O objeto Haole, descoberto há alguns meses, ainda agitava a imaginação e criatividade da comunidade científica. Haole, o Estrangeiro em língua havaiana, era um visitante de fora do sistema solar, exibindo trajetória incomum, fora de conformidade com as acelerações geradas pelos planetas. Estranho o suficiente para que alguns astrônomos sugerissem que era um objeto artificial, impulsionado por motores. Quando passou na vizinhança de Júpiter o objeto foi acelerado, catapultado pelo planeta em direção ao Sol. As atenções se voltaram para ele. Foi uma grande aventura, de certa forma divertida, quando milhões de pessoas em redes mundiais assistiram em tempo real quando Haole emitiu um brilho e ejetou um projétil que partiu veloz na direção da Terra.
Apesar de esperada a entrada do objeto na atmosfera provocou medo e comoção. Mesmo a olhos nus as pessoas puderam ver o ataque de mísseis desferido por bases terrestres, intenso mas ineficaz para impedir a aproximação do visitante. Ele desceu sem perder velocidade até atingir alguns milhares de metros de altura. Depois se estabilizou no ar e pousou suavemente sobre um campo de trigo. O objeto foi imediatamente cercado por forte aparato militar e permaneceu imóvel por horas. Então desceu dele um indivíduo com estrutura similar à de um humano apesar de envolto em pesadas vestimentas espaciais. Em terra o visitante não fez nenhum movimento e apenas emitiu sinais de rádio. Eram transmissões de dupla direção que visavam estabelecer uma comunicação. Os primeiros sinais se destinavam a estabelecer a tradução entre as linguagens. Em seguida ele se apresentou como um embaixador, sem informar seu planeta de origem. Deu um nome, considerado impronunciável pelos interlocutores que passaram a chamá-lo de Embaixador.
Então teve início o diálogo. A primeira mensagem foi clara:
“Vamos ocupar a Terra para extrair o dióxido de carbono de sua atmosfera. Qualquer tentativa de defesa será inútil”.
A troca de mensagens se prolongou por várias horas. Uma comissão de interlocutores se instalou no local e fez muitas perguntas. Todas eram respondidas por completo e com serenidade pelo Embaixador que, apesar disso, se esquivava de fornecer informações novas ou extraordinárias, de natureza científica ou tecnológica. Observando o tom cordial do estrangeiro, e sua recusa em responder as questões mais relevantes, as pessoas começaram a perder o interesse pelo evento. Muitas delas, inclusive correspondentes de jornais, duvidaram que houvesse perigo real e já abandonavam o local quando Haole entrou em órbita da Terra. Ele tinha o formato de um grande meteoro, diferente de qualquer nave ou avião terrestre.
O Embaixador continuou sem ser interrompido.
“Não é nossa intenção causar danos ao planeta nem a seus habitantes. Para manter nossa própria vida, entretanto, precisamos coletar esse gás. Compreendemos que essa extração pode prejudicar severamente sua biosfera mas não temos alternativa. Nenhuma violência será empregada, exceto no puro cumprimento dessa missão, se necessário”.
Ele levantou a mão com a palma aberta para a frente, como um gesto de paz. E continuou:
“Compreendemos que os habitantes desse planeta não permitirão essa coleta sem resistência. Portanto, para minimizar danos, recomendo que tentem agora nos impedir”.
Houve uma agitação entre os interlocutores que a todo instante trocavam informações com consultores postados longe dali. Logo chegaram ao consenso de que de tal ação devastaria a vida no planeta. Os militares que circundavam o Embaixador se afastaram apressados. Muitos tiros e bombas caíram sobre o local. Ao mesmo tempo a frota aérea, que por todo esse tempo estivera na alta atmosfera nas proximidades do Haole, abriu fogo pesado sobre ele. E aguardaram até que toda a fumaça e poeira levantadas pelas bombas se dissipassem. Em terra uma cratera foi formada e, no fundo dela, permaneciam íntegros o Embaixador e sua máquina. Nos céus o objeto alienígena flutuava sem danos aparentes.
Do meio do grupo de interlocutores uma jovem se apresentou:
“Meu nome é Shujaa Mwanamke. Fui designada porta voz dos líderes das nações terrestres com quem estou em contato nesse mesmo momento”.
Shujaa (pronunciado Shuia) era uma jovem negra, integrante da delegação do Quênia, uma mulher alta, esguia e bonita. Ela usava trajes tradicionais de sua nação e trazia suspenso pelo ombro um pequeno pacote envolto em tecido, um bebê. Ela se destacou do grupo e caminhou alguns passos na direção do Embaixador, que a saudou com um gesto de mão. Ela continuou:
“Sua ação vai matar bilhões de pessoas. Vai dizimar a vida na Terra! Não há nada em sua civilização que se assemelhe a um código de ética?”
