Teoria da Evolução

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“Imagine que você é um professor de história romana e língua latina, ansioso por transmitir seu entusiasmo pelo mundo antigo… No entanto, você percebe que seu precioso tempo é continuamente consumido e a atenção da classe distraída por um bando de ignorantes que, com forte apoio político e financeiro, percorrem as salas de aula tentando convencer os alunos de que os romanos nunca existiram. Nunca houve um império romano. O mundo inteiro começou a existir pouco antes do que conseguimos nos lembrar. O espanhol, italiano, francês, português, catalão, ocitano e romanche, todas essas línguas e seus dialetos surgiram espontaneamente, isoladas umas das outras e sem nada dever ao latim, como seu antecessor”.
–Richard Dawkins
A lamentação de Adão e Eva, Igreja Ortodoxa de São Nicolau

Com essas palavras o biólogo Richard Dawkins expressa seu desalento com uma tendência moderna importante que consiste no negacionismo científico. Ela tem muitas vertentes mas, provavelmente, a mais antiga e mais ferrenha consiste na recusa em aceitar a teoria da evolução com base em argumentos religiosos ou meramente emocionais. Temos muitos exemplos de ocorrências parecidas na história da ciência. Quando Galileu Galilei, baseado nas observações de Kepler e Copérnico, apresentou a sugestão de que nosso planeta não ocupa um lugar privilegiado no cosmos, em torno do qual giram todos os astros, mas é um astro como bilhões de outros, ele sofreu forte rejeição da comunidade e, principalmente, da igreja. Da mesma forma foi difícil (e continua sendo, para muitos) compreender que seres humanos são animais e suas origens são as mesmas que as de macacos (nossos primos próximos) e peixes (primos mais distantes). De fato a teoria da evolução faz afirmativas extraordinárias, que podem ser difíceis de aceitar, entre elas a de que quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum. É claro que afirmações extraordinárias precisam de provas extraordinárias.

Cabe a pergunta: elas existem?

árvore da vida

“As afinidades de todos os seres da mesma classe foram às vezes representadas por uma grande árvore. Eu acredito que esse símile fala em grande parte a verdade.”
 
“Quaisquer dois indivíduos vivos na planeta hoje partilham de um ancestral comum”.
Charles Darwin

 
Na imagem o primeiro esboço da “árvore da vida” no caderno de Darwin, 1837.

Não é possível hoje ter um bom entendimento da biologia sem compreender a evolução. Sequer se poderá entender muito do que está envolvido na elaboração de medicamentos e suas consequências, na vacinação, no transformação de organismos em face aos desafios que enfrentam, no surgimento das superbactérias, etc.

O que é a Teoria da Evolução?

A observação da natureza mostra que existe uma grande riqueza na variedade de espécies espalhadas pela terra e que cada uma delas mostra uma adaptação perfeita (ou quase perfeita) ao ambiente onde vivem. Animais que são predados por outros animais velozes possuem também pernas velozes ou outro mecanismo de escape tais como o disfarce ou capacidade de se esconder. Plantas com flores possuem cheiros e cores atrativas para pássaros ou insetos que as auxiliam no processo reprodutivo. Temos a impressão de observar uma máquina sofisticada que, por analogia com outras máquinas conhecidas, devem ter sido projetadas e construídas de forma deliberada e inteligente.

Charles Darwin

Na descrição do filósofo inglês do século 18, William Paley, se encontramos no chão e examinamos um relógio, veremos que ele possui peças delicadas, harmoniosamente construídas para funcionar de um certo modo e atingir um objetivo. Concluímos logo que esse relógio dever ter sido construído por um relojoeiro hábil. Da mesma forma supomos que a complexidade da natureza tem um autor, supostamente Deus. A ideia vai de encontro ao pensamento bem estabelecido das religiões e mitologias que sempre buscaram encontrar explicações e razões para a existência.

A Teoria da Evolução tem outra sugestão, uma explicação alternativa. Ela deve ser considerada como uma hipótese até que se mostre que ela descreve bem as coisas observadas na natureza e, ainda, apresenta predições de coisas ainda não observadas e que podem ser confirmadas. Se tudo isso for obtido a hipótese ganha novo patamar de credibilidade e passa a ser considerada uma teoria. Exatamente isso aconteceu com a teoria de Darwin que é hoje considerada uma das maiores conquistas do conhecimento humano, ao lado de teorias como a relatividade de Einstein e muitas outras.

Assim como aconteceu com Einstein, Darwin não tirou do nada a sua teoria mas se embasou sobre o trabalho de outros pensadores, inclusive de seu avô Erasmus que já propunha o conceito de uma natureza em evolução. Darwin foi o primeiro a usar dados coletados no mundo natural para embasar a afirmação de que a natureza está em constante transformação, e o primeiro a propor o mecanismo da seleção natural como responsável pela sofisticação e detalhamento hoje observados. Em seu livro A Origem das Espécies, 1859, ele conseguiu estabelecer uma base científica para se discutir a variedade dos seres na terra e as origens dos humanos.

Considere um grupo de seres que vivem um uma região restrita do planeta. Digamos que seja formado por pequenos ratos de cauda longa, predadores de insetos e mamíferos menores, e predados por aves de rapina. Definimos como pool genético o conjunto de genes de toda essa população. Existe uma certa variância nesse pool, uma vez que os ratos são ligeiramente diferentes uns dos outros. Como sabemos os genes são os responsáveis pelo armazenamento dos dados de construção dos indivíduos, os transportadores da hereditariedade entre pais e filhos. No entanto os genes não são invariantes: eles se transformam por meio de mecanismos diversos, sejam eles internos, como falhas de duplicação do DNA, ou externos, como influência de elementos químicos, radiação ou ação de vírus. Essas mutações são aleatórias, podendo introduzir uma melhora de performance no indivíduo, pernas mais fortes, talvez, ou causando a sua morte (como no caso de câncer). Os genes mutados são passados para os filhos se os pais sobreviverem até a idade de procriação, alterando o pool genético.

Estas mutações podem ser radicais, causando o nascimento de filhos muito diferentes dos pais, ou serem pequenas, produzindo filhos bastante semelhantes aos pais. Alterações radicais tendem a não prosperar, matando rapidamente o indivíduo. Alterações mais suaves podem trazer vantagem, como melhor velocidade de escape na fuga de um predador, ou maior competência para a captura de seu alimento. Mas também podem trazer desvantagens: indivíduos muito lentos podem ser capturados antes mesmo de se reproduzir. Uma alteração possível seria a de novos ratos nascendo com caudas mais longas. Se isso facilitar a sua captura pelos predadores, as aves de rapina, então a comunidade veria uma lenta transformação em direção à ratos de caudas mais curtas. Por outro lado o meio ambiente também faz demandas de ajustamento. Se o clima começa a ficar muito frio os ratos de pelos compridos são favorecidos enquanto aqueles de pelos curtos podem não suportar o frio e morrerem antes da idade de procriação.

Resumindo, a evolução tem dois elementos básicos: a alteração lenta dos indivíduos provocadas por mudanças aleatórias em sua genética, e a seleção natural que faz prosperar alterações favoráveis à sobrevivência dos indivíduos. A seleção natural nada tem de aleatória. Ela filtra as modificações dos indivíduos favorecendo aqueles melhor adaptados ao ambiente.

Imagine em seguida que uma barreira natural surja separando fisicamente a comunidade dos ratos. Ela pode ser, por exemplo, o surgimento de uma cadeia de montanhas intransponível bem no meio da região onde moravam os primeiros roedores, dividindo em dois o grupo original. De um lado a dieta fica inalterada. Do outro apenas insetos voadores estão disponíveis fazendo com que alterações genéticas que favorecem ratos saltadores sejam preferidos pela seleção natural. Com o tempo as duas comunidades começam a divergir, podendo ficar tão diferentes que nem mais possam acasalar entre si. Nesse caso terá surgido uma nova espécie.

Essa descrição, apesar de simplista, ilustra o mecanismo da evolução proposto por Darwin. Não se conhecia na época a genética e como ela é responsável pela transmissão de características entre pais e prole. A descrição, inicialmente apenas uma hipótese, passou pelo teste da confirmação do que se observa na natureza e fez diversas predições sobre coisas que deveriam ser observadas, e de fato foram!

É um erro comum pensar que a evolução tem um propósito, uma direção preferencial. Pior erro é considerar que a humanidade é, de alguma forma, o ápice da evolução ou que todo o processo se deu para a geração de humanos.

A teoria de Darwin não trata de como a vida surgiu. Mas, considerando que temos hoje no planeta Terra uma grande variedade de seres, e que todos eles usam o mesmo mecanismo genético de carregar informações entre as gerações (que usam o código digital de quatro dígitos, que denominamos GCAT) é válido se propor que toda a vida partiu de um único ancestral comum.

Falácias Lógicas

Você já deve ter notado que as pessoas, em geral, não estão muito preocupadas com a consistência lógica de suas argumentações quando debatem. Isso provoca desperdício de esforço e tempo, pelo menos quando os envolvidos estão interessados em atingir alguma conclusão sincera. É fácil perceber que nem sempre o maior empecilho é lógico. Interações humanas são complexas e envolvem mais do que mero rigor lógico. De qualquer forma é útil compreender quais são as formas de se argumentar e quais são os erros mais comuns neste campo.

Na era da comunicação facilitada pela internet o debate vem perdendo rigor e sendo dominado pela parcialidade, partidarismo, rejeição e ódio entre grupos rivais. Existem muitos motivos, além dos lógicos, para que uma pessoa defenda apaixonadamente um ponto de vista. Ela pode ter se identificado pessoalmente com o argumento, por uso continuado, por tradição ou porque o considera útil para si ou seu grupo social. Pessoas constroem autoimagens baseadas em suas crenças e se sentem atacadas ao verem em disputa aquilo que tanto prezam. Pode ocorrer que alguém se apegue a um conceito durante a argumentação, e brigue por ele, para preservar sua autoestima ou consolidar sua posição como bom debatedor.

Seja qual for a causa geradora de falhas em um debate sempre é útil aprender a formalizar o raciocínio, entender um pouco de lógica ou a falta dela. Isso nos ajuda a manter a clareza de pensamento e sua expressão. Saber analisar argumentos de outras pessoas também nos ajuda a entendê-las, aceitando suas propostas ou as rejeitando quando necessário.

Introdução

Todos os argumentos têm a mesma estrutura básica: Se \(A\) então \(B\) onde \(A\) e \(B\) são afirmações. \(A\) pode ser formado por uma ou várias premissas, um fato ou suposição usado para a construção do argumento. Às premissas se aplica um tratamento lógico (então) para chegar a \(B\), a conclusão.

Exemplo:
  • A equivalência é um princípio lógico. Se usamos como premissas que \(A = B\) e \(B = C\), usando o princípio lógico da equivalência, concluímos que \(A = C\).

Uma falácia lógica é a aplicação incorreta de um princípio lógico. Um argumento baseado em uma falácia não é válido. Se as premissas são verdadeiras e a lógica é válida então a conclusão é válida. Premissas falsas, mesmo com lógica válida, levam a um argumento inválido, ainda que a conclusão esteja correta. Se todas as premissas são verdadeiras e a conclusão obtida é falsa então ocorreu um erro na argumentação, uma falácia lógica.

Defender a veracidade de uma afirmação é mostrar que as premissas são verdadeiras e a argumentação é válida. Refutar uma afirmação é mostrar o oposto: que as premissas são falsas ou a argumentação é falaciosa, ou ambos estão incorretos.

Evidentemente o exame das premissas é o primeiro passo em qualquer argumentação. De nada adianta prosseguir em uma longa série de raciocínios se as premissas estão incorretas. Premissas podem ser falsas, podem não ser sólidas (carregar dúvidas) ou serem apenas expectativas dos debatedores, algo que não podem ser mostrado ou inferido à partir do que se sabe.

Não é raro que um debatedor escolha apenas as premissas adequadas ao seu argumento, ignorando as desfavoráveis. Muitas vezes a conclusão esta decidida antes do debate e as premissas são escolhidas “a dedo” (cherry picking, em inglês) para alcançar a meta desejada. Portanto é uma boa prática identificar quais são as premissas usadas, verificando se há consenso entre os debatedores de elas estão corretas. Não é incomum a definição de premissas restritivas “para efeito do argumento”. Deve-se, no entanto, lembrar que as conclusões daí obtidas também sofrem das mesmas restrições iniciais.

Também existem as premissas ocultas, tratadas adiante. Elas tornam mais difícil o exame do argumento. Um desentendimento baseado em uma premissa não declarada não terá solução até que ela seja exposta com clareza.

Exemplos:
  • Um criacionista (alguém que rejeita a teoria da evolução) afirma: “Não posso crer na teoria de Darwin porque não existem ‘elos perdidos’ no registro fóssil”.
  • “Não aceito que as mulheres sejam tratadas como homens no mercado de trabalho. Mulheres são seres delicados que devem se dedicar à criação de seus filhos”.
Darwin

O “elo perdido” é uma referência a um fóssil meio humano meio macaco que provaria a evolução gradual de um animal ancestral parecido com um macaco moderno até seres humanos. No entanto antropólogos encontram toda uma série de fósseis mostrando a mudança gradual entre essas (e outras) espécies. A recusa em aceitar essa evidência está em uma premissa oculta (até que seja declarada) na crença religiosa da criação instantânea dos humanos e de todos os seres. No segundo caso é frequente o debatedor estar se baseando na premissa oculta de homens e mulheres possuem papéis fixos, determinados pela religião e pela tradição.

As duas argumentações citadas não podem levar a conclusões válidas, nem a favor e nem contra, apenas com os elementos citados. E certamente nunca chegarão a lugar algum se as premissas ocultas, que podem ser verdadeiras ou falsas, não forem declaradas e justificadas. Em ambos os casos o debate deve ser trazido para níveis mais básicos, na discussão das próprias premissas usadas.

Nossos cérebros, apesar de espetaculares, não estão livres de falhas. Pelo contrário, eles contém erros (ou bugs) conhecidos. Um exemplo desses bugs é a nossa tendência de usar atalhos de pensamento, instrumentos úteis na vida cotidiana mas que podem ser um empecilho quando tentamos ser racionais. Muitos desses processos foram acumulados evolutivamente. Por exemplo, um homem primitivo na savana pode julgar que uma folha em movimento indica a aproximação de um animal perigoso. Vale mais a pena fugir do que ir em busca da verdade.

Além disso não somos compostos apenas por partes lógicas. Humanos necessitam estar em grupo e a adesão à um conceito ou crença é parte essencial da formação desses grupos. Há quem argumente, por exemplo, que a religião foi o único instrumento com força suficiente para agregar populações enormes como as que hoje vivem nas grandes cidades. Você pode mudar de ideia para agradar sua família ou seu parceiro, sem nenhuma consideração lógica.

As falácias lógicas listadas não são independentes. Algumas delas são facetas ou variações de outra falácia. Elas podem ocorrer em grupos, mais de uma falácia na mesma argumentação. A lista que se segue não é exaustiva.

Non sequitur

A expressão latina non sequitur significa não decorre de. É a expressão genérica de uma falácia, da conclusão que não pode ser obtida logicamente das premissas. Afirmações totalmente desconexas são exemplos de non sequitur.

Exemplos:
  • “Minha primeira professora de piano era extremamente nervosa. Todas as professoras de piano são nervosas”.
  • “Sempre vejo meu vizinho com seu cachorro quando saio para caminhar. Acho que ele só caminha quando eu saio.”

Praticamente todas as falácias induzem a um erro do tipo non sequitur. Alguns autores recorrem a essa definição quando a falácia não se encaixa em nenhuma outra bem definida.

Ao homem

A falácia de ad hominem costuma ser mencionada por seu nome em latim e consiste no ataque à quem profere uma afirmação em vez de discutir o mérito da afirmação. Ela tem a intenção de desviar o foco da discussão desacreditando o oponente.

Exemplo:
  • “Você não pode afirmar nada sobre o regime militar de 1964 porque não é um historiador”.
  • “Pessoas céticas não acreditam que OVNIS (objetos voadores não identificados) vêm de outros planetas porque têm a mente fechada”.

