Existe uma ambiguidade na terminologia moderna para tratar da ciência, em particular da Física, que dificulta a compreensão de pessoas leigas sobre os avanços mais modernos. Este ambiguidade se refere ao significado das palavras hipótese, modelo e teoria e assume diversos níveis de complexidade.
Primeiramente é necessário entender que o conhecimento científico é uma estrutura complexa feita de conceitos, definições e consequências, acumulada de modo gradual e recursivo. Do ponto de vista lógico esta estrutura deve ter tanta coerência interna quanto possível. Do ponto de vista empírico ela deve ser constantemente testada em relação a seu objeto, a natureza. O processo de aquisição do conhecimento pela ciência consistem uma interação entre o pensamento lógico formal e a experimentação.
A descrição de um fenômeno, ou conjunto relacionado de fenômenos, assume a forma de um modelo, geralmente expresso sob forma matemática(1). Um modelo é, portanto, uma descrição ou um mapa, uma representação esquemática de algo que ocorre na natureza. O modelo(2) proposto deve ser consistente e não possuir incongruências lógicas internas, tanto quanto possível(3). Em seguida ele deve ser capaz de fazer previsões observáveis — sem as quais ele não seria científico, embora possa constituir-se em boa filosofia — e estas previsões devem ser testadas por meio da experimentação ou da observação — quando a experimentação não é acessível, como é o caso da observação astrofísica.
Modelos são normalmente apresentados como hipóteses, algo a ser verificado. A comunidade científica atual possui uma dinâmica própria de atuação que envolve grande volume de publicações, mensagens e postagens eletrônicas que circulam entre os interessados que, ao receber uma nova proposta, passam a trabalhar nela buscando por falhas ou inconsistências ou, não encontrando estas falhas, procurando explorar suas consequências. Os grupos voltados para o desenvolvimento teórico agem primeiro e os modelos considerados sólidos e promissores são passados para laboratórios e observatórios que procurarão verificar se estão corretas as previsões daquela proposta. Hipóteses verificadas e embasadas por uma formulação teórica sólida se agregam como novo bloco ao edifício científico, passando a serem consideradas uma teoria.
Infelizmente existe também o uso consagrado da palavra teoria para uma outra classe(4) de modelos que ainda estão em fase especulativa e não foram verificados sob o escrutínio da experimentação. Talvez o melhor exemplo seja o da teoria das cordas (ou string theory, em inglês). A teoria das cordas, em sua versão mais simples, parte da suposição de que as partículas elementares não são pontuais e sim cordas ou fios unidimensionais. Existem ainda modelos onde estas cordas são substituídas por membranas de duas dimensões ou mesmo por objetos com volumes, em três ou mais dimensões. Estas teorias buscam resolver dificuldades associadas ao modelo de partículas, bem representadas na teoria quântica de campos, e sua interface com a teoria da relatividade geral. Apesar de ser matemáticamente coerente e elegante, e ocupar a atenção de grande números de pesquisadores, este conjunto de modelos permanece com status especulativo. A maior parte de suas previsões só pode ser verificada para altíssimas energias, em níveis ainda inacessíveis para o estágio atual da tecnologia de aceleradores de partículas.
A física moderna está estabelecida sobre fundações sólidas e é incorreto dizer que a ciência é instável e que se altera todo o tempo. Diferente da matemática, que floresceu em grande estilo entre os pensadores gregos antigos, a física só teve seu início concreto com a contribuição de Galileu Galilei e os pensadores de seu tempo. A mecânica clássica e a lei da gravitação universal, juntas com a teoria eletromagnética e a termodinâmica constituem as teorias básicas de sua fundação. Apesar do sucesso experimental destas teorias existe uma incoerência entre a mecânica clássica e o eletromagnetismo. Da solução deste conflito surgiu a Teoria da Relatividade Especial, mais tarde ampliada para a Teoria da Relatividade Geral, a principal fundamentação teórica para a descrição da gravitação.
