óbvios são a visão, audição, tato, olfato e paladar, e nosso mecanismo de processamento dos dados que obtemos por meio deles. Esse processamento ocorre principalmente no cérebro com seu poder de análise e memória. No entanto a divisão não é perfeita pois nosso cérebro se ajusta à limitação dos sentidos. Não conseguimos pensar em quatro dimensões porque só vemos duas (e calculamos uma terceira). Não podemos planejar um ato ou movimento que nosso cérebro sequer possa imaginar. A metáfora do cérebro como um computador composto de hardware e software pode ser útil até um ponto mas quebra quando pensamos que o cérebro tem plasticidade e se modifica de acordo com o conteúdo a ele apresentado. Naturalmente um cérebro ampliado pode ter pensamentos ampliados e essa dinâmica não tem fim. A modificação dos sentidos também age sobre a capacidade de processamento. Em nós, hardware e software se confundem.
O que é Viés de Cognição?
Apesar da complexidade e eficiência de nosso cérebro, com frequência ele toma atalhos para responder mais rapidamente à demandas do cotidiano. Por exemplo, no passado remoto, nas savanas, o movimento de folhas e barulho de passos deveria ser rapidamente interpretado como a aproximação de um animal perigoso que exige a postura de defesa ou fuga. Essa é uma característica evolutiva pois indivíduos “corajosos” certamente eram mortos mais cedo por predadores.
Uma forma clara de percebermos essas “imprecisões” nos sentidos está nas ilusões óticas, imagens fixas que parecem se mover ou que mostram coisas totalmente diferentes dependendo como se olha. Mágicos compreendem bem esse efeito e se utilizam dele para realizar suas façanhas. Eles sabem, por exemplo, que nossos olhos não conseguem gerar imagens nítidas de objetos em movimentos. Se olhamos fixamente para o rosto do mágico não conseguimos ver o que ele faz com as mãos em movimento.
Parte do problema está em que tudo o que vemos (ou ouvimos, etc) é construído no cérebro e não uma mera imagem objetiva do mundo exterior. Muitos exemplos interessantes podem ser listados: possuímos um mecanismo de identificação de fisionomia, algo como um aplicativo interno que reforça traços no rosto das pessoas para que as identifiquemos. Um prova disso é o efeito de pareidolia que é a tendência de ver rostos e formas humanas em manchas, nuvens e borrões. Se você olha para um lado da sala onde está, e move rapidamente os olhos para o outro lado, você não deixa de ver a sala durante o movimento dos olhos. No entanto, fisicamente essa imagem está borrada pelo efeito do movimento. Nosso cérebro consegue apagar a imagem borrada e substituí-la por outra da sala que é calculada e montada à partir de memórias que temos do ambiente.
O conceito de viés de cognição foi proposto por Amos Tversky e Daniel Kahneman em 1972. Depois deles muitos pesquisadores estudaram e descreveram tipos diferentes de vieses que afetam nossa percepção e análise das coisas e capacidade de decisões e julgamentos em questões diversas como no comportamento social, financeiro econômico, na educação, etc.
Você já se perguntou a razão de as lojas colocarem preços fracionários em seus produtos. Que diferença faz um item de mercado a R$39,99 ou R$40,00? Em compras desse tipo quantas vezes você recebeu 1 centavo de troco? Ocorre que temos uma tendência de nos balizar pela análise do primeiro dígito à esquerda. Esse atalho, que economiza o cérebro de um processamento mais dispendioso, pode ser útil algumas vezes mas gera essa prática exploratória comum do consumidor, simples, ingênua mas efetiva, em alguns casos.
Todas as pessoas estão sujeitas a erros por viés de cognição. Ele ocorre, por exemplo, quando você só aceita ler artigos em jornais ou assistir vídeos ou canais de TV que concordam com você, ou só considerar novidades que apoiam sua visão de mundo. Ele ocorre quando você aprende um pouco sobre algum tópico e já se considera um especialista na área (o Efeito Dunninham-Krueger).
Algumas formas de vieses de cognição são listadas a seguir. Mais tarde analisaremos alguns deles com maiores detalhes.
Cherry picking, ou escolher a cereja do bolo, é uma forma sutil de fazer isso. Você entra em contato com um volume grande de informações mas só registra aquelas que te interessam. Você lê um livro recheado de informações polêmicas mas recolhe e registra apenas aquelas que interessam ao seu alvo intelectual, ideológico ou de fé.