Por mais que seja útil ouvir o relato de um historiador sobre eventos do passado, o fato de alguém não ser historiador não invalida suas afirmações no tema. Ele pode ter estudado o assunto ou simplesmente retirado a afirmação de alguma fonte válida, e pode até ter acertado por sorte. Atribuir a descrença sobre a origem extraterrestre de OVNIS à deficiência de quem não quer acreditar é outro exemplo.

De qualquer forma, diminuir o mérito de alguém para derrotá-lo em um debate consiste em ad hominem ofensivo. Também existe um segundo tipo, o ad hominem circunstancial, que ataca a argumentação questionando a motivação de quem debate.

Exemplos:
  • “O prefeito tomou medidas para diminuir a taxa de espalhamento da doença contagiosa na cidade, mas ele apenas quer agradar seu eleitorado e ser reeleito”.
  • A: “Não posso dar emprego a esse candidato porque desconfio de sua integridade. Por que ele foi demitido de seu último emprego”?
  • B: “Você não está qualificado para avaliar o candidato pois só mantém seu emprego por ser parente do patrão”.

Independentemente da motivação do prefeito as medidas tomadas devem ser avaliadas por seus méritos. Ataques ad hominem podem desviar o foco do debate e levar a uma mera troca de acusações.

Como em outros casos de falácias pode ser difícil saber se o argumento empregado tem ou não relevância no contexto da discussão. Um insulto ao oponente não representa, em si, um ad hominem se não for usado como meio de chegar a uma conclusão. O importante é que o argumento não é suficiente para que as partes cheguem a uma decisão. Existem casos, como em um depoimento judicial, em que podem ser extremamente importantes atacar ou defender a credibilidade de quem levanta uma argumentação.

Apelo à hipocrisia

A falácia do apelo à hipocrisia, tu quoque ( que significa: você também) ocorre quando, ao invés de considerar argumentos, o debatedor aponta alguma contradição entre o que a pessoa está defendendo e suas ações ou afirmações prévias. O objetivo é de desviar a atenção do mérito da argumentação, apontando para uma suposta incoerência do adversário. Essa falácia é também uma modalidade de ad hominem.

Exemplo:
  • “Você defende o socialismo mas usa um iPhone”.
  • A: “Se você tratar seus colegas de trabalho com cordialidade você será bem tratado por eles”.
    B: “Mas você é muito grosseiro com seus subordinados”.
  • A: “O cristianismo é bom porque estimula as pessoas a serem melhores em sua vida”.
    B: “Você não poderia afirmar isso porque é um péssimo pai e marido”.

Se a alegação de incoerência for falsa e inventada ela representa apenas um ataque gratuito que pode ter outras consequências além da perversão do debate. Mas, mesmo que seja verdadeira, ela não é uma argumentação válida pois é perfeitamente possível que uma pessoa incoerente esteja dizendo algo válido.

Culpa por associação

A culpar por associação consiste na tentativa de invalidar um argumento porque ele está associado a uma pessoa, ou grupos de pessoas, consideradas de má reputação por quem argumenta.

Exemplos:
  • “O presidente Obama queria estabelecer um sistema de saúde nos EUA semelhante ao de países socialistas, o que é inaceitável”.
  • “Mulheres não deveriam ter permissão para dirigir, como acontece nos países não muçulmanos.”
  • “O catolicismo está desacreditado no mundo porque Hitler era católico.”

O projeto de Obama para o sistema de saúde poderia ser bom (ou não) independente de ter sido o modelo adotado em alguns países socialistas. É um exemplo claro de non sequitur. A conclusão não é consequência lógica da premissa. O segundo exemplo é usado em países islâmicos que, com frequência, buscam se distanciar do comportamento ocidental. Claro que a argumentação só pode ocorrer entre pessoas que concordam com a premissa. Caso contrário ele seria um contra-argumento.

Uma forma de se conseguir aderência mais ampla para a argumentação é usar premissas universalmente (ou quase) aceitas, tais como a rejeição à Hitler e o nazismo.

Apelo às consequências

Uma afirmação pode ser verdadeira mesmo que, em decorrência dela, coisas desagradáveis possam ocorrer ou que tenhamos que concluir coisas de que não gostamos. Da mesma forma as consequências positivas de uma proposição não implicam que ela seja verdadeira. Defender ou refutar um argumento apelando para as suas consequências é uma falácia lógica comum. Reagimos com esperança às proposições com consequências positivas e com temor quando elas são negativas. Nada disso tem poder para tornar uma argumentação verdadeira ou falsa. A falácia do apelo às consequências (argumentum ad consequentiam) pode ser reconhecida como uma pista falsa ou manobra de distração (algo que nos alerta para um problema nos argumentos usados), porque desvia a atenção da proposição original para as consequências que ela gera.

A falácia pode assumir as seguintes formas:

  • Uma proposição é considerada falsa porque, se fosse verdadeira, implicaria ou causaria algo ruim, imoral ou indesejável (subjetiva ou objetivamente).
  • Uma proposição é considerada verdadeira pois, assim sendo, ela implica ou gera algo bom, desejável e moral (subjetiva ou objetivamente).

Muitas vezes essa falácia é também um apelo aos sentimentos.

Exemplos:
  • Historicamente a Teoria da Evolução de Darwin levou à políticas de eugenia. Logo a Teoria da Evolução é falsa.
  • Acreditar em Deus torna as pessoas mais caridosas (ou mais felizes), logo Deus existe.
  • Se a gravidade existe uma queda de um local alto pode machucar ou matar. Logo a gravidade não existe.
  • Uma política de redução dos gases que causam aquecimento global teria um custo alto para a economia das países. Logo esses gases não afetam o clima.
  • A alma humana é imortal, caso contrário não haveria motivo para viver.
  • Se Deus não existisse as pessoas seriam todas assassinas.

O espantalho

A falácia do espantalho consiste em desvirtuar o argumento do seu debatedor para torná-lo mais fácil de atacar, tornando-o uma caricatura deformada (o espantalho) que contém apenas aspectos desfavoráveis ou simplesmente mentirosos. Esse é um tipo de desonestidade intelectual que prejudica a racionalidade do debate. Ela conta com a ingenuidade e ignorância de quem ouve e, quando compreendida, deveria minar a confiança sobre quem usou o artifício pois, se ele é capaz de representar negativamente o argumento do oponente, provavelmente também desvirtuaria seus próprios argumentos positivamente. Deturpar um ideia é muito mais fácil do que refutar as evidências que a apoiam.

Exemplos:
  • “Ana disse que o governo deveria investir mais em educação. Bela respondeu dizendo que Ana odeia o Brasil pois quer que o país fique indefeso sem acesso à verbas para os militares”.
  • A: “Por que o governo só se preocupa com o combate ao crime relegando políticas sociais a um segundo plano”?
    B: “Você subestima o aumento da violência, da quebra de lei e ordem em grande escala. Você deseja uma sociedade onde as pessoas não se sintam seguras”.
  • “Este biólogo quer me convencer de que nossos avós eram chimpanzés que estão agora se balançando entre as árvores, uma afirmação ridícula”.
  • “Se humanos vieram dos macacos por que ainda existem macacos”?

Para tornar o debate mais fácil foi feita uma representação errônea e simplista da biologia evolucionária que afirma a existência de um ancestral comum de humanos e chimpanzés, há milhões de anos.

A falácia do espantalho é uma tentativa de se evitar o real assunto em debate. Ela pode ocorrer por mera ignorância do debatedor ou ser voluntária. Nesse último caso ela é uma atitude de má fé. Uma maneira sutil de fazer isso consiste em desvalorizar as defesas do adversário sem considerá-las, o que viola uma regra básica de um debate que é ouvir com atenção o que o outro diz e procurar compreender o que foi dito.

(1) Citado no site Filosofia na Escola, A falácia do Espantalho.

Um caso muito interessante1 diz respeito ao comportamento de pessoas contrárias ao pensamento da filósofa americana Judith Butler, reconhecida por seus estudos sobre gênero. Em sua visita ao Brasil em 2017 esses opositores se manifestaram contra a sua visita fazendo protestos no aeroporto e em frente ao local do seminário. Um dos manifestantes, um advogado de 24 anos, se explicou da seguinte forma:
“A gente não está aqui pelo tema da palestra, a gente está aqui porque Judith Butler é uma propagadora da ideologia de gênero, uma das principais criadoras e a que mais propaga isso aí. Não é contra as pessoas que são homossexuais ou contra o homem que quer se vestir de mulher. É contra uma ideologia que está sendo pregada às crianças, tentando dizer que mesmo que você nasça homem ou mulher, você pode ter um gênero diferente disso aí. É um absurdo”!

A rejeição à Butler e o protesto foram baseados numa distorção de seu pensamento. Nesse caso é difícil dizer se houve má fé com a distorção intencional das propostas da autora, ou se foi mera ignorância.

Exemplos mais sutis da falácia do espantalho:
  • Ateus odeiam Deus.
  • Ateus não acreditam em nada.

“Cherry picking” ou escolha seletiva de argumentos é uma das formas de construir um espantalho, onde apenas características favoráveis ao argumento são apresentados.

Apelo à autoridade

A falácia do apelo à autoridade consiste em afirmar que alguém, um suposto perito no assunto debatido, afirmou ou concorda com o que está sendo afirmado. O inverso também pode ser usado: as afirmações de uma pessoa não é qualificada sobre um tema devem ser falsas. A autoridade pode ser concedida a alguém que estudou o assunto por muito tempo, que tem formação acadêmica ou é reconhecido pela comunidade. Devemos nos lembrar que uma pessoa ou instituição em posição de autoridade pode estar errada. Também não é impossível que a afirmação de alguém não qualificado esteja correta.

Na prática pode ser bastante difícil lidar com essa falácia. É natural que em um debate se evoque a autoridade de um especialista no tema em questão. Se a autoridade citada for alguém realmente bem informado sua afirmação deverá ter peso no debate. No entanto as conclusões daí deduzidas não devem ser consideradas finais. Um argumento deve ser completo e formado por seus próprios méritos.

Se a opinião de um especialista for usada é necessário compreender porque ele tem esse posição e como ele obteve sua certeza. Muitas vezes é difícil, se não impossível, que pessoas não qualificadas em um aspecto específico do conhecimento compreendam plenamente as afirmações de um cientista, por exemplo. Nesse caso é importante que os debatedores compreendam, pelo menos em princípio, o método científico.

(2) Essas palavras só fazem sentido para quem quer refutar a teoria da evolução, da mesma forma que alguém que não aceita as teorias conspiratórias dos que defendem a “terra plana” não se intitulam “terra-redondistas” ou “terra-bolistas”!

Um exemplo é o debate realizado entre “evolucionistas” e “criacionistas”. A Teoria da Evolução é hoje um esteio básico para todo o entendimento da biologia. Existem inúmeras evidências que comprovam seus postulados, conclusões e previsões. Mesmo assim, principalmente com base na fé religiosa, muitas pessoas, inclusive alguns cientistas, defendem que a vida foi programada e construída por Deus em pouquíssimo tempo. É possível, portanto, encontrar estudiosos “criacionistas” (embora em pequeno número!).

Outro debate importante é sobre o aquecimento global e sua origem nas atividades humanas. Há um consenso amplo na comunidade científica de o aquecimento está ocorrendo. Um número expressivo deles ainda defende que a causa é a descarga de gás carbônico na atmosfera, principalmente devido ao uso de combustíveis fósseis. Existem também, embora em menor número, alguns estudiosos que negam o aquecimento ou que sua origem esteja na atividade humana.

Em ambos os casos a decisão sobre quem tem razão deve passar, necessariamente, por um estudo da questão e dos métodos de conclusão utilizados.

Exemplos:
  • “Impossibilitado de defender a sua posição de que a teoria evolutiva ‘não é real’, Caio diz que conhece um cientista que também questiona a evolução e cita uma de suas famosas afirmações”.
  • “Pilotos da aeronáutica, que são profissionais altamente treinados, relataram ter visto OVNIS no céu. Logo eles devem existir”.

Uma variante mais restritiva e mais fácil de ser refutada é o apelo à autoridade irrelevante.

Apelo à autoridade irrelevante

Ocorre em argumentações que o apelo faz referência a pessoas não habilitadas para opinar. O apelo a uma autoridade irrelevante, alguém que não é um especialista no tema debatido, embora não seja prova do erro, levanta uma dúvida séria sobre a afirmativa defendida. Um exemplo é o apelo a uma autoridade não revelada ou vaga, no sentido em que não se pode conferir qual foi a verdadeira afirmação por ela proferida. Hoje são clássicas as frases do tipo “estudos revelam”, “cientistas provaram”, etc. A falácia ad populum, a crença de que algo deve ser verdadeiro se é defendido por um grande número de pessoas, é outro exemplo. Outra forma clássica é o apelo à sabedoria antiga, onde se assume que algo é verdadeiro porque foi originado num passado distante. Da mesma forma o apelo à uma autoridade religiosa pode constituir uma falácia grave.

Exemplo:
  • “A astrologia era praticada há milênios na China, logo deve ter um fundamento”.
  • “Meu pastor afirma que o elo perdido entre humanos e macacos nunca foram encontrados, logo a evolução não existe”.
  • “Não acredito em átomos com prótons e elétrons porque nunca vi nada disso”.

O argumento de antiguidade não serve para mostrar que a astrologia tem qualquer vinculação com a realidade (embora também não sirva para desqualificá-lo). O pastor pode ser bem instruído sobre as doutrinas que ensina mas isso não o qualifica a fazer afirmações sobre biologia. No último caso a autoridade irrelevante, como ele mesmo se declara, é o próprio afirmador.

Falácia naturalista

A falácia naturalista consiste em afirmar que algo está correto ou é bom porque é natural, derivado diretamente de um objeto da natureza. Alternativamente, afirmar que algo é falso, ou ruim (mal) se não está disponível na natureza.

Exemplos:
  • “Medicamentos fitoterápicos não fazem mal pois são extraídos de plantas”.
  • “Alimentos geneticamente modificados são um grande perigo para a saúde humana”.

A falácia naturalista é o conceito de que tudo o que é encontrado na natureza é bom por princípio. Ela foi usada na base do Darwinismo Social, a crença de que ajudar pobres e doentes seria algo contrário à evolução, que depende da sobrevivência do mais adaptado. Hoje os biólogos denunciam isso como uma falácia pois eles pretendem descrever o mundo natural com honestidade, sem fazer apelos morais àquilo que julgamos ser normas de comportamento. Um exemplo é a afirmação: ‘se pássaros e outros animais cometem adultério, infanticídio e canibalismo então humanos também podem fazer isso’.” (Steven Pinker, The Blank Slate)

Remédios fitoterápicos podem ser danosos à saúde como qualquer outro remédio, principalmente se tomados em doses exageradas. Algumas plantas são venenosas, mesmo em baixas dosagens. Alimentos geneticamente modificados tem sido usados há muito tempo sem que nenhum efeito colateral para a saúde humana tenha sido detectado. Vale lembrar que a absoluta maioria dos produtos que hoje consumimos, inclusive verduras e frutas, não estão em sua forma natural mas passaram por longo processo de alteração por meio de seleções não naturais.

Esse significado do termo “falácia naturalista”, como idêntico à “apelo à natureza” e algo diferente do significado original, tem sido bastante empregado na atualidade.

A falácia do equívoco

A falácia do equívoco consiste na exploração de significados ambíguos de palavras que são usadas de maneiras diferentes durante o argumento para sustentar uma conclusão infundada. Por isso, em qualquer debate, os termos usados devem ser claramente definidos dentro do contexto em que são aplicados. Quando se emprega o mesmo sentido para uma palavra em todo o argumento, ela está sendo usada de modo unívoco ou inequívoco.

Exemplo:
  • “Você diz que não tem fé mas quando age com fé o tempo todo. Fecha negócios, confia em amigos, acredita que o sol vai nascer pela manhã”!

Aqui, o significado da palavra “fé” é usado à princípio como crença espiritual num criador e depois muda para uma questão de confiança em outras pessoas ou eventos naturais.

