Nossa Frágil Materialidade

Para que um objeto possa ser detectado ele deve interagir com outros objetos que podemos perceber.
Um objeto que interage fracamente com outros objetos é difícil de ser detectado.
Não se pode sequer afirmar que existam aqueles objetos que não interagem de forma nenhuma.
–Física
Saul e a Bruxa de Endor, Benjamin West (1738–1820). Victoria and Albert Museum.

Hipatia Lagrange de Spinos, Higgs para os amigos, é uma mulher jovem, igual a quase todos os outros jovens, não fosse por sua coragem e honestidade de pensamento. Por honestidade me refiro à pouca disposição em aceitar coisas apenas porque são admitidas pelo senso comum. Coragem ela mostrou quando, desafiando conselhos e sugestões, decidiu passar uns dias sozinha em uma cabana de madeira antiga instalada no alto de um monte e no meio de uma floresta densa e pouco visitada. Foi a atitude exatamente contrária à covardia dos amigos que se recusaram a acompanhá-la, temendo as histórias apavorantes aceitas como verdadeiras sobre o local.

Ela dirigiu até a borda da mata e caminhou o resto do percurso atravessando uma vegetação exuberante, por vezes de difícil passagem. A umidade se adensou com o frio que aumentava na medida em que ela subia o monte. A floresta estava, como sempre, muito viva. Animais cruzaram seu trajeto e ela os fotografou, sempre que conseguiu. Em suas paradas aproveitava para colher cogumelos que sabia serem deliciosos. Ao mesmo tempo, se lamentou por não poder ver a serra e despenhadeiros que a envolviam, impedida pela neblina. O relevo exigia passos lentos e cuidadosos enquanto ela procurava a direção correta até seu destino.

Ela chegou ao final da tarde. A pouca luz natural ainda permitiu que verificasse o estado da cabana que estava impecavelmente bem cuidada, com a exceção das portas e janelas empenadas com a umidade. Nenhuma delas fechava por completo. Higgs colocou sua mochila sobre uma mesa e a empurrou contra a porta de entrada para impedir que ela abrisse com o vento. Como reforço ela tirou da parede uma ferramenta pesada de madeira, com a forma aproximada de uma raquete, e a depositou sobre a mesa. Depois se sentou na cama no lado oposto do quarto. O cheiro de madeira antiga e úmida, junto com o cansaço e a escuridão só quebrada por uma pequena lamparina, venceram seu bom ânimo e ela adormeceu profundamente.

Ela foi acordada de madrugada com as janelas que batiam incessantes sob o vento gelado. Ainda deitada viu que o céu estava escuro, peneirado por estrelas de brilho nítido, pois a neblina se dissipara. Então percebeu que o ar inalado, gelado e com cheiro metálico, era expirado como vapor que se acumulava em frente a seus olhos. Ela julgou ver figuras difusas na névoa e, aos poucos, teve a certeza de que algo estava se formando bem próximo a seu rosto. Primeiro uma forma oval cinza azulada que se estendeu em um tubo longo em rodopio, mostrando a forma de uma pessoa maltrapilha. Higgs se afastou para poder focalizar a imagem que se formava. Parecia ser uma mulher velha com vestido longo e surrado e cabelos desgrenhados. Ela sentiu medo, mas também curiosidade quando percebeu que a figura era pouco sólida e translúcida. A velha abriu uma boca enorme parecendo gritar algo, mas sem produzir som algum. Ela oscilava de um lado para outro, passando próximo de Higgs em atitude agressiva. A cada investida a figura se firmava em solidez e perdia transparência.

Higgs pressentiu perigo mesmo sem compreender como poderia ser machucada. Então gritou: “Não estou te ouvindo!”. A bruxa parou de oscilar por um tempo e fechou os olhos em estado de concentração. Sua forma se tornou mais definida no ar e ela gritou de novo algo que, agora, foi possível ouvir como som abafado vindo de longe. Nas novas investidas a passagem do espectro começou a causar desconforto quando colidia de raspão. “Você é um gás, um sonho, uma ilusão”, gritou Higgs mais uma vez. A velha pareceu se irritar, parando novamente para se concentrar e ganhar solidez. A jovem a provocou repetidamente enquanto os gritos do espectro se tornavam altos e bem definidos, embora usasse uma língua incompreensível.