Viés de ancoragem é a tendência de atribuir maior confiança às primeiras informações que você recebe. Por exemplo, alguém te informa que o preço médio de um carro é de um determinado valor (e a informação pode estar certa ou não). Se encontrar ofertas abaixo dessa esperada você julgará que o ítem está com ótimo preço. Esse viés é usado na propaganda que coloca em primeiro lugar os preços mais altos.
Viés de atenção é a tendência de focar sua atenção em alguns aspectos e ignorar outros. Ao procurar um carro para comprar você se preocupa apenas com a aparência e ignora todos as outras características que dão valor (ou depreciam) o item. Associada a esse viés as pessoas costumam dar mais valor àquelas coisas de que se lembram mais facilmente. Por exemplo, após o atentando ao World Trading Center em 11 de setembro de 2001, os americanos passaram aproximadamente um ano se recusando a viajar de avião. Mortes causadas por acidentes com automóveis em estradas de rodagem superaram muitas vezes o número de mortes no atentado. Humanos são notórios pela sua imprecisão em avaliar riscos.
O efeito do falso consenso é a tendência de superestimar o quanto as pessoas concordam com você. Ele está associado ao cherry picking e ao viés de confirmação (de que já trataremos). Humanos são seres altamente sociais e precisam de se sentir aceitos e acolhidos. Para isso tendem a se agrupar por interesses comuns e convergência de opiniões, facilmente adaptando suas próprias opiniões às do grupo. Um escrutínio mais rigoroso pode mostrar que o grupo não é tão uníssono como parece.
A Fixação funcional é a tendência de ver os problemas sob a ótica única das ferramentas que você possui. “Para quem só tem um martelo, todo problema se parece com um prego” (Abraham Maslow). Alguém que domine o conhecimento da teoria evolucionária pode tender a julgar que apenas ele á necessária para explicar todas as situações do mundo moderno.
O Efeito Halo ou da impressão difusa faz com que você julgue todo um indivíduo (ou situação) baseado na sua impressão geral sobre ele (ou ela). Isso acontece, por ex., quando você conhece uma pessoa bonita e simpática, e a considera honesta e confiável, ou um homem vestido com um terno elegante e com uma fala convincente entra com facilidade em um banco para assaltá-lo. É impressionante a quantidade de efeitos sociais importantes, como na discriminação de raça, onde uma mera primeira impressão pode determinar comportamentos.
O Efeito de desinformação é a tendência de que informações que circulam após um evento modificam completamente a memória do evento original. Nossa memória é facilmente influenciada pelo que ouvimos de outras pessoas. Por isso as pessoas que presenciaram um crime não devem conversar entre si antes de prestarem depoimento à polícia. O mesmo fenômeno faz com que informações de testemunhas oculares esteja em descrédito nos dias de hoje.
Há uma história clássica sobre esse efeito: você está na fila de um banco quando três pessoas encapuçadas entram, ordenam que todos deitem no chão e assaltam os caixas, fugindo em seguida. Após o evento todos, naturalmente nervosos, conversam entre si. E dizem: “você viu que tinha um homem barbudo, dando proteção aos assaltantes”. “Havia duas mulheres”. “Algumas pessoas na fila eram cúmplices”. Etc. Quando a polícia chega ouve relatos incongruentes, alguns contando com a presença de 20 ladrões fortemente armados e mal encarados…
O Viés de otimismo faz com que as pessoas acreditem que nunca serão vítimas de infortúnios e/ou possuem maior probabilidade de sucesso que os demais. É o caso da pessoa autoconfiante que acha que nunca será infectado por uma doença contagiosa que assola sua região.
Ilusão de controle é a tendência que as pessoas têm de superestimar a própria habilidade em controlar alguma coisa ou situação que, na verdade ocorrem independente dela. Os psicólogos sugerem que essa tendência influencia as pessoas em seus hábitos de apostar e na crença do paranormal. Uma pessoa pode julgar que é capaz de controlar um resultado que, em princípio, é aleatório, ou provocar a cura de um doente com práticas mágicas ou orações. Parte, pelo menos, do comportamento ritualístico pode ser explicado por meio desse efeito. Uma pessoa usa sempre a mesma camisa quando torce para seu time de futebol acreditando que, se essa atitude funcionou um dia, ela poderá funcionar sempre. Junto com o viés de confirmação essa tendência pode determinar fortemente o comportamento irracional de um indivíduo. Em um experimento as pessoas testadas assistiram um jogador de basquete tentando encaçapar a bola em arremessos livres. Quando se pediu aos sujeitos testados para torcer, visualizando a bola ser encestada eles relataram sentir como se tivessem participação para o sucesso do jogador.