Um exemplo clássico pode ser encontrado na discussão entre religião e ciência. A expressão “por que” pode ser empregada com o significado de “quais são as causas”, e nesse sentido ela é plenamente contemplada pela busca científica. Um objeto cai porque é atraído pela massa da Terra e essa atração obedece a lei da gravitação de Newton. Essa lei não é completa e não explica a causa da atração mas apenas a sua forma. Essa limitação foi saneada (em certa medida) pela teoria de Einstein que explica a atração entre massas como causada pela curvatura do espaço-tempo. Mas, se a expressão for usada com o significado “com qual propósito”, algo que pode ser importante para a abordagem religiosa, ela não terá nenhuma resposta científica.

Exemplo:
  • “A ciência pode explicar como as coisas funcionam mas é incapaz de nos explicar porque existimos, porque alguma coisa é correta ou imoral. Portanto precisamos de outra fonte, como a religião, para nos dizer porque as coisas acontecem, o que é ético e o que não é.”
  • “Um amigo estava caminhando na calçada quando foi atingida por um tijolo que se soltou, provocando sua morte. Por que logo ele foi atingido?”

A ideia de propósito em geral envolve motivação moral que são importantes para a psique humana mas que não tem representação real na natureza. No exemplo do tijolo solto, houve motivação para que o tijolo atingisse a pessoa? Alguma justiça ou injustiça foi aplicada?

A falácia do equívoco pode estar baseada em uma falha geral na definição dos termos.

Exemplo:
  • “O homem é o único animal racional. Mulheres não são homens, logo nenhuma mulher é racional.”
  • “Beto disse que deve chover hoje. Mas não acho que nuvens não vão atender a sua expectativa.

O uso da palavra “homem” (bem equivocado!) se refere à “humanidade”, e não ao gênero. Esse é um erro comum como se vê no uso universalizado de expressões como “Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem”. No segundo caso a palavra “deve” foi usada como “é provável”, mas o outro a interpretou como “desejo que”.

Falsa dicotomia

A falsa dicotomia, ou falso dilema, é um erro lógico que consiste em excluir todas as possibilidades de resolução de uma questão deixando apenas duas categorias possíveis. Essa falácia procura estabelecer a verdade de uma afirmação em contraposição a uma única posição divergente oposta à primeira, em geral mal escolhida e fácil de refutar. Com frequência as posições consideradas representam facetas extremas de alguma questão que suporta um espectro vasto de opções. Ela se aproveita do chamado “pensamento binário”, uma consequência da crescente radicalização das posições em voga na atualidade. Ao rejeitar uma das opções apenas a versão oposta pode ser verdadeira. Essa forma de pensamento provavelmente decorre do fato de que, muitas vezes na natureza, as coisas realmente são dicotômicas, tal como a ocorrência de um evento. Algo ocorreu ou não ocorreu!

Exemplo:
  • “Marcos falou contra o sistema capitalista, logo ele é comunista.”
  • “Se não reduzirmos os gastos públicos nossa economia entrará em colapso.”
  • “Brasil: ame-o ou deixe-o.”
  • O universo não pode ter sido criado do nada, então deve ter sido criado por Deus.

O proponente de um falso dilema pode agir de forma desonesta, ocultando as demais possibilidades, mas também pode ignorar que elas existam. Em qualquer dos casos é útil que um dos debatedores possa ter uma visão mais ampla do problema, apresentando soluções adicionais.

O oposto dessa falácia também ocorre no falso contínuo, que consiste em amenizar diferenças de coisas que são, de fato, extremos opostos. Ela consiste em tomar duas coisas distintas e antagônicas e buscar amenizar a diferença entre elas sob a o argumento de que são parte de um espectro contínuo.

Exemplo:
  • “Políticos de extrema direita e de extrema esquerda são idênticos. Todos são apenas políticos”.

Causa questionável

A causa questionável ou causa falsa é a confusão, muito frequente, entre correlação e causalidade. A falácia que consiste em estabelecer, sem provas, que a causa de alguma coisa é um evento anterior ou simultâneo a ele. Ela é denominada também pela expressão latina post-hoc ergo propter hoc que significa “depois disso, logo causado por isso”. Se um evento ocorre depois de outro assume-se que ele foi causado pelo primeiro.

Causalidade?

A correlação entre eventos pode ser pura coincidência ou resultado de algum outro fator. Sem evidências extras não é possível concluir que um evento causou o outro. Existem inúmeros exemplos clássicos de coisas que exibem comportamentos sincronizados (talvez aproximadamente) por algum tempo sem que um seja o causador do outro.

Exemplos:
  • Em uma universidade (fictícia) se verificou que 80% dos alunos que abandonam cursos tiravam notas abaixo da média. Logo se conclui que o baixo desempenho é a causa da evasão.
  • “Na década de 1990 o envolvimento das pessoas em grupos religiosos e o uso de drogas estavam em alta. Portanto a religiosidade provoca o uso de drogas”.

Nesses casos as conclusões apressadas geram falácias lógicas. Estudos mostram que existem muitos fatores que causam essa evasão. O abandono do curso e o baixo desempenho podem ter causas comuns tais como acesso do estudante à recursos financeiros e escolha errônea da carreira. Pode ocorrer que as drogas incrementem a religiosidade, que as variáveis estejam atreladas a uma terceira, ou ainda que sejam totalmente não correlacionadas.

Correlação não implica em Causalidade

Existe também abuso lógico na atitude contrária: a negação de causalidade bem estabelecida por estudo estatístico.

Exemplo:
  • No estudos clínicos de verificação de eficiência de um medicamento novo envolve muitas variáveis que devem ser controladas. Não basta correlacionar o uso de medicamento com a melhora do paciente. Controles usuais são o uso de placebos e de controle randomizado e cego de pacientes que usam a droga, usam o placebo ou não usam nada.
  • Foi observado que o fumo causa câncer. A indústria do cigarro tentou descartar a afirmação alegando que “correlação não prova causalidade”. Vários outros teste foram necessários, tais como associar tempo de uso do cigarro e uso de filtros com a incidência da doença.

Essa busca forçada por explicações causais são uma característica evolutiva de nosso cérebro treinado para encontrar padrões. Ele é falho pois nos faz perceber padrões e relações que não existem. É o que ocorre quando julgamos ouvir alguém invadindo nossa casa quando escutamos um barulho natural ou não ligado a um invasor. Efeito parecido é o da pareidolia, que nos faz ver faces em borrões e manchas.

Exemplo:
  • “Os terremotos e furações estão muito frequentes porque as crianças não rezam mais nas escolas”.
  • “A AIDS é uma doença gerada pelo comportamento imoral de algumas pessoas”.

Resta lembrar que, mesmo que se verifique mais tarde que a suposta causa é responsável pelo evento que se deseja explicar, a afirmação continua falaciosa pois é logicamente incompleta. A falácia seguinte não raro ocorre junto com a causa questionável.

Generalização precipitada

Generalização precipitada é a falácia que ocorre quando se conclui algo a partir de amostra pequena ou específica demais para representar o conjunto sobre o qual se quer decidir algo.

Exemplos:
  • “Alguns adolescentes vandalizaram o praça pública. Adolescentes são sempre mal comportados”.
  • “Em Nova Iorque e fui maltratado por vendedores nas lojas. Americanos são muito grossos”.
  • “A maioria dos brasileiros apoiam o plano do governo federal para aumentar a oferta de empregos diminuindo os direitos trabalhistas. Sabemos isso porque perguntamos a opinião de quase todos os moradores de um bairro nobre de São Paulo.”
  • “As pessoas acreditam que um determinado medicamento funciona bem porque foi testado e aprovado por alguns conhecidos”.

Generalizações precipitadas podem levar a erros catastróficos. Foi o que se deu com a explosão do foguete europeu Ariane 5 em seu primeiro voo de teste. O software de controle do foguete havia sido utilizado sem falhas com o modelo anterior, Ariane 4. No entanto os engenheiros descobriram que nem todos os cenários possíveis de ocorrer no Ariane 5 estavam previstos pelos testes anteriores. Exatamente um desses que causou a falha.

Apelo ao medo

A falácia do apelo ao medo (argumentum ad metum) cria a ameaça de consequências desastrosas caso a proposta do adversário seja escolhida, sem provas objetivas dessas consequências (ou não seria uma falácia). O argumento é portanto baseada em distorções dos fatos, de retórica ou puras mentiras.

Exemplo:
  • “Todos os funcionários dessa empresa devem votar no meu candidato. Se o outro candidato ganhar ele vai aumentar impostos e vocês ficarão desempregados.”
  • “É melhor você me entregar todos os seus objetos de valor antes que a polícia chegue aqui. Senão, os policiais vão colocá-los num depósito e suas coisas ficarão perdidas no depósito.” (Do livro O processo de Kafka).
  • “Converta-se à minha religião e vá para o céu. Do contrário vá para o inferno”.
  • “Respeito sua opinião mas ela te trará muito sofrimento na vida”.
  • “Faça esse plano de seguros pois você pode sofrer um acidente grave”.

Ameaças ostensivas e genéricas tendem a não oferecer evidências e são, quase sempre, tentativas de manipulação. No apelo ao medo há a tentativa de argumentação, em geral obscurecendo a ligação frágil entre a decisão e a consequência nefasta.

Quando um apelo ao medo descreve uma série de eventos indesejáveis como consequência de uma determinada opção, sem mostrar a conexão causal entre a proposta e essas consequências, ele se assemelha à falácia da bola de neve ou rampa escorregadia. Quando o apelo menciona apenas uma alternativa ela pode ser um tipo de falso dilema.

Note que existem afirmações que fazem apelo ao medo mas não são falaciosas. Nesse caso a ameaça pode ser comprovada por estudo ou argumentação posterior.

Exemplo:
  • “Ao dirigir em caso de chuva forte diminua a velocidade, ou você poderá sofrer um acidente”.

A insinuação de medo, incerteza e dúvida é uma técnica usada com frequência em campanhas de marketing (onde se criou a expressão FUD, fear, uncertainty and doubt). Ela é muito usada na busca de fidelização de clientes a uma determinada marca através de sugestão de que háa algum risco na compra de produto de outra marca.

Apelo à ignorância

O apelo à ignorância (ad ignorantiam) consiste em afirmar que algo é verdade apenas porque não foi provado falso. Ele transforma a ausência de evidência em evidência de ausência.

Exemplos:
  • “Não temos como explicar todas as aparições de OVNIs, logo eles são naves de outros planetas.” (Citado por Carl Sagan)
  • “A perceção extrassensorial é um fato pois não conhecemos a totalidade do funcionamento do cérebro humano”.
  • “Não posso entender como humanos podem ter viajado até a Lua, logo isso nunca aconteceu.”
  • “Não temos a menor compreensão de como a vida surgiu na Terra e nem como foram formadas as estruturas biológicas mais complexas. Por isso defendo o desenho inteligente”.

Ela é uma forma de esquecer um fato lógico básico e importante que é o ônus da prova é de quem faz afirmação“. Se afirmo que possuo um unicórnio rosa e invisível guardado no armário eu terei que provar isso, e não esperar que outra pessoa mostre que isso não é possível.

Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Caso contrário temos que assumir nossa ignorância sobre o fato. Além disso não é correto se afirmar que, coisas para as quais não existem explicação no momento, são inexplicáveis.

Nenhum escocês de verdade

Essa falácia recebeu o nome do exemplo dado por Antony Flew em 1975 em seu livro Thinking about Thinking (Pensando sobre pensar). “Lendo o jornal Hamish se depara com uma notícia sobre um inglês que cometeu um crime horroroso. Ele reage dizendo: ‘Nenhum escocês faria algo tão horrível’. No dia seguinte o jornal traz outra notícia sobre um escocês que cometeu outro crime, ainda mais terrível. Mas Hamish não muda de opinião e afirma: ‘Nenhum escocês de verdade faria tal coisa’”.

A segunda afirmação redefine o que se entende por escocês de forma a manter inalterada a afirmação. Esse tipo de argumento surge quando alguém faz uma generalização sobre um determinado conjunto de elementos e, sendo mais tarde desafiado por evidências que mostram o contrário, ele redefine a natureza de conjunto a que se referia, de forma vaga e arbitrária.

Exemplo:
  • “Programadores são pessoas antissociais e de difícil convívio.” Outra pessoa nega essa afirmação dizendo: “Conheço o Paulo, um programador extrovertido e afável, que se relaciona muito bem com todas as pessoas da empresa”. O afirmador inicial refaz sua afirmação: “Verdade, mas o Paulo não é um programador típico.”

Aqui, não está claro o que ele considera ser um programador típico. Com uma redefinição apropriada do conjunto mencionado, a afirmação seria sempre verdadeira perdendo portanto a sua importância.

Se o debatedor redefine uma categoria flexibilizando o significado do termo usado para definí-la ele pode estar usando também a falácia do equívoco (onde um termo é usado de formas diferentes). Se ele altera o escopo do conjunto para menosprezar o argumento do adversário ele pode estar usando o espantalho.

Falácia genética

Nesse caso a palavra genética se refere às origens de um argumento, tanto histórica como da pessoa que o gerou. A falácia genética ocorre quando um argumento é defendido ou desvalorizado com base em suas origens, sem o exame de seu mérito intrínseco. Ela exibe apreço (ou desprezo) pelo argumento apenas devido às suas origens.

Exemplo:
  • “Ele apoia a greve dos sindicatos porque era um sindicalista antes de se tornar político”.
  • “Estamos no século XXI, não podemos continuar mantendo crenças da Idade do Bronze.”
  • “Carros produzidos na China não são bons porque eu não confio em chineses.”
  • “Não deveríamos continuar usando os termos ‘por do sol’ ou ‘sol nascente’ pois essas expressões foram criadas quando se pensava que o sol girava em torno da terra.”

No primeiro caso não há análise do mérito em se apoiar a greve mas apenas uma tentativa de desvalorizar o apoio com base na origem do político. No segundo não existe uma consideração sobre o porque das ideias antigas não permanecerem válidas. A terceira espera lançar descrédito sobre um produto baseado na desconfiança vaga de quem o produziu. Todas as três afirmações podem ser verdadeiras, mas não devido à argumentação que apresentam. A afirmação sobre geocentrismo parte de uma premissa verdadeira, a origem das expressões, mas desconsidera que as palavras ganharam novo significado com o novo entendimento da astronomia.

Inconsistência

A inconsistência consiste na aplicação de um critério ou regra para apenas alguns membros de alguma classe, deixando indevidamente outros de fora.

Exemplo:
  • “Somos a favor de uma regulamentação forte sobre o uso e comercialização de medicamentos, mas pela liberação da venda indiscriminada de fitoterápicos e complementos alimentares”.
  • “A Bíblia é um livro que só contém verdades e os cientistas são pessoas iludidas por sua própria vaidade. De fato muitos cientistas mostraram que o dilúvio de Noé realmente aconteceu”.

Afirmação do consequente

Teofrasto

Na lógica formal se usa a expressão modo de afirmar (modus ponens) com o seguinte significado: supondo que A implica C (ou seja, sempre que A é verdade C também é) então basta mostrar a veracidade de A para concluir a de C. A é chamado de antecedente, C o consequente. Essa é uma regra de inferência, já citada pelo pensador grego Teofrasto.

Exemplos:
  • Premissa: Se A então C:
    A: Se você tem uma senha válida,
    C: você pode entrar na rede de computadores
    Se sabemos que a premissa A é verdadeira podemos concluir que C é verdadeiro:
    A: Você tem uma senha válida,:
    C: logo pode entrar na rede de computadores.
  • “Uma pessoa nascida no Canadá é canadense.”
    “Bela nasceu em Ontário logo ela é canadense.”

A falácia da afirmação do consequente inverte, erroneamente, a lógica do modus ponens. Ele promove uma inversão da relação de causa e efeito, afirmando que algo é causado por sua própria consequência.

Exemplos:
  • “Carlos é canadense logo ele nasceu no Canadá.”
  • “Dario entrou na rede de computadores, logo ele possui senha válida.”
  • “Pessoas que frequentam bons cursos universitários se tornam cultas. Erasmus é culto, logo cursou boa universidade.”

No primeiro caso é possível que Carlos tenha nascido em outro país e se naturalizado canadense. E a rede de computadores pode permitir o acesso de usuários “convidados”, sem necessidade de senha. Erasmus pode ser um autodidata.