Higgs caminhou devagar até a parte mais distante do aposento, se esquivando dos encontros, até ficar em pé ao lado da mesa que apoiava a porta de entrada. A velha enfurecida também se afastou, ganhou velocidade e se arremessou em direção à humana viva que olhava para ela, desafiadora. Os gritos agora eram aterrorizantes, o espectro se tornara opaco e derrubava os objetos em que tocava ao longo da investida. Higgs aguardou pela proximidade e, no último instante, pegou a raquete de madeira e aplicou com ela um golpe violento sobre o rosto da mulher horrorosa que se aproximava. Ouviu-se um baque e os gritos cessaram. A forma se desfez em pó escuro que flutuou devagar até o chão. Higgs refez o arranjo destinado a travar a porta que, dessa vez fechou perfeitamente, e voltou a dormir.

Pela manhã ela encontrou a casa tão limpa quanto estava na tarde passada. Nenhum pó, nada fora do lugar exceto por um colar de aparência antiga caído no chão, ornado com um símbolo estranho que ela não reconheceu. Ela limpou o colar e o colocou no pescoço. Depois preparou o café e um omelete com os cogumelos colhidos na véspera, e saiu para continuar a exploração da mata.

Comentário do autor:

A personagem central desse conto era inicialmente chamada Lúcia Helena Courier, “LHC para os amigos”. A ideia era a de referenciar o Large Hadron Collider, o maior acelerador de partículas do mundo que fica em Genebra, na Suiça. No entando alguns leitores reclamaram, sob a impressão que LHC era um apelido muito sem graça e com pouco apelo para as pessoas que não acompanham a física de perto. Ponderei que isso é uma verdade… nem todos conhecem o que é um colisor de hádrons.

Troquei portanto o nome: ela agora se chama Hipatia Lagrange de Spinos, “Higgs para os amigos”. O nome continua esotérico para muitos mas vou mantê-lo assim mesmo. Com ele presto uma homenagem a:

  1. Hipatia, a grande matemática e filósofa neoplatônica que viveu no séc. 5 em Alexandria, Egito, e foi morta por um bando de fanáticos cristãos que rejeitavam seu pensamento pagão;
  2. Lagrange, um matemático italiano do séc. 18 que contribuiu para o cálculo, a teoria das probabilidades e a mecânica clássica;
  3. Spinos, como referência ao spin de algumas partículas subatômica, como o elétron. O mais importante no caso é seu apelido, Higgs, que faz refência às partículas associadas ao campo que, interagindo com outras partículas, define a sua massa. O bóson de Higgs foi descoberto em 2012 por pesquisadores do Grande Colisor de Hádrons, (LHC) 48 anos após sua predição por Peter Higgs.

Sobre as guerras do passado


“Deplorável é a guerra que, para atender ao interesse de alguns, inflige sofrimento sobre muitos que não se beneficiarão de seus resultados”.

Tullian Altoi, Anais de uma Guerra Passada

Um fio claro e reluzente cortou a atmosfera. Dois outros vieram em seguida, traçando uma espiral até o solo. O ar estava denso e frio e o céu azul escuro com partes vermelhas onde o sol ainda alcançava. Mas nenhuma condição adversa poderia ser usada como argumento para evitar o comparecimento das partes pois aquele era o último recanto do sistema não atingido pelo conflito.

Debilitados pela violência, exaustos nos corpos e mentes, as três espécies concordaram em formar uma grande Assembléia. Conselheiros deveriam debater e estabelecer os termos certos e justos para o fim das agressões. Tarefa difícil, eles reconheciam, se considerada a natureza distinta dos adversários, mas urgente após a constatação unânime de que não haveria vencedores.