A maldição do conhecimento é a tendência de considerar simples um assunto que já é dominado. Um professor, depois de anos estudando e ensinando um tema acha estranho que os alunos demorem tanto a entender o que ele está dizendo, o que para ele parece óbvio. Um exemplo pode ser visto na brincadeira infantil onde uma pessoa cantarola mentalmente uma música conhecida apenas marcando o ritmo com batidas, enquanto a outra pessoa tenta descobrir qual é a música. Para quem sabe, a canção usada parece muito óbvia, enquanto o outro tem dificuldades em adivinhar.
O efeito Barnum ou Forer é um fenômeno psicológico comum no qual indivíduos consideram altamente precisas descrições genéricas de suas personalidades. É possível descrever genericamente uma personalidade, geralmente em termos elogiosos e agradáveis, de forma a satisfazer um grande números de indivíduos que consideram que o texto foi escrito a seu respeito. Esse efeito fornece uma explicação, pelo menos em parte, para a ampla aceitação de práticas como astrologia, leitura fria ou de aura e alguns de testes de personalidade. O mágico inglês Derren Brown realizou várias reuniões com pessoas de diversos países sob a alegação de que faria um mapa astrológico dos participantes. Quando recebiam seus mapas as pessoas, em sua absoluta maioria, declaravam estar muito satisfeitas com a descrição de suas personalidades. Depois o mágico pedia a elas que trocassem seus mapas. Com muita surpresa os participantes descobriam que apenas um texto foi distribuído para todos.
O efeito placebo é a reação de pessoas que sentem melhoras após serem tratadas com um falso medicamento, desde que acreditem estar tomando medicamento real. Esse efeito é tão importante que a industria médico-farmacêutica precisa comparar a eficácia de seus novos medicamentos com a de placebos, geralmente pílulas de farinha ou açucar. A experiência clínica indica, que quanto maior o comprimido e quanto mais amargo, maior será seu efeito. Comprimidos grandes, triangulares ou de cores intensas funcionam melhor que pílulas pequenas, de formato comum e sem cor. Tratamentos complexos, envolvendo máquinas, correntes elétricas ou aparatos tecnológicos funcionam melhor do que uma simples massagem, a menos que o paciente atribua ao massagista ou terapeuta algum dom ou virtude extraordinária. É muito bem conhecido o efeito terapêutico sobre pacientes que recebem uma visita atenciosa de seu médico. Você pode ler mais sobre placebos nesse site.
Existem, é claro, muitos outros fenômenos que mostram a natureza enviezada de nossa percepção. Dois seles serão tratados em seguida com um pouco mais detalhamento devido à sua importância direta em nossas vidas. Eles são O efeito Dunning-Kruger que é a dificuldade das pessoas reconhecerem seu nível de expertise ou ignorância sobre um assunto, e o Viés de confirmação, o favorecimento de informações que apoiam e sustentam nossas crenças, ignorando evidências contrárias a elas.
Uma deficiência muito forte de nosso mecanismo geral de percepção e entendimento das coisas está em nossa incapacidade para lidar e compreender o acaso e aleatoriedade. Já incluímos aqui um artigo sobre o assunto: Acaso e Percepção Extrassensorial.
Vieses de cognição possuem uma associação estreita com as falácias lógicas, embora não sejam o mesmo fenômeno. Falácias são erros lógicos usados no pensamento sobre alguma questão e podem ser expostos por uma análise racionalmente precisa dos argumentos. O exposição dos vieses de cognição exige pesquisa controlada. Provavelmente uma cognição imperfeita induza a erros lógicos. Leia nesse site: Falácias Lógicas.
Esse artigo será continuado. Se inscreva no site para receber nossas notícias.
Bibliografia
- Ellenberg, Jordan: How Not to Be Wrong, the power of mathematical thinking . The Penguin Press, New York, 2014.
- Verywell Mind; What Is Cognitive Bias?, acessado em maio de 2020.
- Verywell Mind; Ways your brain plays tricks on you, acessado em maio de 2020.
- Wikipedia; List of Cognitive Biases