Ladeira escorregadia

A ladeira escorregadia (“slipery slope”, em inglês) é conhecida também como “bola de neve”. Esta falácia busca refutar uma proposta sob a argumentação de que sua aceitação produziria uma sequência de eventos indesejáveis. Aqui também, pode ser correto dizer que existe uma certa chance de que os eventos possam ser produzidos, mas a argumentação falaciosa não oferece prova de que eles são inevitáveis, como se tenta fazer parecer. É frequente que essa argumentação esteja associada ao medo, estando relacionada a outras falácias como o apelo ao medo, falso dilema e argumento a partir das consequências.

Em outras palavras ela afirma que se uma posição for aceita como verdadeira necessariamente posições muito extremas e radicais terão que ser igualmente aceitas.

Exemplos:
  • “Não permite que seu filho jogue video-games violentos. Isso vai torná-lo antissocial, irritadiço e tendente a partir para uma vida de criminalidade”.
  • “O acesso à internet não pode ser livre. Com ele as pessoas frequentam sites pornográficos, o que deteriora a moralidade social e nos leva a um comportamento de meros animais”.
  • “O rock (música) ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo.”

Nenhum dos argumentos apresenta evidências de que existem relações entre as premissas e as conclusões. Argumentos desse tipo muitas vezes estão carregados de premissas ocultas, algumas delas sobre temas que nem o afirmador gostaria de revelar publicamente.

Apelo à popularidade

O apelo à popularidade, ou apelo ao povo (argumentum ad populum), visa mostrar que algo é verdadeiro apenas porque muitas pessoas o aceitam como tal. Ele se baseia na crença comum de que algo aceito pela maioria deve ser verdade ou correto.

Exemplos:
  • “Todo mundo diz que não há problema em mentir, desde que você não seja pego.”
  • “Pode ser contra a lei beber quando você tem 18 anos mas todo mundo faz isso. Então está tudo bem.”
  • “25% da população acredita que o aquecimento global é uma farsa. Logo deve haver alguma verdade nisso!”
  • Dietas de baixo carboidrato devem ser saudáveis pois todos os meus amigos estão fazendo, com sucesso!”
Galileu Galilei

Vários exemplos interessantes podem ser encontrados na história da ciência. Quando Galileu Galilei, com base em suas observações e estudo da obra de Copérnico, concluiu que a Terra girava em torno do Sol ele foi ridicularizado porque era crença comum, mesmo entre as pessoas cultas da época, que todos os astros giravam em torno de nosso planeta. O mesmo ocorreu quando ele viu manchas no Sol, algo impossível para o pensamento da época que considerava a substância celeste como imaculada.

O médico australiano Barry Marshall concluiu que as bactérias H. pylori poderiam causar úlceras estomacais em pessoas infectadas. A comunidade científica rejeitou totalmente a ideia que destoava do pensamento estabelecido na época. Para que seus colegas considerassem seu argumento, em 1984 Marshall se inoculou com essas bactérias provocando úlceras em si mesmo e se curando depois com antibióticos.

O ambiente de publicidade usa a técnica de convencer as pessoas a usar um produto fazendo-as crer (ou perceber) que muitas outras pessoas já o fazem. Independentemente de ser um bom produto ou não a argumentação é falaciosa. Um exemplo é vender um sabonete sob a alegação de que os artistas usam esse produto. Também os políticos se aproveitam de popularidade para serem eleitos e, depois, para impulsionar suas campanhas. É o que faz com que tantas pessoas da mídia, apresentadores de televisão, radialistas, etc., sejam eleitos com tanta frequência. Não é impossível que um apresentador de televisão famoso possa ser um político mas sua fama, apenas, não é suficiente para estabelecer essa afirmação.

Beatles e Stones
Exemplo do argumento sendo usado de forma reversa:
  • Todo mundo ama os Beatles e isso significa, provavelmente, que eles não eram tão talentosos quanto os Rolling Stones, que não se esforçaram tanto para agradar ao grande público.

Raciocínio circular

No raciocínio circular as premissas são tomadas diretamente como sendo a conclusão. Essa conclusão pode ser apenas uma repetição das premissas, ditas em outras palavras. A afirmação, se A é verdade então A, é óbvia mas não acrescenta nada. Em alguns casos podem existir premissas não declaradas, o que torna a falácia mais difícil de ser detectada. Essas premissas podem ter sido consideradas conceitos fundamentais ou de domínio de todos, ou estarem omitidas por má fé de quem faz a afirmação.

Exemplo:
  • “Você está completamente equivocado, pois o que falou não faz o menor sentido.”
  • “Deus existe pois a Bíblia afirma isso. A Bíblia tem autoridade porque foi inspirada por Deus”.

No primeiro caso as duas afirmações significam a mesma coisa. No segundo o argumento é inteiramente inválido pois, para quem não acredita em Deus, ele não pode ter escrito ou inspirado os autores da Bíblia.

Argumentos circulares muitas vezes apenas afirmam tautologias, que são argumentos que devem ser verdadeiros em qualquer leitura que deles se faça, ou seja, a conclusão é a própria premissa. Em alguns casos a conclusão é expressa de modo diferente da premissa, o que é uma estratégia para dissimular a falácia.

Exemplo:
  • “Terapias de imposição de mãos são eficazes porque manipulam a força vital do paciente”.

A definição de “terapia de imposição de mãos” está exatamente na alegada possibilidade de manipulação de uma “força vital”, sem contato físico com o paciente. Para mostrar que tais terapias são eficazes seria necessário apresentar outras provas que não a definição do termo, entre elas a existência da chamada “força vital”.

Petição de princípio

A petição de princípio (petitio principii), algumas vezes chamada de “implorando pela pergunta” (ou begging the question, em ingles) é similar ao raciocínio circular. Esta falácia é a tentativa de inserir a conclusão dentro da premissa, em geral de forma insidiosa e pouco clara. Ela pode aparecer na forma de perguntas que, em si mesmas, já carregam a conclusão desejada. Ela difere do raciocínio circular pois a pergunta ou premissa não precisa ser necessariamente idêntica à conclusão desejada.

Exemplos:
  • “Você já parou de usar drogas?”
  • “Por que os cientistas temem as afirmações dos religiosos?”

A primeira pergunta afirma que a pessoa usava drogas. A segunda supõe que tal temor existe.

Falsa analogia

A consideração de coisas análogas pode ser útil para o entendimento de algo desconhecido, pelo menos em princípio. O organismo de ratos reage de forma análoga ao humano. Teste de medicamentos em ratos podem sugerir efeitos importantes que uma pessoa teria ao usar o mesmo medicamento. Esses efeitos devem ser depois testados em pessoas antes que seja colocado para uso comum.

Um argumento baseado em falsa analogia supõe similaridade entre coisas, pessoas ou situações que não são similares. Ou, pelo menos, não são similares da forma proposta.

Exemplo:
  • “A probabilidade de que um organismo complexo se desenvolva ao acaso é idêntica a de que um tornado passando por um ferro-velho crie um avião”.

Não existe similaridade entre os processos. A evolução não funciona ao acaso, como se costuma afirmar. Ela é o resultado de transformações aleatórias (essa parte ocorre por acaso!) filtradas pela seleção natural. Ela é a acumulação, ao longo de muito tempo, de transformações favoráveis, no sentido de favorecer a preservação e multiplicação dos organismos.

Outra forma de se usar falsas analogias consiste em tomar coisas que são realmente análogas, mas não no aspecto considerado no debate.

Composição e divisão

A composição e divisão são dois tipos de falácias assemelhados. A falácia da composição ocorre quando alguém afirma que um conjunto inteiro de elementos têm um atributo, partindo do conhecimento que alguns elementos do conjunto tem esse atributo. Ou seja, quando se julga o todo por suas partes.

Exemplo:
  • “Em um curral repleto de bois sabemos que cada boi tem (ou teve) uma mãe. Logo todos os bois do curral têm a mesma mãe”.
  • “Cada módulo desse software foi submetido a testes e passou em todos. Portanto podemos integrar os os módulos em um software final, sabendo que ele também passará nos testes”.

Quando as partes de um software (por ex.) são juntadas para formar um sistema, um outro nível de complexidade é criado apresentando novas propriedades e possíveis erros.

O oposto acontece na falácia da divisão, quando se infere que as partes devem ter um atributo que pertence ao todo.

Exemplo:
  • “Esse é um excelente time de futebol. Logo todos os seus jogadores são ótimos”.

Claro que existem ótimos times onde todos os jogadores são bons. Mas também pode ocorrer que as habilidades de cada um deles, combinadas com as de seus colegas, tornem o time de excelência sem que cada jogador particularmente seja tão bom.

O tema é bastante difícil. Um sistema muito complexo pode ser (e geralmente é) composto por grande número de partes simples. A simplicidade das partes não pode ser usada para argumentar pela simplicidade do conjunto inteiro.

Alegação especial

Alegação especial (raciocínio ad-hoc) consiste na introdução arbitrária de novo elementos na argumentação de forma a torná-la válida.

Exemplo:
  • A: “A percepção extrassensorial não foi demonstrada em nenhum experimento controlado”.
    B: “Percepção extrassensorial não funciona na presença de céticos”.

Uma forma de alegação especial é a falácia seguinte.

O Objetivo móvel


O Objetivo Móvel é um método de negação que altera arbitrariamente os critérios exigidos para uma prova. Ele usa a exigência da exibição de evidências que estão além do alcance. Caso novas evidências surjam, atendendo aos critérios anteriores, a meta é empurrada para mais longe de modo a ficar sempre inalcansável. Em alguns casos, critérios impossíveis são exigidos logo no início, movendo a meta definitivamente para fora do alcance da argumentação.

Exemplo:
  • A: “É impossível ir até a Antártica pois existem guardas armados que impedem o acesso”.
    B: “Muitas pessoas já foram à Antártica”.
    A: “Mas só alcançaram as bordas, sem nunca ultrapassá-las”.
    B: “Existem voos do Chile até a Austrália que cruzam o polo Sul”.
    A: “Todas essas pessoas estão mentindo. Todas fazem parte de uma conspiração global para que acreditemos na terra redonda”.
  • Uma pessoa se diz contra o uso de vacinas pois ouviu dizer que elas contêm mercúrio que causaria autismo. Então ela é informada que o mercúrio deixou de ser usado em vacinas mas a incidência do autismo não se alterou. A pessoa então afirma que outro produto na vacina é o causador do autismo. A recusa à vacinação tem causado problemas sérios nas comunidades, inclusive com o retorno de doenças contagiosas consideradas derrotadas.
  • Defensores da terra plana são fonte farta de exemplos de falácias generalizadas, em particular o objetivo móvel. Quando confrontadas com imagens em tempo real feita pela ISS (Estação Espacial Internacional) elas alegam efeitos de distorção das lentes. Imagens do planeta tiradas de fora da atmosfera são tidas como montagens que corroboram sua crença em um complô mundial.


Algo parecido ocorre com aqueles que se recusam a aceitar que o programa espacial levou pessoas até a Lua. Eles possuem um número de argumentos que são mantidos, independente das explicações dadas aos seus questionamentos. Observe que não é fácil alguém demonstrar de forma final que o programa Apolo existiu e foi bem sucedido3 (exceto se você tiver acesso à documentação da NASA ou um laser e souber direcioná-lo para o espelho deixado na Lua pela Apolo 11). Negar isso, no entanto, implica em aceitar uma conspiração entre todas as agências espaciais, cientistas da área, jornalistas, autoridades, etc.


(3) Em julho de 1969 a Apolo 11 levou três astronautas até a superfície da Lua. Eles colheram material do solo lunar e deixaram lá alguns objetos, entre eles um espelho que reflete raios lasers emitidos da Terra. Várias novas descobertas decorreram do experimento, entre elas:

  • A distância da Terra à Lua pode ser medida com precisão milimétrica.
  • A Lua está se afastando da Terra em uma taxa de 3,8 cm/ano.
  • A Lua provavelmente tem núcleo líquido ocupando cerca de 20% de seu raio.
  • A força da gravidade universal é muito estável.
  • A Teoria da Gravitação de Einstein faz predições corretas sobre a órbita da Lua.

Na foto o “Experimento de Alcance de Laser”, espelho deixado na Lua pela Apolo 11.

Definições

Argumento é um conjunto de proposições que buscam concluir alguma coisa ou persuadir outra pessoa por meio do debate. Proposições, ou afirmações, podem ser verdadeiras ou falsas.

Premissas são afirmação usadas como base de um raciocínio ou argumento.

Conclusões são afirmações que decorrem logicamente das premissas.

Uma argumentação correta, ou o debate, é a forma de partir de premissas e obter uma conclusão que logicamente decorre delas. Premissas falsas levarão à conclusões falsas.

Falseabilidade é uma característica de uma proposição que permite que ela seja refutada (desmentida), por meio de raciocínio, uma observação ou um experimento.

Cientificamente hipóteses são argumentações, em geral complexas, que podem ser falseadas. Se as tentativas de falsear a hipótese não forem bem sucedidas ela adquire o status de teoria. Uma afirmação que não é falseável não é uma afirmação científica.

Exemplo:
  • “Existe um universo paralelo que não interage com o nosso de nenhuma maneira”.
  • “A alma humana não pode ser detectada por nenhum instrumento, por mais sensível que seja”.

Nenhuma das duas afirmações são falseáveis.

Falácias lógicas são erros no raciocínio usado para fazer a transição de uma proposição para outra e resultam em um argumento falho. Isso ocorre quando conclusões são obtidas através de premissas que não justificam aquele resultado. Falácias violam princípios lógicos e as regras que norteiam um bom argumento. No entanto é possível que uma conclusão esteja correta mesmo que obtida por meio de falácias. Elas são, portanto, indicações ou alertas para erros. Para uma boa conduta de raciocínio ou debate as falácias lógicas devem ser evitadas.

Hoje é comum se ver discussões (veja por exemplo as seções de comentários na internet) onde uma afirmação é descartada porque o afirmador não fez uma boa defesa de sua afirmação. Não é raro se ver um leigo explicando de forma fraca ou incorreta um aspecto técnico ou científico.

Um argumento dedutivo é uma forma de extrair conclusões corretas de premissas corretas. A conclusão decorre das premissas, como consequência lógica.

Exemplo:
  • “Todos os homens são mortais. Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal.”
Aristóteles

Um argumento dedutivo é válido se não existem falhas lógicas que partem das premissas para alcançar a conclusão. Um argumento é inválido se isso não ocorrer. Um argumento dedutivo é sólido se for válido e suas premissas verdadeiras. Em princípio se busca estabelecer a verdade verificando que as premissas estão corretas e as conclusões decorrem logicamente delas.

Um argumento indutivo é uma forma de coletar evidências parciais para compor uma hipótese mais ampla. Ao contrário do pensamento dedutivo, que fornece resultados verdadeiros (se o processo for logicamente correto), o resultado da indução tem uma probabilidade de estar correto, dependendo do número de evidências coletadas. Quanto melhor se escolher os resultados que nos fornecem evidências para uma conclusão indutiva, mais confiável é essa conclusão.

Exemplos:
  • “Em uma pesquisa eleitoral é impossível coletar a intenção de voto de todos os eleitores. Por isso se entrevista parte deles e se induz qual seria o resultado das urnas”.
  • “Todas as medições feitas até hoje da velocidade da luz no vácuo (geralmente denotada pela letra \(c\)) resultam em \(c = 3×10^8 m/s\). Dai se conclui que essa é uma constante universal”.

Para as pesquisas eleitorais existem técnicas sofisticadas de escolha da amostra (os votos verificados) que melhor representam a população (todos os votos). Quanto melhor for essa escolha menor a faixa de erro envolvida. Quanto à velocidade da luz, não temos como saber se ela é a mesma em um ponto muito distante do universo ou em algum tempo remoto no passado. Uma única medida não compatível bastará para entendermos que essa não é uma quantidade universal.

Na ciência o raciocínio indutivo é geralmente usado na construção dos modelos que são testados e depois se tornam teorias. Um único fato discordante põe por terra toda a teoria.