Representantes dos Aleteos e Arqueos prepararam juntos um salão enorme e magnífico, com beleza que se esperava capaz de quebrantar o ânimo do oponente mais belicoso. Eram seres amantes da poesia e da beleza, forçados a se unir contra o inimigo comum. Eles entraram antes no salão, verificaram a correta disposição das coisas e ocuparam seus lugares. Os Alphas, nome por eles mesmos escolhido, entraram depois de forma ruidosa e exibindo contrariedade pela necessidade de dialogar.

Apenas três representantes se postaram na frente da multidão. Altoi, o Aleteo, pediu silêncio aos inquietos, lembrando que procuravam ali, na verdade, apenas chancelar o que já estava claro como única saída: a convivência harmoniosa. Ele fez então um relato listando as características de cada grupo, coisas de que cada um se orgulhava mas eram exatamente aquelas que os separavam e que precisariam ser superadas.

“Somos diferentes e precisamos lidar com a diferença”, ele disse, com entonação ordinária, sem tentar exibir suas conhecidas habilidades de orador. “Nós, Aleteos, evoluímos em ambiente tranquilo, não conhecemos predadores e jamais passamos por carência de insumos necessários para viver. Somos a espécie mais antiga pelo mesmo motivo, pois nossa evolução foi lenta e sem solavancos. Tratamos cada membro de nosso grupo como irmão e irmã, e fazemos isso desde que reconhecemos a origem comum de todos os indivíduos de nossa sociedade”.

“Arqueos, por outro lado, cresceram em ambiente árido em todos os estágios de sua evolução. Não são guerreiros porque seus inimigos não são sencientes. Obrigados a viver em terreno pouco estável, driblando vulcões e terremotos, eles também cresceram em fraternidade. A única beleza evidente em seu habitat é a arte que eles mesmos produzem … aliás uma bela forma de arte”!

Altoi tentava manter simples o seu discurso, sem perder na imponência que considerava necessária para manter algum controle sobre seus ouvintes. Mesmo assim percebeu a inquietação crescente que vinha do plenário. A um sinal discreto seu um grupo de jovens Aleteos entrou no salão servindo uma bebida quente, de cheiro adocicado, nas mesas previamente adornadas. A beleza dos Aleteos era óbvia mesmo para os de outra espécie. Eles sorriam, convidando os participantes a provarem de sua bebida. Altoi retomou sua fala:

“Também temos entre nós os Alphas, guerreiros extraordinários e fabulosos estrategistas que, para garantir sua subsistência tiveram que derrotar outras espécies inteligentes em seu mundo natal. Não ouvirão de nós nenhuma crítica, nem serão tratados com desapreço pelo extermínio desses inimigos, pois todos sabemos da impossibilidade de viverem todos no mesmo ambiente”.

“Mesmo assim peço aos Alphas que entendam e reconheçam que são o grupo mais belicoso nessa guerra. A Psicologia Interespécie mostra que são indivíduos menos empáticos, mais centrados na individualidade, o que está em flagrante dissonância com a cooperatividade das duas outras raças”.

“Temos mecanismos psíquicos e cognitivos diferentes. Embora as três espécies atualmente convivam com a vida aérea e não estão restritos à superfície, Aleteos e Arqueos evoluíram em ambiente com estímulo cognitivo em uma dimensão extra, inacessível aos Alphas. Em milhares de anos viajamos e percebemos o mundo como seres voadores, enquanto os Alphas estiveram presos ao chão, muitas vezes ao subsolo.” Em uma óbvia manobra diplomática ele ainda acrescentou: “embora saibamos que no presente os Alphas são excelentes pilotos…”

Parcas, o líder Alpha, sorriu procurando disfarçar a antipatia. Ele tomou um gole de sua taça, depois se levantou e falou em tom muito diferente, com a eloquência de quem impele seus pares ao combate.