O Embaixador demorou para responder pois a tradução não foi imediata. Depois disse:
“Temos o nosso código, de que muito nos orgulhamos. Mas não partilhamos absolutamente nada em nossa constituição com os humanos. Nem DNA, nada! Não existe em nossa formação evolutiva nenhuma inclinação para preservar a sua vida”.
Um disco metálico se destacou do Haole, na direção da superfície. Enquanto descia emanava de seu centro um tubo de material com aparência desconhecida. Por um ângulo parecia ser apenas um cilindro de luz. O tubo penetrou as camadas da atmosfera até quase o solo. Um turbilhão de vento se formou.
Shujaa continuou sua argumentação:
“Mas temos alguma coisa em comum. Nosso processo mental não é tão diverso. Afinal estamos aqui conversando e nos entendendo. Talvez você possa me explicar como funciona nossa mente. Está claro que podemos trocar informações mesmo não possuindo base biológica comum”.
O Embaixador ouviu mas não respondeu. A interlocutora abraçou seu bebê que começou a se agitar dentro do pequeno embrulho. Ela precisava encontrar um argumento que, pelo menos, suspendesse por algum tempo a operação de extração. A base do tubo se alargou formando ventos ainda mais intensos.
Shujaa tentou uma cartada desesperada, algo que nem ela mesmo julgava que pudesse funcionar.
“Você não considera um absurdo promover a destruição de toda a nossa cultura”?
O Embaixador ficou imóvel por um tempo e pediu explicação sobre o significado da palavra “cultura”. A interlocutora falou com seus assessores, pedindo que preparassem uma amostra da cultura terrestre. Se voltando para o Embaixador ela pediu um prazo para essa preparação, no que foi logo atendida. O tubo sugador diminuiu sua sucção aos poucos até parar por completo.
Algumas horas mais tarde a equipe retornou ao campo de negociação trazendo equipamento para uma exibição audiovisual. Shujaa disse:
“Represento a juventude e o futuro desse planeta. Espero que você possa entender e apreciar a nossa cultura”.
O bebê começou a choramingar. A mãe abriu uma ponta do tecido e ajustou a criança aos seios para amamentá-la. E deu partida a uma apresentação que se iniciou com uma trilha sonora que tocava a abertura da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner. Enquanto as imagens iam se alternando em frente ao Embaixador os autofalantes encheram o ar com trechos de Mozart e Bethoven, até chegar na música atual, clássica e popular. As imagens mostraram as artes primitivas, avançando no tempo até as peças mais modernas e abstratas.
Ela terminou a sessão dizendo: “por isso queremos viver”. O Estrangeiro pediu para rever alguns trechos. Ele selecionou um rock, um samba, e repassou rapidamente algumas imagens, se demorando sobre fotos de estátuas gregas e pinturas de daVinci e Michelângelo. Ao final pediu para ver a criança que já dormia tranquilamente. Shujaa sentiu o terror percorrendo sua mente, depois seu corpo inteiro. Mas endireitou a coluna, desembrulhou a criança e a levantou no ar, torcendo para que o estrangeiro não a tocasse.
“Você o alimenta com líquidos do próprio corpo?”, ele perguntou.
“Somos mamíferos”, ela respondeu. “Geramos as crianças no ventre e damos à luz seres completos. Depois os amamentamos por vários meses”.
O Embaixador fez sinal para que ela abrigasse novamente o bebê. E disse:
“Você me perguntou sobre o funcionamento de sua mente. Mas eu não tenho a resposta. Existe algo em seu psiquismo que não faz parte do meu. São emoções: suas tristezas, medos, alegrias e esperanças. Tudo isso aparece maravilhosamente na arte que você me mostrou. Muito do que vi supera em larga escala minha capacidade de avaliação. Não serei eu o responsável pela eliminação de algo que não consigo compreender.”
O estrangeiro buscou de dentro do artefato de transporte duas caixas. A primeira, que descreveu como “um presente para os engenheiros”, continham instruções para a captura do excesso de dióxido de carbono na atmosfera terrestre. A segunda, “um presente pessoal”, ele entregou nas mãos de Shujaa, se esforçando para não chegar muito perto dela.
Então falou suas últimas palavras:
“Faço votos que vocês prosperem e espalhem sua cultura pelo cosmos”!
Então entrou em sua nave e voltou para Haole, da mesma forma como chegou. O disco metálico também se recolheu e Haole partiu, se dirigindo para fora do sistema solar.
Ela abriu o presente: uma jóia bonita mas grande demais para que ela usasse como adereço. Na peça, de aparência antiga, ela viu um traçado confuso mas elegante formado por linhas e relevos. Shujaa sonhou e desejou que o traçado contivesse informações sobre a civilização do estrangeiro de Haole. Ela ajeitou seu bebê no colo e saiu do ambiente de negociação.