Teorias científicas devem ter poder explicativo (explicar os fatos já observados) e poder preditivo (a capacidade de prever ocorrências de coisas nunca vistas). A teoria da evolução, por exemplo, prevê que ancestrais comuns devem ser encontrados para quaisquer dois seres vivos na atualidade. Esses ancestrais são encontrados em abundância no registro fóssil.

Exemplo:
  • É possível verificar a idade de fósseis por vários meios. Se um único fóssil for encontrado em uma camada geológica com data diferente da data medida por outros meios, como a datação por carbono 14, a teoria da evolução poderia ser questionada.
  • Se um único objeto com massa de repouso não nula for encontrado com velocidade superior à da luz a teoria da relatividade ficaria questionada.

Redução ao absurdo

Redução ao absurdo (reductio ad absurdum) é uma argumentação válida da lógica formal. Ela assume a seguinte forma: para demonstrar que uma premissa é falsa se supõe provisoriamente que ela seja verdadeira. Em seguida se mostra que essa suposição conduz a conclusão absurda (claramente falsa) ou contraditória com a própria premissa. Se a contradição é derivada de várias premissas se pode concluir que menos uma delas é falsa.

Exemplo:
  • Na matemática essa técnica é bastante usada. Aristóteles em Analytica Priora apresentou a prova de que a raiz quadrada de 2 é um número irracional (não pode ser escrito como uma fração). Para isso ele supôs que esse número pudesse ser expresso como um racional a/b irredutível e concluiu que tanto a como b devem ser par, o que contraria a afirmação de que a fração é irredutível (não pode ser simplificada). Essa demonstração foi muito importante para o pensamento grego porque se julgava que todo número deveria ser um racional.

A navalha de Occam

Occam

A navalha de Occam é um dos princípios básicos norteadores do pensamento lógico, considerado auto-evidente e sem necessidade de demonstração. Ela afirma que entre várias hipóteses formuladas para explicar evidências observadas a mais simples deve ser preferida. A proposta do princípio por William de Occam (1285-1347), monge e filósofo inglês, era um pouco diferente da que usamos hoje e era em princípio usada como argumento teológico.

Exemplo:
  • Imagine que você chega em casa e encontra tudo desarrumado. Gavetas e portas de armários estão abertas e seu conteúdo espalhado pelo chão. Antes de qualquer perícia alguém sugere três hipóteses para explicar o sucedido.
    1. Um ladrão entrou em sua casa para roubar.
    2. Alienígenas do espaço sideral vieram estudar o comportamento humano.
    3. Almas de pessoas já falecidas vieram cumprir algum plano de vingança pessoal.

    Mesmo que se aceite as três hipóteses como possíveis é mais sensato considerar a primeira delas como válida, exceto se provas extraordinárias sugerirem as demais.

Occam não foi o primeiro usar o princípio o princípio da parcimônia. Aristóteles no século 4 a.C. já afirmava coisa semelhante. Em seu livro Análise Posterior: “Podemos supor a superioridade de uma demonstração que é derivada de um número menor de hipóteses.” Mais tarde Ptolomeu afirmou que “consideramos um bom princípio explicar os fenômenos com as hipóteses mais simples possíveis”.

Bibliografia

  • Almossawi, Ali: An illustrated book of bad arguments, The Experiment, New York, 2013.
  • Site Filosofia na Escola A Falácia do espantalho acessado em abril 2020.
  • Crian D., Shatil S., Mayblin B.: Introducing Logic, a graphical guide, Icon Books, London, 2013.
  • New England Skeptics Society’s; Skeptics’ Guide To The Universe: Logical Fallacies, acessado em maio 2020.
  • Steven Novella: How to Argue, março de 2009, acessado em maio 2020.
  • Downes, Stephen: Guia das falácias (trad. Júlio Sameiro); Site Crítica, acessado em maio de 2020.

O Futuro da Inteligência Artificial

Expectativa e Desafio Futuro

No campo das expectativas para um futuro muito próximo podemos mencionar as interfaces entre cérebro e computador mediadas por IAs, conectados à máquinas externas tais como exoesqueletos. Esses sistemas estarão disponíveis para pacientes com acidentes cérebro-vasculares, com traumas, doenças neurológicas, ou simplesmente como uma extensão de habilidades de uma pessoa saudável.

Nenhuma nova tecnologia é introduzida sem apresentar simultaneamente problemas e desafios em seu uso. Estima-se que um número relevante de empregos será perdido para a automação inteligente. Diferente das máquinas mecânicas, que substituíram o trabalhador braçal, agora é razoável considerar que computadores farão o trabalho de profissionais com níveis mais elevados de qualificação. Investimento em equipamentos, e não em pessoas, provavelmente aumentará o problema do desemprego e da concentração de renda.

O uso das máquinas para recomendações de conteúdo, por exemplo, tem se mostrado problemático em algumas plataformas. Buscando atrair a atenção do usuário e mantê-lo por mais tempo conectado e fidelizado as redes apresentam como sugestões conteúdos cada vez mais contundentes, muitas vezes envolvendo violência e intolerância. A indicação de conteúdo de fácil aceitação, em geral aprovado por muitos usuários, tende a esconder aqueles de menor circulação ou de gosto mais elaborado. Como resultado se observa a tendência de uniformização e formação de guetos, com a consequente inclinação à radicalização e intolerância. Junta-se a isso a facilidade para a geração inteligente de imagens, áudios e vídeos falsos que torna as campanhas de desinformação ainda mais nocivas e de difícil deteção.

Os problemas envolvendo a indústria da propaganda nos meios virtuais ficam exacerbados pelas práticas ilegais e imorais do roubo de dados. Dados se tornaram um produto valioso e a ausência de uma legislação atualizada estimula a prática da invasão de computadores e telefones pessoais e corporativos. Redes sociais importantes já foram flagradas vendendo informações sobre seus usuários que são usadas para o mero estímulo ao consumo ou para o atingimento de metas políticas muitas vezes obscuras e antidemocráticas.

A habilidade das IAs de reconhecer texto escrito e falado e extrair conteúdo das linguagens naturais agrava a ameaça à privacidade. Uma espionagem feita pelo microfone de um celular pode não apenas indicar que tipo de propaganda deve ser oferecida ao usuário mas também revelar traços que essa pessoa gostaria de manter privados, tais como traços de comportamentos íntimos ou a presença de uma doença.

Questões éticas, usualmente difíceis, ficam mais complexas na presença de IAs. Quem deve ser responsabilizado se um médico autômato comete um erro em seu diagnóstico ou procedimento? Quanta autonomia se pode atribuir à um juiz máquina ou a um automóvel auto-guiado? É aceitável permitir que um drone armado dispare contra um grupo que ele considera perigoso?

Provavelmente a afirmação do falecido físico Stephen Hawkings de que “O desenvolvimento de uma inteligência artificial completa pode determinar o fim da raça humana” seja pessimista em excesso.

É inegável, no entanto, que vigilância e responsabilidade devem ser elementos comuns no uso de toda nova tecnologia.

Referências

CHOLLET, F.. Deep Learning with Python. Nova Iorque: Manning Publications Co., 2018.

GOODFELLOW, I.; BENGIO, Y.; COURVILLE, A. Deep Learning: Cambridge, MA : MIT Press, 2017.

UNESCO. Artificial Intelligence in Education: Challenges and Opportunities for Sustainable Development, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, Paris, 2019.

Inteligência Artificial

Onde o Aprendizado de Máquina é usado?

Máquinas treinadas podem ser empacotadas em aplicativos para computadores, telefones celulares ou circuitos com processadores que podem ser inseridos em outros equipamentos maiores, como automóveis e aviões, ou simplesmente serem carregados com o usuário.

Bons exemplos são os programas de busca e remoção de vírus de computadores e programas espiões que visam o roubo de dados pessoais ou corporativos. Novos vírus são disseminados a todo momento mas a maior parte de seu código replica o de vírus já detectados e combatidos. Sistemas inteligentes podem prever com boa exatidão quando um código representa um ataque ou, caso contrário, informar sobre possíveis riscos que ele representa. Da mesma forma um servidor de correio eletrônico (email) pode processar as mensagem recebidas e seus anexos em busca de spams, vírus, mensagens enviadas por remetentes cadastrados como perigosos ou prever outras anomalias.


Procedimentos de segurança de pessoas ou grupos podem ser automatizados. Filas de aeroportos ou de ingresso a um evento público de grande comparecimento podem ser varridas por meio de câmeras que localizam faces cadastradas em listas de criminosos ou encontrar outras características suspeitas que seriam de difícil identificação por funcionários humanos.

A análise de séries temporais, dados coletados ao longo do tempo, submetidas ao treinamento de máquina pode, em muitos casos, permitir a previsão de eventos futuros ou a inferência retrógrada de períodos passados que não foram documentados. Dois casos de interesse evidente são as previsões meteorológicas e da flutuação de mercados e bolsas de valores. Em ambos os casos as previsões automatizadas estão sendo rapidamente aprimoradas e os resultados cada vez mais úteis. A previsão meteorológica, por exemplo, permite o planejamento de ações de defesa ou de emergência em casos de tempestades. Empresas voltadas para as aplicações financeiras têm conseguido sucesso relevante nessa previsão, o que se reflete em lucro. Bancos e outros agentes financeiros usam a IA para previsão de comportamento de clientes, para sugestões de investimentos e prevenção de fraudes.

Um exemplo não óbvio da análise de séries temporais está nos aplicativos de reconhecimento de voz. Conversão direta de voz em texto ou vice-versa, de tradução ou de uso nos chamados assistentes pessoais, tais como o Alexa do Google e Siri da Apple são aplicações deste tecnologia. Através desses assistentes o usuário pode acionar outros aplicativos em seu aparelho pessoal, escolher músicas, enviar emails, entre outras funcionalidades.

A análise automática de textos já é usada nos tribunais brasileiros para triagem e encaminhamento de processos. Muitas questões estão em aberto no que se refere ao uso desses sistemas e se torna necessário discutir a inserção do assunto nos currículos de ensino de Direito.

O reconhecimento de significado de texto representa uma parte importante dos aplicativos de IA. Chatbots são aplicativos que simulam uma conversação com o usuário, fazendo pesquisas de opinião e preferência, sugerindo um procedimento para o usuário ou escolhendo o atendente humano que melhor responderá a suas demandas. A análise automática de um texto pode discriminar o estado de humor de quem o escreveu e sugerir a ele uma página na web de seu interesse ou um produto que ele esteja inclinado a consumir.

Muitas desta aplicações podem, e de fato o fazem, se beneficiar de um acesso direto à informação obtida por meio de sensores de natureza diversa, principalmente quando estão conectados à internet e transmitem dados em tempos real. Exemplos disso são as leituras de GPS (Global Positioning System ou Sistema Global de Posicionamento) que permitem a exibição de mapas de trânsito atualizados a cada instante, exibindo rotas de menor tráfego ou pontos de congestionamentos. Usando estes sistemas associados a diversos outros sensores, todos analisados por IA, automóveis autônomos podem circular pelas ruas das cidades provocando um número de acidentes inferior àqueles provocados por motoristas humanos. Da mesma forma um drone pode entregar produtos adquiridos remotamente diretamente nas mãos do consumidor.

Baseados na interação que fazemos com as páginas das chamadas rede sociais é possível a captura muito precisa de personalidades, gostos e tendências de um usuário, o que é usado pelos agentes de mídia para veicular propaganda de consumo, de comportamento ou política. Os provedores de conteúdo áudio-visuais, tais como o Netflix, o Youtube e Spotify, usam IAs para acompanhamento dos hábitos de seus usuários para indicar novos acessos à filmes, músicas ou outros produtos de qualquer natureza.

As aplicações de máquinas inteligentes são particularmente animadoras no campo da saúde, em especial para diagnósticos por imagem. Doenças de pele ou dos olhos, ou células cancerosas podem ser detectadas por meio da análise de imagens, muitas vezes com precisão superior à obtida por um técnico humano. O estudo do registro médico pormenorizado de um paciente pode indicar tendências e sugerir formas viáveis de tratamento.

Usuários dos jogos de computadores também são expostos à decisões de máquinas rotineiramente. A industria dos jogos foi uma das primeiras a se aproveitar desta tecnologia e muitos jogos lançam mão de IA para tomadas de decisões e para a animação de personagens virtuais que povoam os mundos de fantasia dos jogos.

Telescópio Espacial kepler – representação artística

A inteligência artificial, com sua habilidade de análise de grande volume de dados, é um recurso poderoso na pesquisa científica. Um exemplo brilhante dessa faceta foi a descoberta anunciada pela NASA em março de 2019 de dois exoplanetas por meio de um algoritmo chamado AstroNet-K2, uma rede neural modificada para o estudo dos dados colhidos pelo telescópio espacial Kepler.

IA e Educação

A Educação é um setor tradicionalmente refratário às novas tecnologias e as novidades demoram para entrar na sala de aula. Apesar disso muitas propostas envolvendo IA têm surgido, algumas delas já em aplicação.

O professor hoje compete na atenção dos alunos com uma variedade de estímulos eletrônicos, jogos, páginas da web interativas e ambientes de interação social. Qualquer sistema educacional no presente e futuro próximo deve oferecer estímulo similar ao encontrado nesses meios, buscando dialogar com os alunos no ambiente de interatividade digital com que estão bem familiarizados.

Ainda que os computadores já sejam, há algum tempo, utilizados no manejo da burocracia escolar, sistemas inteligentes podem agilizar esse processo. Professores gastam boa parte de seu tempo em atividades burocráticas, não relacionadas com o ensino em si. A avaliação de exames e o preenchimento de formulários, o acompanhamento de frequências às aulas, o contato permanente com pais e responsáveis e o controle de estoque de material escolar, todas são tarefas que podem ser facilitadas com o uso de IA. O mesmo ocorre com o gerenciamento de matrículas, formulação de calendários e manejo de pessoal. Para o aluno um assistente escolar pode agendar compromissos virtuais ou não, acompanhar a rotina de estudos e contato com professores.

É no campo puramente acadêmico, no entanto, que se pode esperar os melhores resultados. Sistemas inteligentes tem sido treinados para a personalização com ajuste super fino de ementas e fluxos de estudo para o indivíduo, levando em conta suas habilidades e deficiências. Com a adoção de textos eletrônicos a informação antes contida em grandes volumes de papel pode ser, de modo simples e de baixo custo, fragmentada em guias menores de estudos, contendo blocos lógicos completos com referência a recursos multimídia e conteúdo expandido. Sistemas de IA podem fornecer uma interface interativa capaz de responder perguntas ou indicar referências visando esclarecer pontos pouco compreendidos. Uma IA pode auxiliar o professor inclusive por meio de diálogos falados, resolvendo dúvidas e ajudando na solução de exercícios, enquanto a análise de imagens capturadas por câmeras pode indicar o nível de concentração ou dispersão dos estudantes.

Associada ao uso da apresentação dinâmica de conteúdo um sistema treinado por IA e subsidiado por avaliações permanentes e automáticas de desempenho pode indicar o melhor roteiro, as necessárias revisões e ritmo do aprendizado. Tutores automáticos podem acompanhar e sugerir o ritmo de estudo de um estudante. A avaliação permanente, além de tornar desnecessária a temida temporada de provas, avaliará o nível atual de conhecimento do aluno, insistindo em exemplos e exercícios caso um conceito não esteja bem assimilado através da apresentação de questões com níveis crescentes de dificuldade, sugerindo o retorno para níveis mais básicos ou a progressão para tópicos mais avançados. Ele pode identificar lacunas no entendimento e apresentar as intervenções corretas para preencher essas deficiências.

Simultaneamente com a avaliação de testes e exercícios podem ser inseridos mecanismos para a detecção de dificuldades outras que não as puramente acadêmicas, tais como deficiências de visão e concentração para alunos mais jovens.