“Protestando contra os termos injuriosos e insinuações de meu nobre colega conselheiro, reconheço a necessidade de capitular. Afirmo que desistimos de nosso propósito de incorporar todas as áreas produtivas do sistema”. Voltando-se para o próprio grupo: “Afinal, nossa própria simulação indica que a continuidade da guerra equivale à destruição mútua. Qual é a saída proposta?”

Temus, o líder Arqueo, falou dessa vez: “primeiro sugerimos que todas as espécies tenham seu direito inalienável à vida reconhecido. Por vida quero significar independência, conforto na busca de sustento e garantia de que não seremos explorados por qualquer outra espécie. Decidiremos livremente sobre nosso futuro, exceto em questões que envolvam outra raça”.

“Propomos que se vote pela harmonia, de bom grado ou não, defendida e guardada por uma Justiça dotada de sua própria Polícia, mantida e financiada em partes iguais pelos três planetas”.

Altoi Aleteo fez um gesto de desânimo. Ele pediu que se aproximassem seus conselheiros que o convenceram da necessidade da corporação policial. Os três líderes pediram que os delegados debatessem entre si, depois votassem.

Agitação e burburinho normal de um debate importante tomou conta do ambiente. Em poucos casos pessoas se destacaram de seus grupos para debater com membros de outra espécie. Quando se julgaram satisfeitos eles votaram. O resultado indiscutível, mostrando que a maioria absoluta escolheu buscar a paz, foi exibido em um placar colocado acima e em frente de todos. Seguiu-se uma comemoração intercalada por alguns poucos xingamentos, impropérios ditos em língua que a maioria desconhecia.

Passado o alvoroço Altoi Aleteo e Temus Arqueo subiram juntos ao púlpito pedindo silêncio. Eles se revezaram para dar uma notícia surpreendente:

“Não podemos aceitar esse resultado”.

Dessa vez a agitação e o ruído foram mais intensos. “O que está acontecendo?”, se perguntavam. Parcas Alpha exigiu explicação imediata, no que foi atendido por Altoi Aleteo:

“Vocês tomaram uma bebida feita de material eletrocondutor, o que nos permitiu manipular suas percepções e emotividade. Basicamente alteramos seu sentimento de empatia, usando aquelas antenas ali posicionadas”, disse ele apontando para estruturas côncavas presas ao teto. “Nossa intenção é a de mostrar que existe outra maneira de encarar o mundo que não remove a competição mas adiciona empatia. Esses dois fatores promovem a convivência e a troca com benefícios mútuos. Portanto convidamos a todos, Alphas em particular, a meditarem e visualizarem um mundo de cooperação, enquanto durar o efeito da nossa intervenção. O que podemos fazer juntos?”

Ainda sob efeito ativador do chá os Alphas aceitaram ficar ali parados, olhando com a atenção interna para uma visão de mundo que nunca haviam antes contemplado. “Guardem na memória tudo o que puderem perceber”, disse com a voz tranquila o lider, conhecedor de que sem essa manobra o armistício não seria duradouro.

Passado algum tempo o efeito começou a se dissipar. Os Alphas se sentiram tomados por sensação ambígua feita de raiva e vergonha por terem sido dominados psicologicamente, ainda que também de reverência pela visão inovadora a que tiveram acesso. Em suas imaginações eles viram os três grupos se expandindo pela galáxia, incorporando outras raças desenvolvidas em seu império e ajudando as menos avançadas a progredir. Alguns também viram guerras e conflito, todas de escopo local e sem a capacidade de destruir o grande fluxo civilizatório.


O que ocorreu depois disso ficou perdido no tempo e não foi incorporado na história. Pelo que observamos hoje as guerras foram interrompidas donde se conclui que O Congresso foi bem sucedido. Nenhuma das espécies foi extinta uma vez que temos circulando em nosso DNA porcentagens variáveis mas equitativas de herança de cada uma delas.

Inesperadamente nossa herança bélica foi útil em muitas situações ainda que a predominância de nossa natureza cooperativa tenha sido, de fato, responsável pela longevidade e alcance de nossa raça única e gloriosa!