Evidentemente nenhum sistema, por mais arrojado que seja, poderá se furtar ao estímulo de aspectos humanos básicos tais como a criatividade, cooperação entre indivíduos e desenvolvimento ético. Principalmente nas primeiras fases de implantação dos sistemas inteligentes nas escolas, visto que o efeito completo da exposição a sistemas artificiais não é plenamente conhecido, não se pode permitir uma dependência excessiva nas máquinas. Alunos devem receber estímulo para realizar pesquisas tradicionais em bibliotecas e usar livros físicos. A interação entre alunos e educadores e colegas deve ser uma prioridade. Além disso, em um contexto onde a informação, como acesso aos dados, e a capacidade de processamento destes dados estão super facilitados pela presença de computadores, a criatividade e a habilidade para a solução de problemas, individualmente ou em grupo, deve ser o foco do processo educativo.

Grande parte do desafio das instituições de ensino em face da explosão da IA consiste em treinar profissionais para o uso e desenvolvimento dos próprios sistemas inteligentes. Um usuário não especialista em computação deve adquirir compreensão básica do mecanismo de funcionamento das máquinas, com conhecimento mínimo da arquitetura destes sistemas e da análise estatística utilizada por eles. Caso contrário não saberá discernir que tipo de demandas são adequadas para as IAs nem terá competência para interpretar os resultados destes processos.

O treinamento de especialistas com competência para desenvolver sistemas inteligentes não é desafio menor. A inteligência de máquina e os sistemas de aprendizado dependem profundamente de matemática avançada, em particular a álgebra linear e a estatística, e de programação e lógica. Existe risco evidente do uso das ferramentas mais modernas como caixas pretas onde um programador pode colocar em funcionamento sistemas complexos sem ter um bom domínio da tecnologia envolvida. Além da dependência cultural e tecnológica dos centros desenvolvedores isso cria restrição severa sobre a habilidade para tratar de novos desafios, especialmente aqueles de interesse restrito à comunidade local, tais como problemas dos países em desenvolvimento que não foram devidamente tratados pelos grandes centros de pesquisa.


Expectativa e Desafio Futuro

Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina


O que são e para que servem?

O aperfeiçoamento de tecnologias da informação, não diferente de outras tecnologias, tem causado grande impacto na sociedade humana. Grande parte deste impacto é positiva no sentido de aprimorar a experiência do indivíduo, liberando-o de tarefas mecânicas pesadas ou atividades intelectuais extenuantes. No geral a tecnologia amplia a capacidade humana de transformação da natureza ao mesmo tempo em que facilita a exploração científica que, por sua vez, realimenta o avanço tecnológico. No entanto os mesmos aspectos que podem ser benéficos também podem introduzir desafios. Máquinas, como ferramentas mecânicas, aumentam a eficiência e produtividade de um indivíduo, colateralmente provocando desemprego e concentração de renda. Da mesma forma máquinas eletrônicas que simulam as atividades de cognição e interpretação humanas estão, já há alguns anos, transformando a sociedade e as relações entre indivíduos de modo construtivo, em certa medida. Muitos aspectos desta transformação são claramente nocivos, como a evidente tendência da substituição de trabalhadores por máquinas “inteligentes” ou, por exemplo, a manipulação de opiniões para fins políticos usando o levantamento de perfis psicológicos. No entanto esta é uma tecnologia nova e de crescimento muito rápido e a maior parte do impacto causado por ela continua desconhecido e deve ser considerado com atenção.

A inteligência artificial (IA) começou a ser desenvolvida na década de 1950, em um esforço para automatizar atividades antes empreendidas apenas por humanos. Tomadas de decisão básicas podem ser implementadas por equipamentos simples, tal como um termostato que limita a atividade de um condicionador de ar desligando-o quando uma temperatura mínima é atingida. Processadores, que são o núcleo dos computadores eletrônicos, são formados por grande número de circuitos capazes de implementar testes lógicos básicos descritos na chamada Álgebra de Boole. Com o desenvolvimento da programação, que consiste em uma fila de instruções a serem seguidas pelo computador, tornou-se viável a elaboração de sistemas especialistas. Esses sistemas são compostos por uma longa série de instruções, geralmente com acesso a um repositório de informações (um banco de dados) para a tomada de decisões. Eles podem classificar vinhos, jogar xadrez, resolver problemas matemáticos usando apenas símbolos, entre muitas outras tarefas.

Apesar do sucesso de tais sistemas especialistas existem tarefas de complexidade muito superior à de jogar xadrez ou classificar objetos de um conjunto, mesmo que com milhares de elementos. Uma tarefa como a identificação e localização de objetos em uma imagem, por exemplo, exigiria um conjunto gigantesco de linhas de instruções ou informações em bancos de dados. Para tratar grandes volumes de dados e questões que não admitem soluções por meio de algoritmos fixos, mesmo que complexos, foi desenvolvido o Aprendizado de Máquina Artificial (Machine learning).

 

Ada Lovelace e Charles Babbage

Nas décadas de 1830 e 1840, quando Ada Lovelace e Charles Babbage desenvolveram o Analytical Engine, o primeiro computador mecânico, eles não o consideravam uma máquina a ser utilizada para a solução de problemas genéricos. Pelo contrário, ele foi concebido e utilizado em problemas específicos na área da análise matemática. Nas palavras de Lovelace:

O Analytical Engine não tem pretensões de criar coisa alguma. Ele apenas pode fazer aquilo que conhecemos e sabemos como instruí-lo em sua execução… Sua função é a de nos ajudar com o que já estamos familiarizados.…”

 

Essas conclusões foram analisadas por Alan Turing, o pioneiro da IA, em seu artigo de 1950 “Computing Machinery and Intelligence”, onde são introduzidos os conceitos de teste de Turing e outros que se tornaram fundamentos da IA. Ele concluiu que máquinas eletrônicas poderiam ser capazes de aprendizado e originalidade. Aprendizado de máquina (machine learning) é a resposta positiva para a pergunta: um computador pode ir além das instruções com as quais foi programado e aprender a executar tarefas?

O aprendizado de máquina representa um novo paradigma na programação. Ao invés de armazenar na memória do computador um conjunto de regras fixas a serem usadas na execução de uma tarefa o computador é carregado com algoritmos flexíveis que podem ser modificados por meio de treinamento. O aprendizado consiste em exibir para a máquina um conjunto grande de exemplos anotados (devidamente etiquetados) por um humano ou por outra máquina previamente treinada. Uma vez treinado o mesmo sistema será capaz de identificar corretamente (ou com bom nível de precisão) casos novos além daqueles antes exibidos.

 

Programação clássica x Aprendizado de Máquina

 

Suponha, por exemplo, que queremos identificar em uma pilha de fotos aquelas que contêm imagens de gatos ou cachorros. O código contendo os algoritmos é alimentado com fotos dos animais, cada uma devidamente etiquetada. Uma forma de avaliação de erro da previsão é fornecida juntamente com um algoritmo flexível que pode ser alterado automaticamente de forma a minimizar os erros da avaliação. Por meio da leitura repetida destas imagens o algoritmo é modificado para produzir o menor erro possível de leitura.

 

Treinamento de máquina

 

A este processo chamamos de treinamento. Em terminologia técnica dizemos que ele consiste em alterar os parâmetros do algoritmo de forma a minimizar os erros. Uma vez encontrados estes parâmetros o algoritmo pode ser usado para identificar novas fotos contendo gatos ou cachorros. Ao treinamento feito com o uso de dados etiquetados é denominado supervised learning (aprendizado supervisionado). É também possível submeter à análise do computador um conjunto de dados não identificados com a demanda de que o o algoritmo identifique padrões de forma autônoma e classifique elementos de um conjunto por similaridade desses padrões. No unsupervised learning (aprendizado não supervisionado) é possível que o sistema inteligente distinga padrões que mesmo um humano não seria capaz de perceber.

Machine learning é um método de análise e processamento de dados que automatiza a construção do algoritmo de análise.

O treinamento de máquinas depende da velocidade e capacidade de computadores mas, também, do acesso à informação ou dados. Esse acesso é fornecido pela atual conectividade entre fontes diversas de dados, armazenados de forma estruturada ou não. A habilidade dos computadores de realizar uma análise sobre um volume muito grande desses dados leva ao conceito de Big Data. A operação de busca e coleta desses dados é a atividade de Data Mining (mineração de dados) enquanto a seleção e interpretação desses dados é eficientemente realizada por sistemas inteligentes.

xkcd.com

Embora os primeiros passos na construção de sistemas de aprendizado tenham sido inspirados no funcionamento de cérebros e neurônios humanos (ou animais), as chamadas redes neurais artificiais não são projetadas como modelos realistas da arquitetura ou funcionalidade biológica. A expressão deep learning ou aprendizado profundo se refere apenas às múltiplas camadas usadas para o aprendizado artificial. A plasticidade do cérebro biológico, que é a capacidade de partes do cérebro de se reordenar para cumprir tarefas diferentes daquelas em que estava inicialmente treinado, levantou a hipótese de que algoritmos simples e comuns podem ser especializados para resolver tarefas diversas. Reconhecimento de imagens ou textos, por exemplo, podem ser efetuados por estruturas similares. A neurociência mostrou que a interação de partes simples pode exibir comportamento inteligente e complexo. Considerando as grandes lacunas existentes no entendimento da inteligência biológica, a memória e outras funções dos organismos vivos, é de se esperar que os avanços nessa área da ciência, juntamente com a evolução dos computadores, ainda venha a oferecer guias importantes para o aperfeiçoamento da inteligência artificial.


Onde o Aprendizado de Máquina é usado?

Porque estamos falhando no ensino de Matemática?

Neste artigo pretendo analisar os motivos pelos quais o ensino das ciências exatas, em particular a matemática, enfrenta dificuldades, propondo algumas correções e sugerindo o debate em torno do assunto.

Minha afirmação de que há um problema com o ensino destas disciplinas não é o resultado de uma pesquisa aprofundada entre professores e egressos dos bancos escolares. Ela simplesmente vem da experiência em sala de aula e da constatação da dificuldade com que os alunos de cursos superiores, especialmente nos períodos iniciais, enfrentam ao cursar disciplinas tais como matemática e física, e a claríssima falta de formação apresentada por eles. A isto acrescento o argumento de que pessoas adultas, mesmo com curso superior completo em área do conhecimento que não em ciências exatas, muito pouco ou quase nada retém como conhecimento assimilado do conteúdo supostamente ministrado durante as fases de ensino básico e médio. É comum ouvir as pessoas reclamarem de que sofreram muito em seus cursos de matemática e física e, se pouco ficou retido ou acumulado como conhecimento adquirido, resta perguntar: para que todo este sofrimento?

Esta não pretende ser uma crítica aos colegas professores, em suas abordagens particulares do tema em sala de aula, e nem ao aluno que tem dificuldades no aprendizado. Pelo contrário, acredito que existem erros estruturais na abordagem de ensino e que é possível adotar rumos mais eficientes. Defendo que é possível alcançar níveis acadêmicos muito superiores aos atuais e, por isto, proponho um debate sobre como obtê-los. Para tanto separei a discussão em tópicos, consciente de que estes são interligados e se afetam mutuamente.

  • Investimentos insuficientes na educação longo da história do pais.
  • Educação familiar deficiente e excessiva dependência da escola na educação básica das crianças.
  • Escolha infeliz de tópicos na construção de ementas para o ensino básico e médio. Abordagem incompleta da matemática moderna.
  • Gap de gerações, principalmente devido à informatização.

Investimentos na educação insuficientes ao longo da história do pais

Este tópico afeta a educação de forma abrangente e não apenas o ensino de matemática. É evidente que se gasta muito pouco com educação no Brasil. Ensino de boa qualidade custa caro principalmente com remuneração de pessoal qualificado, aquisição de boas instalações e equipamento para laboratórios, computadores, ferramentas auxiliares de exposição e material de apoio. No entanto existe boa convergência entre os analistas de que este gasto é certamente o investimento de melhor retorno que pode fazer uma nação.

Em primeiro lugar há o desestímulo que existe para que uma pessoa abrace a carreira de professor, sabendo que estará submetida a condições de trabalho impróprias e salários defasados em relação as outras profissões. Hoje é bem conhecida a recusa dos jovens em se preparar para o trabalho em sala de aula e consequente falência de inúmeros cursos de licenciatura em ciências exatas nos diversos estados. Cada vez mais os cursos de licenciatura se tornam menos atraentes para os alunos de melhor formação básica. A própria forma de se encarar um curso de licenciatura é sintomática de um problema: alunos que se preparam para o ensino são frequentemente tratados como alunos de segunda classe e recebem apoio e estímulo inferior ao que se dá a seus colegas de bacharelado. Além disso os cursos são de menor duração, sendo realizados em apenas três anos, tempo insuficiente para criar uma base sólida de conhecimento na disciplina específica escolhida e, ao mesmo tempo, em pedagogia. A maioria dos alunos de licenciatura, especialmente nas escolas particulares, frequenta cursos noturnos e trabalha durante o dia, muitas vezes em regime de tempo integral, o que torna impossível para eles uma assimilação mínima do conteúdo. São estes alunos, formados de modo mediano, que compõem o quadro do professorado brasileiro atual, sem mencionar uma grande quantidade de professores sem formação específica nas disciplinas que lecionam.

Como ilustração, considere os níveis mais básicos da escola, oferecidos para as crianças mais jovens. Neste setor do ensino estão os professores com piores remunerações e com formação mais inadequada e insuficiente. As professoras ou “tias” são quase sempre pouco mais que “babás”, à despeito de uma “proposta pedagógica” elegante e bem elaborada que a escola certamente possui e guarda orgulhosa em seus arquivos e que estas professoras desconhecem ou não compreendem. Os estudos mais modernos sobre o desenvolvimento da cognição humana mostram que os anos iniciais de uma criança são marcados por um aprendizado rápido e intenso. Esta é a fase em que toda a base educacional, além do próprio caráter do indivíduo, é construída. Não me parece portanto apropriado entregar às pessoas com menor nível de formação as crianças em sua fase de maior potencialidade.

Reconhecidas as exceções das pessoas mais dedicadas que, por gosto ao ensino ou pela disciplina que ministra, procuram complementar sua formação, pode-se constatar uma formação acadêmica insuficiente nos profissionais do ensino e um apoio à educação continuada muito reduzido. Isto torna difícil uma reformulação de currículos e conteúdos programáticos que é necessária, como pretendo enfatizar.

Muitos outros fatores contribuem para a desestruturação da escola, entre eles a imposição oficial de propostas elegantes e pouco práticas que se alternam e se substituem em ritmo demasiado rápido para que mesmo um professor mais atento se mantenha familiarizado com elas.

Há um aspecto político importante associado a este problema. É muito evidente que o Brasil representa mundialmente apenas um mercado consumidor e que não precisa fazer um grande esforço para se manter atualizado com a rápida evolução científica e tecnológica mundial. O pais produz hoje um número reduzido de artigos e registros de patentes, em comparação com outras nações do mesmo porte. Este conceito, que parece dominar a elite dirigente, infelizmente está incorporado visceralmente pelas famílias e pelos próprios alunos que não assistem de perto à evolução tecnológica e que estão habituados simplesmente a comprar tecnologia pronta, assim como faz o próprio pais. A resistência contra o atingimento ou manutenção de ensino em nível elevado parte também destes alunos que não encontram motivos para se esforçar, tendo em vista um mercado de trabalho que parece valorizar pouco o desempenho acadêmico.
sala de aula

Dentro de um panorama de multi nacionalização irreversível, o esforço para obter bom nível de ensino representa um ato de resistência política, uma luta contra a incorporação de nosso pais que, se envolto pela globalização sem o devido preparo, será engolido e destruído, simplesmente.

Educação familiar deficiente e excessiva dependência da escola na educação básica dos jovens

Outro ponto importante fica explícito na queixa frequente, por parte dos mestres, de que os alunos não recebem uma educação básica em seus núcleos familiares, enquanto os pais exigem muito da escola na reposição desta carência. A “falta de educação” se reflete em relações interpessoais difíceis em sala de aula, com alunos agredindo verbalmente e até fisicamente seus professores que não contam com o apoio da escola, da família ou da própria sociedade e, com toda razão, sentem-se acuados. Esta característica é realimentada pela deficiência técnica dos professores que acabam por não impor respeito a seus alunos por pura e simples falta de boa formação técnica. A comum identificar uma situação em sala de aula onde o professor inseguro de suas respostas prefere adotar a postura de não tratar das perguntas feitas ou respondê-las de forma incorreta. O professor que não tem uma visão ampla do tema que leciona fecha as portas da curiosidade que leva ao aprofundamento e à pesquisa e não engaja o estudante em uma relação de respeito e cordialidade.

Escolha infeliz de tópicos na construção de ementas para o ensino básico e médio. Abordagem incompleta da matemática moderna.

Um ponto que considero ser um entrave para a boa evolução do ensino das ciências exatas está na escolha de tópicos e construção de ementas e grades curriculares. Como professor do ensino superior considero necessária uma reformulação destas ementas. Muitas vezes, em minha experiência em sala de aula, ouvi alunos, pais e até mesmo professores de matemática e pedagogos atribuírem a culpa da queda na qualidade do ensino à adoção da chamada matemática moderna. Estas pessoas costumam afirmar que antigamente os alunos aprendiam a fazer contas e que podiam memorizar com mais eficiência os tópicos elaborados pelo professor. Também é comum ouvir os pais reclamarem que não conhecem esta matemática e, por isto, não podem ajudar seus filhos no processo de aprendizagem.

(1) Entre eles estavam Henry Cartan, Jean Diedonné e André Weyl, no grupo inicial, que se inspirou nos avanços da escola alemã, representada por exemplo, por David Hilbert e Emily Noether. Mais tarde verificamos entre eles a presença de Serge Lang, Laurent Schwartz e vários outros.A história do grupo é fascinante e pode ser lida com algum detalhe no artigo sobre a História do Cálculo, neste site.

Este tema exige uma consideração mais detalhada. A matemática moderna é a designação que se dá a uma reforma do ensino e da própria compreensão da matemática ocorrido na França em torno de 1935 e anos seguintes e que desembarcou no Brasil na década de 1960. Havia naquela época, em toda a Europa, uma carência de professores experientes e com maior titulação, uma vez que muitos haviam morrido durante a primeira guerra mundial. Um grupo de jovens professores se reuniu para criticar os livros didáticos existentes, iniciando pelo livro adotado para o cálculo, e resolveu reescrever textos didáticos imprimindo neles uma maior organização lógica e didática. Os textos eram publicados pelo grupo sob o pseudônimo de Nicholas Bourbaki, um personagem fictício, adotado apenas como brincadeira e para indicar que o resultado era o esforço de um grupo. Mais tarde muitos dos participantes daquela iniciativa mostraram ser grandes matemáticos(1). Estes professores se reuniam e discutiam extensamente todas as contribuições oferecidas e os textos eram reescritos diversas vezes até se encaixarem plenamente dentro da proposta do grupo. Resumidamente o grupo Borbaki considerou que a matemática deveria ser baseada sobre a teoria dos conjuntos e que deveria manter, ao longo do processo de ensino, rigor lógico e simplicidade. Para isto criaram uma nova terminologia e reformularam conceitos ao longo dos tempos.

Congresso Bourbaki em 1939: Simone Weil, Charles Pisot, Andre Weil, Jean Dieudonné, Claude Chabauty, Charles Ehresmann, Jean Delsarte.

Aos poucos a reforma proposta por Bourbaki se instalou na educação francesa e depois se espalhou para todo o mundo. Naquela época era muito comum que matemáticos brasileiros buscassem na França sua titulação mais avançada, de forma que esta reforma logo se instalou no Brasil. O grupo Bourbaki recebeu também muitas críticas, as principais se referindo à ausência de um tratamento mais completo, sob forma de algoritmos, para a solução de problemas e uma supervalorização da álgebra em detrimento do pensamento geométrico. Muito foi dito sobre a ausência de figuras nos textos do grupo.

Embora aceite a afirmação de que não podemos simplesmente copiar uma iniciativa feita há quase um século, defendo aqui que a proposta básica de Bourbaki está correta e que a matemática deve ser inteiramente construída sob a noção básica de conjuntos. Afinal, a matemática é de fato um estudo sobre conjuntos e as relações entre eles. A reforma proposta pelo grupo francês não foi inadequada mas incompleta ou implementada de modo incompleto entre nós. Os alunos modernos deveriam assimilar os conceitos lógicos da matemática e, de posse destes, aprender a resolver problemas, que podem ser de natureza pragmática e aplicada sempre que possível, sem detrimento da formação mais abstrata e teórica. Considerações geométricas podem e devem ser usadas amplamente, assim como a contextualização do conteúdo e aplicação em problemas cotidianos, sempre que aplicável. Além disto, em uma época dos computadores e calculadoras de baixo custo e alta eficiência, não faz sentido sobrecarregar os alunos com operações complicadas e sofridas embora, claro, todos necessitem conhecer os procedimentos ou algorítimos usados para realizar as operação básicas.

Considero que a escolha de tópicos e níveis de abordagens do conteúdo das séries básica e média é inapropriada e ineficaz e necessita de ampla reformulação. A consideração sobre conjuntos deve ser mantida e ampliada. Relações entre conjuntos e membros dos conjuntos devem ser exploradas a cada passo, as operações fundamentais devem ser apresentadas neste contexto. O ensino da matemática em seus níveis mais básicos e fundamentais deve buscar a construção do pensamento lógico, da construção conceitual. Sendo impossível prever quais, entre todos os alunos, buscarão os níveis superiores das ciências exatas, é necessário ter uma cobertura flexível que permita o avanço dos mais inclinados a isto, sem submeter a totalidade dos alunos à exigência da obtenção de competências inatingíveis.

Gap de gerações

A meu ver existe uma dificuldade referente ao ensino que ultrapassa de longe as barreiras nacionais e não é exclusividade de nosso pais. Ela pode ser sentida em sala de aula, quando um professor mal treinado tenta ensinar “informática” para seus alunos pedindo que cliquem em um determinado ícone, ou arrastem, ou copiem e colem textos e imagens. Enquanto o professor termina seu duplo clique os alunos já se conectaram com os amigos em salas de bate papo, já enviaram seus textos repletos de abreviações assassinas da língua portuguesa, já editaram a imagem de uma colega inserindo-a em uma foto sensual e, com um pouco de sorte (ou azar!) algum aluno mais qualificado já invadiu o site de uma grande empresa e deixou lá um recado atrevido.

Existem estudos que mostram que a distância entre gerações pode ser sentida cada vez para diferenças de idade menores. Um aluno jovem hoje se senta para fazer a lição de casa com a televisão ligada, ouvindo música e falando com os amigos em salas de relacionamentos. E ele (ou ela) consegue fazer isto! A informática e a ampliação da disponibilidade da informação por meio da internet estão transformando o mundo de uma forma difícil de assimilar para as gerações com formação consolidada, entre eles pais e professores.

Hoje faz muito pouco sentido, ou talvez nenhum, pedir um trabalho escrito para os alunos, a menos que o professor seja versado em mecanismos de buscas e esteja disposto a passar a madrugada procurando as fontes de onde foram retirados os trabalhos e verificar se eles apresentam alguma criação do aluno ou apenas demostram capacidade de “copiar e colar”. Além de tomar iniciativas primárias (como a de proibir a wikipedia) é necessário aprender a usar a informática a favor da educação. Muitos alunos conseguem adquirir habilidades novas e extraordinárias através da internet, coisas tais como usar um software de edição de imagens ou vídeos ou até mesmo aprender a tocar um instrumento musical.

(2) Por exemplo o uso de softwares algébricos, tais como Mathematica, Maple ou Sage nos cursos de Cálculo não é simples e não foi ainda satisfatoriamente elaborado.Outra escolha interessante é o site Wolfram Alpha.

É claro que o uso do computador, estando em rede ou não, será parte integrante da vida das pessoas no mundo civilizado, e cada vez mais presente. Será preciso então incorporá-lo ao dia a dia das escolas de forma efetiva. Necessário será reconhecer que a plena utilização do computador como ferramenta didática não é plenamente conhecida e muitas iniciativas não apresentaram os resultados esperados(2). Defendo que os alunos devem ter uma informação básica em computação e que deveriam, pelo menos, conhecer os fundamentos da programação. O uso de uma máquina complicada, seja o computador ou outra qualquer, sem a menor noção de seu funcionamento favorece a formação de uma visão obscurantista da sociedade em que vivemos.

Gráfico gerado pelo software algébrico Sage

Nos dias atuais um indivíduo chega em casa e acende uma lâmpada cujo funcionamento só pode ser razoavelmente compreendido em termos de física quântica. Ele uso relógios e telefones onde os elétrons tunelam (atravessam) barreiras clássicas e, se ficar doente, pode fazer uso de um PET (positron emission technology), um aparelho que usa antimatéria (no caso o pósitron ou anti-elétron) para fazer um mapeamento minucioso e em camadas de seu corpo e órgãos internos.

É evidente que não se pode esperar que todos conheçam todos os ramos do conhecimento, mas é desejável que todos tenham uma boa noção sobre o funcionamento dos aparelhos e tecnologias que usam. Caso contrário estaremos usando caixas pretas ou “mágica” no sentido proposto pela terceira lei de Clarke-Asimov: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.

Aliás, vivemos já em um momento estranho da história da civilização, em que ciência e tecnologia avançada convivem com a miséria e a ignorância. É claro que este problema tem como causa maior a desigualdade na divisão de recursos em todo o planeta, que gera bolsões de extrema pobreza e ignorância. Mas mesmo entre as pessoas e sociedades mais favorecidas persiste e até floresce o obscurantismo sob forma de conservadorismo, de religiões fundamentalistas e outras mazelas do espírito humano desinformado, e de superstição pura e simples. Já há alguns séculos na história humana é impossível que uma pessoa domine todas as áreas do conhecimento. Isto torna ainda mais relevante a escolha de tópicos essenciais que devem prevalecer no esforço educacional. Caso contrário teremos um novo período de trevas em que poucos cientistas e técnicos, geralmente sob o jugo forte do poder econômico, ditarão a forma de vida dos cidadãos comuns, meros consumidores e espectadores do progresso e da evolução.

O Efeito Placebo

Suponha que você tome um comprimido grande e amargo para uma dor de cabeça, uma depressão ou um problema na pele e verifica que o remédio se mostra eficiente e resolve o seu problema. Mais tarde você descobre que tomou apenas uma pílula inerte, sem nenhum medicamento, composta de farinha ou lactose e algum elemento para dar um gosto amargo. Pronto, você acaba de encontrar o “efeito placebo”.

* Não estou afirmando que a acunpuntura seja apenas um placebo. Simplesmente não tenho essa informação.

A experiência clínica indica, que quanto maior o comprimido e quanto mais amargo, maior será seu efeito. Comprimidos grandes, triangulares ou de cores intensas funcionam melhor que pílulas pequenas, de formato comum e sem cor. Tratamentos complexos, envolvendo máquinas, correntes elétricas ou aparatos tecnológicos funcionam melhor do que uma simples massagem, a menos que o paciente atribua ao massagista ou terapeuta algum dom ou virtude extraordinária. Placebos podem ser aplicados sob a forma de pílulas, cremes, inalantes, choques elétricos e até aparelhos de ultra som. A acunpuntura*, com agulhas aplicadas em pontos aleatórios, e eletrodos supostamente (mas não de fato) implantados no cérebro também demonstraram ser placebos eficientes. Placebos são importantes até mesmo em relação à substâncias comprovadamente eficazes, sendo que a reação do paciente consciente de que está recebendo uma droga é diferente da reação daquele que recebe a mesma droga sem o saber.

Placebo. Fórmula: farinha de mandioca, açúcar de beterraba e jiló

Uma ampla discussão sobre o uso deliberado do placebo para fins terapéuticos tem ocorrido ao longo dos anos sendo a crítica mais importante baseada na ética questionável da ilusão e engano do paciente. Por outro lado é difícil negar que muitas práticas terapéuticas antigas e outras não tão antigas, hoje consideradas ineficazes, resultaram em benefício de quem procura um médico ou curador.

A expressão “efeito placebo” foi usada originalmente para descrever um engano ou uma ilusão quanto ao uso de medicamentos ou tratamentos médicos diversos. Hoje, e cada vez mais, ela adquire um significado novo e importante, que não pode ser desprezado. O placebo cura e este fato precisa ser estudado e explorado em benefício de quem sofre de alguma forma. Claramente o efeito indica a importância do cérebro e sistema nervoso central para a manutenção da saúde e sua restauração, no caso de doenças. Para designar o efeito contrário ao desejado, quando um placebo causa desconforto e piora do paciente, foi inventada a palavra “nocebo”. A existência de nocebos não faz mais que reafirmar a importância do fenômeno.

Placebos são tão importantes que a pesquisa e a industria farmacéutica, ao investigar o funcionamento de uma nova substância, precisa realizar testes comparativos entre a substância estudada e um placebo, inerte. Este é o procedimento denominado “duplo cego randomizado”, onde uma parte dos pacientes recebe placebo e a outra recebe o medicamento. A palavra “randomizado” vem de random (do inglês) que significa aleatório. A expressão duplo cego significa que nem os aplicadores nem os pacientes podem saber que lote contém a substância em teste uma vez que, como já se sabe, este conhecimento (exatamente por conta do efeito placebo) altera o resultado da pesquisa. Os médicos aplicadores acompanham seus pacientes sem saber se eles estavam sob efeito do medicamento ou do placebo e enviam seus resultados para os pesquisadores. A conclusão final deve ser obtida por meio de um rigoroso estudo estatístico. Talvez seja uma surpresa para muitos saber que alguns medicamentos (os antidepressivos, por exemplo!) funcionam muito pouco acima dos placebos contra os quais foram comparados!

A abordagem “duplo cego” é importante em outros contextos além da pesquisa farmacêutica, por exemplo em contextos que envolvem comportamento e reações humanas. É bem conhecido, por exemplo, o efeito de cura obtido por um médico atencioso que dedica algum tempo simplesmente ouvindo seu paciente e o reconfortando, ou do médico otismista em oposição aquele que praticamente desengana seu paciente, mesmo que involuntariamente. Também as “cirurgias simuladas”, independentemente de sua validade ética, demonstram fazer efeitos sobre os pacientes. Pode até mesmo ocorrer que um paciente passe por um processo de cura mesmo sabendo que está recebendo placebos, embora a crença ou confiança na validade do tratamento seja uma parte essencial deste efeito.

Cabe ainda notar que o efeito tem importância diferente para diferentes doenças e que nem todos os médicos e pesquisadores estão completamente confiantes em seu poder. Por outro lado ele oferece uma “explicação” razoável para algumas curas milagrosas, tratamentos paranormais, poder da prece e de fé, entre outros.

A questão do tratamento estatístico é importante e de difícil compreensão para os leigos na área de pesquisa. Muito pouco adianta uma, duas ou dez pessoas afirmarem que um determinado medicamento é eficaz ou não. A natureza pouco intuitiva de alguns comportamentos estatísticos faz com que seja essencial um tratamento matemático rigoroso.

George Price e o Altruísmo Biológico

O que você faria se, como pesquisador, concluísse que o altruísmo puro e desinteressado não existe embora, por motivo de fé acreditasse e defendesse que ele existe? Até que ponto você levaria seu esforço para ser generoso, mesmo que isto significasse a sua própria derrocada?

Muitas vezes na história da ciência um pensador não recebe em vida o crédito e o reconhecimento merecido. Foi o que ocorreu com o cientista americano George Robert Price. Price foi uma pessoa interessante e controversa, até recentemente pouco conhecida do público em geral. Nascido em 6 de outubro de 1922, se formou em química e trabalhou em áreas diversas, passando pelo Projeto Manhattan, depois pela Bell Labs. Mais tarde trabalhou na IBM onde foi um dos precursores no desenvolvimento de sistemas CAD (computer aided design). Price também contribuiu para o jornalismo científico escrevendo diversos artigos, alguns deles atacando como pseudocientífica a pesquisa em paranormalidade, muito em voga na época. Em torno de 1966 ele foi diagnosticado com câncer na tireoide e passou por uma cirurgia que deixou seu ombro esquerdo parcialmente paralisado e dependente de medicamentos. Price então se mudou para Londres e se envolveu no estudo da genética tentando resolver um problema importante da biologia evolucionária, com consequências importantes para a compreensão do comportamento dos animais e do ser humano. Por que alguns organismos se sacrificam para o benefício de outros organismos?


Anteriormente à descoberta do câncer e a consequente cirurgia, Price sempre fora uma pessoa cética e um ateu convicto. Ele era pouco sensível para com familiares, tendo abandonado esposa e filhas e sua mãe já idosa. Mais tarde, principalmente afetado pela doença e a depressão causada pela tireoide debilitada, ele se converteu ao cristianismo e se dedicou inteiramente a demostrar, por meio do exemplo pessoal, que o altruísmo é possível. De completo cético ele assumiu uma atitude radical fazendo aquilo que acreditava ser a vontade de Deus e supondo que este o proveria com os hormônios necessários. Sua postura de altruísmo radical o levou à pobreza completa que, por sua vez, provocou uma piora no estado de sua doença. Price se suicidou em 6 de janeiro de 1975, totalmente pobre e tomado pela depressão.

Altruísmo biológico

Para compreender o problema que atormentava George Price é necessário saber o que se entende por altruísmo em biologia. O altruísmo ocorre quando qualquer organismo atua de forma a beneficiar outro organismo no que diz respeito à sua saúde ou possibilidade de sobrevivência, em prejuízo para seu próprio bem-estar. Não é necessário que exista intenção, consciente ou não. O altruísmo psicológico, por sua vez, é algo bastante diferente, sendo uma ação que necessariamente involve intenção. Apesar de serem conceitos diversos é cabível discutir se existe conexão entre as duas formas de desprendimento. O cérebro humano, assim como todo o resto de nosso corpo, é o resultado da evolução e da seleção natural. Grande parte de nosso comportamento, atitudes e reações, mesmo aquelas que julgamos serem puramente culturais, são na verdade derivadas de propriedades adquiridas e inseridas ao longo de eras evolutivas em nossas características genéticas.

Pelo processo da seleção natural organismos mais aptos para a sobrevivência, com maior probabilidade, se reproduzirão e gerarão maior número de descendentes. Características biológicas favoráveis para a preservação da espécie incluem a eficiência na obtenção dos recursos para a manutenção da saúde e da vida em si, para escapar de predadores naturais ou superar desafios tais como alterações no meio ambiente e ataques externos de doenças. A habilidade para atrair parceiros do sexo oposto, ou superar competidores neste mesmo processo, também são decisivos para a escolha de quais genes serão replicados ou não. Estas propriedades são passadas adiante para a prole do indivíduo bem sucedido, enquanto características debilitantes levam o indivíduo à morte ou a diminuição de sua capacidade reprodutora. Isto não só seleciona indivíduos dentre os de uma mesma espécie com também estabelece níveis hierárquicos entre espécies diversas. O mecanismo básico de seleção, a “sobrevivência do mais apto”, é uma competição muitas vezes feroz que separa a eficiência da ineficiência.

Apesar da competição predominante na natureza, também são observados atos de altruísmo, de auto-sacrifício de indivíduos ou grupos em relação a outros. Muitos exemplos de altruísmo podem ser observados na natureza: alguns pássaros aceitam chocar ovos que não os seus próprios e indivíduos estéreis ajudam na criação dos filhotes (como ocorre entre abelhas e formigas), abelhas se matam ao ferroar um inimigo para proteger a colônia e pássaros ariscam a própria vida para avisar o bando da aproximação de um falcão. Um caso extremo ocorre com a aranha Stegodyphus cujos filhotes recém nascidos devoram a mãe como estratégia de sobrevivência.

Isto levanta uma questão importante: como pode ter surgido o altruísmo entre seres vivos? Por que alguns organismos se sacrificam em benefício de outros, às vezes até mesmo não-parentes?

Os atos mais comuns e extremos de altruísmo animal são realizados pelos pais, especialmente mães, para com os filhos. Pais e mães criam os filhos em seus ninhos, às vezes em seu próprio corpo, os alimentam com grande custo para si mesmos e se arriscam ao protegê-los dos predadores. Um exemplo disto são as aves que simulam fraqueza para atrair para longe do ninho um predador. Uma ave manca na frente de uma raposa, estendendo uma asa como se estivesse quebrada para atraí-la para longe de seus filhotes, colocando sua própria vida em risco.

Para explorar mais extensamente a natureza do problema do altruísmo, considere uma comunidade onde existem indivíduos altruístas e outros egoístas. Os indivíduos egoístas podem ter sua vida facilitada pelo altruísmo dos demais e ser mais bem sucedidos em sua sobrevivência e reprodução. Com o passar dos tempos a comunidade estará formada principalmente por uma maioria egoísta. Por outro lado, entre dois grupos diferentes, um grupo de altruístas pode ser mais eficiente na estratégia de sobrevivência por estarem em cooperação mútua, enquanto o grupo de egoístas pode dificultar sua própria sobrevivência por meio da competição exacerbada. Este é um caso de conflito em diferentes hierarquias biológicas, coberto pela equação proposta por Price.

Do ponto de vista do gene, de acordo com Haldane, compreender o altruísmo não é tão complicado. Um indivíduo pode perfeitamente sacrificar sua vida para salvar um filho ou um parente, de forma a que este sacrifício represente a perpetuação dos genes que ambos partilham. Neste caso houve um sacrifício para que o gene se beneficiasse.

Nos humanos o altruísmo tem suas raízes no sentimento de empatia que surge quando observamos pessoas em situações de angústia ou emergência. Esta capacidade nos humanos (e mamíferos em geral) está relacionada ao aleitamento pelas mulheres de sua prole. Isso explica porque as mulheres mostram ser, em geral, mais empáticas que os homens. A empatia é estimulada pela oxitocina, um hormônio envolvido no parto e aleitamento. Em experimentos de laboratório humanos de ambos os sexos exibem um aumento em suas respostas empáticas quando se aplica a oxitocina em suas narinas.A oxitocina é produzida pelo hipotálamo e tem a função de promover as contrações musculares uterinas durante o parto e a ejeção do leite na amamentação. Ela é responsável por um aumento no sentimento de empatia, de reconhecimento social, na ligação entre casais, supressão da ansiedade e ampliação do sentimento de uma mãe para com seu filho. Ela também causa a sensação de prazer que uma mãe tem ao dar a luz o seu bebê, quando um pai segura o filho nos braços ou simplesmente quando as pessoas ligadas por afeto se abraçam. Como ocorre com a prolactina, a concentração de oxitocina aumenta depois de uma relação sexual. Por outro lado a carência da oxitocina no organismo está associada à sociopatias e psicopatias.

Após descobrir sua doença e ser operado sem grande sucesso George Price se mudou para Londres e enviou uma carta para William Hamilton, considerado um dos estudiosos da teoria da evolução mas importantes desde Darwin. Nele ele pedia uma cópia de um artigo e informava que estava interessado na questão do altruísmo, se propondo a resolver o problema em aberto. Hamilton, que estava de saída para uma expedição de estudos no Brasil, enviou o artigo requisitado sem dar maior atenção ao pedido uma vez que Price não tinha nenhuma formação em biologia e era um desconhecido na área. No entanto, ao voltar alguns meses depois ele encontrou um texto de Price onde estava apresentada a equação, hoje conhecida como Equação de Price. Esta equação descreve a dinâmica da seleção natural, útil para a compreensão de sistemas de organismos onde existem conflitos entre interesses do gene e do indivíduo ou entre interesses do indivíduo e do grupo. O altruísmo consiste em um exemplo clássico deste conflito.

Quando Price encontrou sua equação ele foi imediatamente se consultar com os biólogos da UCL perguntando se aquilo era uma novidade ou algo já conhecido. E lá descobriu que a equação representava uma novidade e um grande avanço na área. Por isto foi quase imediatamente admitido como professor naquela Universidade, obtendo um local de trabalho e uma bolsa de pesquisa. Ele passou a trabalhar em cooperação com William Hamilton e John Maynard Smith, dois dos maiores teóricos ingleses da biologia evolucionária naquele tempo.

Durante o período em que colaborou com os pesquisadores em biologia ele fez três contribuições importantes: encontrou novo desenvolvimento para o trabalho de W. Hamilton sobre a seleção de parentesco, o que resultou em sua Equação de Price, introduziu com John Maynard Smith o conceito de estratégia evolucionária estável (um conceito central para a teoria dos jogos) e formalizou o Teorema Fundamental de Fischer para a Seleção Natural.


Embora bem sucedido em sua busca e tendo seus artigos mais importantes publicados, Price se afastou do pensamento científico e assumiu uma vida de ascetismo cristão. Obcecado por coincidências numéricas, ele fazia operações matemáticas usando dados de sua própria vida, como datas e números de documentos pessoais, e concluiu dos resultados obtidos que não poderia haver coincidência naqueles números. Em seu entendimento ele estava recebendo uma ordem de Deus para realizar alguma tarefa. Muitos de seus colegas relataram perceber nele, neste período, um comportamento autista e antissocial.

Ao explorar as consequências da equação por ele mesmo desenvolvida Price ficou profundamente impressionado com o fato de que o altruísmo sempre envolvia algum tipo de ganho para o indivíduo ou sua espécie. Parecia não existir altruísmo puro e incondicional. Desapontado, ele resolver mostrar por meio do exemplo pessoal que a teoria poderia ser suplantada pelo esforço e boa vontade humana. Por isso saiu percorrendo as ruas de Londres procurando por pessoas desvalidas, alcoólatras, moradores de rua ou qualquer um que precisasse de apoio, decidido a iniciar um programa radical de interferência altruísta na vida destas pessoas. Ele cedia seu dinheiro, comprava comida e oferecia ajuda para qualquer tipo de problema que aquelas pessoas pudessem ter, ajudando-as inclusive com seus problemas legais ou com a polícia. Com o passar do tempo, Price passou a abrigar os sem-teto em casa sendo obrigado a dormir no laboratório quando sua casa se tornou cheia demais. Esta situação perdurou até que seus próprios recursos se esgotaram e ele se tornou mais um dos destituídos, tendo que morar nas ruas junto com as mesmas pessoas que pretendeu ajudar. Aos poucos ele entrou em um processo de degeneração, desenvolvendo mais uma vez uma forte depressão, em parte causada pela impossibilidade de adquirir os medicamentos necessários. Sua degeneração foi atribuída à interrupção no uso dos medicamentos e à decepção frente à incapacidade de transcender as forças biológicas a atingir o auto-sacrifício e o altruísmo.


George Price morreu completamente pobre e abandonado. Poucas pessoas compareceram a seu enterro, dentre elas alguns companheiros de vida nas ruas, gente que o adorava por ter recebido dele ajuda em momentos de dificuldades. Em meio ao grupo que compareceu ao funeral estavam William Hamilton e John Maynard Smith, em reconhecimento pela sua genialidade. Seu corpo foi enterrado em um túmulo não identificado, no cemitério de St. Pancras em Londres, onde permanece até o presente. Mais tarde suas filhas providenciaram a instalação de uma lápide onde se lê: “Pai, altruísta, amigo. Um cientista brilhante responsável pela equação de Price para a evolução”.

A comunidade científica demorou a perceber o alcance das contribuições de Price, que era uma novidade no campo da abordagem matemática para as questões biológicas. Apesar da importância da fórmula por ele proposta, “a fórmula de covariância aplicada à seleção de grupos”, o próprio Price nunca buscou reconhecimento ou procurou atrair a atenção da comunidade para sua obra. Nas palavras de Hamilton, um pouco antes de morrer “É como se você houvesse descoberto o cálculo e o atirasse em um de seus artigos obscuros sem nunca explicar para as pessoas como ele é útil”. Em 1975 Hamilton escreveu um artigo onde tentava popularizar o tratamento de Price, mas o artigo recebeu pouca atenção e a contribuição original de Price continuou desconhecida. Apenas mais recentemente seu trabalho foi notado e até hoje recebe reconhecimento e atenção.

Referências:

Discussão: George Price e o Altruísmo Biológico

Dimas enviou em 06/09/2013:
Li todo o artigo e conclui que: Parece muito com a politica Brasileira, “politicos “egoístas” se aproveitando do “Povo altruísta”…

Guilherme enviou em 06/09/2013
Dimas, acredito existir uma patologia, algo como a falta de empatia entre pessoas que julgam poder se apropriar de recursos da comunidade. Assim como as escolas atraem pedófilos o setor público, por onde circula o dinheiro, atrai psicopatas desonestos.Eu trocaria a expressão “povo altruísta” por povo desinformado e apático.

Samuel S. Ferreira enviou em 16/10/2013
Olá. Li o teu comentário, compreendo porem discordo. Os politicos não se aprovietam de um povo autruista mais sim ignorante, acomodado e manipulável.

Fátima Bezerra enviou em 16/03/2013
Olá,
Minha curiosidade sobre Jeorge Price despertou quando assisti um filme na TV Futura, comentando sobre a sua vida e as suas pesquisas no campo da biologia. Então pus-me a busca de algo a mais consistente sobre essa figura tão peculiar. Sua vida conturbada, sua inteligência, suas contribuição a ciência faz-nos pensar se estamos aqui para contribuir com nossos genes para melhora e perpetuação da raça humana (altruismo genético) ou se realmente fazemos algo por intenção racional(altruismo psicológico). Pois se tudo estiver em nossas células, somos máquinas maravilhosas e perfeitas, mas sem dúvidas existirão aqueles que com seu egoísmo exacerbado se aproveitarão para impor sua supremacia.

Será que neste caso, a biologia suplantará a sociologia? Um abraço. Fátima Bezerra.

Guilherme enviou em 06/09/2013
Fátima,
me parece que a pergunta mais correta seria: podemos suplantar as tendências biológicas inerentes à condição humana?As forças biológicas, até agora, sempre ou quase sempre suplantaram todas as nossas outras tendências e inclinações. Acho importante reconhecermos que somos bichos e agimos como tais.

Acredito, no entanto, que temos a capacidade para refletir e suplantar algumas destas forças puramente animais. Um exemplo disto está no uso do controle da natalidade, prática hoje amplamente difundida em quase todos os grupos e níveis sociais.

GuilhermeRodinely Sousa enviou em 08/08/2013
Um dos poucos artigos encontrados na internet em língua portuguesa sobre a vida desse homem fantástico chamado George R. Price, que alternou de forma singular entre a genialidade e a mais profunda loucura. Parabéns e muito obrigado.

Samuel de S Ferreira em 16/10/2013

Ola.
Passei a ter interesse pela obra de George R. Price após ver um documentario de tv no Discovery Chanel, assim como vc, e como conclusão me fiz a mesma pergunta será que neste caso, a biologia suplantará a sociologia? Que situação não? A resposta que tenho até o presente momento é para mim desanimadora, é bem mais facil e comum ser bem sucedido ao adotar comportamentos egoistas, não é preciso muita força para isto notar, basta ter espelho.

George R. Price, que figura facinante!

Rafael enviou em 06/11/2013
O Sr. Price era um ateu que se achava um Deus de uma matemática a qual nem ele acreditava.

Guilherme: George Price era inicialmente ateu. Mais tarde, aos 48 anos ele julgou ter passado por uma experiência religiosa e se tornou um fervoroso defensor e estudioso do Novo Testamento. Esta experiência, de acordo com seus biógrafos, se derivou de ele julgar que em sua vida ocorriam um número muito grande de coincidências.

Alessandro enviou em 28/11/2013
para mim é claro que George Price buscou a religião como uma fuga de seu estado doentio e depressivo.

É curioso como, ao perceber que na natureza não existe generosidade (ou se existe é muito rara) ele tenha perdido o controle sobre seus atos. É claro que seus atos de altruísmo foram excessivos e o levaram à falência e, finalmente, à morte.

É possível que a pressão originada em seu estado doentio tenha contribuído para esta busca de conforto na religião. Mais um exemplo de como a religião pode ser nociva na vida de uma pessoa!

Hana enviou em 10/01/2014
Gostaria de ler mais artigos assim,você teria mais? Se não, poderia postar?

Guilherme enviou em 17/01/2014
Hana,
a proposta aqui é ir incluindo artigos que despertem a vontade de pensar e dabater. Sempre que posso acrescento alguma coisa portanto sugiro que você dê uma olhada de vez em quando. Você já conferiu os outros artigos deste site? Há alguma tema em particular sobre o qual você está interessada?