A experimentação impôs ainda outra alteração radical, a Mecânica Quântica, inicialmente obtida de modo inconsistente com a relatividade especial. As tentativas de se resolver esta inconsistência deram origem à Teoria Quântica de Campos, a principal base de entendimento das partículas e suas interações em altas energias. As previsões desta teoria são verificadas em laboratório com alta precisão. No entanto, ela não inclui ou considera a participação da gravitação. A busca de uma teoria quântica unificada para os campos conhecidos é bem sucedida, exceto pela não inclusão da gravitação que, por sua vez, não possui descrição quântica bem definida. Este é o estado da física atual, contendo blocos sólidos e bem verificados exceto pelo fato de que estão inconsistentes entre si, mais ou menos como ocorreu entre a mecânica de Newton e o eletromagnetismo de Maxwell.
Ainda sob o impacto do grande feito de Einstein, que obteve grande sucesso com bases quase inteiramente teóricas e filosóficas, muita especulação tem sido feita nesta área enquanto poucos resultados práticos e experimentais tem sido alcançados(5). Existem modelos hipotéticos (que evitarei aqui chamar de teorias) propondo que o universo é pequeno e dotado de topologias incomuns, ou modelos onde o universo é composto por muitas folhas (os multiversos), modelos que envolvem grande número dimensões ou espaços-tempos complexos (no sentido matemático, usando números imaginários), e muitos outros. Quase sempre estes modelos são tentativas de solução do problema da inexistênciade uma descrição quântica para o campo gravitacional.
Por outro lado grandes problemas surgem da observação, particularmente obtida por grandes telescópios como o Telescópio Espacial Hubble. O universo não se comporta como “deveria”, em acordo com as teorias aceitas, dadas a densidade de massa e energia observadas. Em grande escala ele não se desacelera como previsto — e até se acelera em sua expansão — no que consiste o problema de dark energy ou energia escura. Até mesmo em escalas muito menores que as cosmológicas, objetos em torno de galáxias não possuem as velocidades previstas — o problema de dark matter ou matéria escura. Muita especulação e um grande número de tentativas têm sido feitas por pesquisadores do mundo inteiro, na busca de solução para estes problemas. Vale no entanto lembrar que um esforço direcionado para esclarecimento do público quanto a estes esforços é uma contribuição importante para a educação e crescimento intelectual de todas as pessoas e não só daquelas que se dedicam ao estudo científico.
Notas:
(1) As relações entre modelos e sua linguagem matemática não são inteiramente claras e permanecem com tema de debate atual. Porque um modelo necessita ser expresso matematicamente? Todas as descrições da natureza e do ser humano se encaixam (ou encaixarão, um dia) dentro de modelos matemáticos? Sabemos que a matemática é uma linguagem extremamente precisa e que permite a descrição e previsão detalhadade entidades observáveis na natureza. Em geral se supõe que uma teoria ou modelo não expresso sob forma matemática está incompleto, necessitando de aperfeiçoamento. (voltar)
(2) A teoria de Newton é um exemplo de mapa ou modelo bem estabelecido como correto. Sua correção, no entanto depende da delimitação de sua região ou domínio de funcionamento. (Veja nota 3). O modelo planetário dos átomos foi útil durante algum tempo para levar à compreensão de um modelo bem mais complexo que é a descrição quântica da matéria. (voltar)
(3) Parece não ser possível construir sistemas lógicos fechados e totalmente imunes à inconsistências internas. Além disto não existe a presunção de que os modelos, mesmo os mais bem sucedidos, estejam completos e em total conformidade com a natureza. Por exemplo, a mecânica de Newton é formalmente consistente e descreve com excelente precisão o movimento de objetos na terra, de planetas e pedregulhos em órbitas no espaço, satélites de comunicação, etc. Ela não é válida, no entanto, na descrição de movimentos em altas velocidades, comparadas à velocidade da luz, ou de objetos de massa muito pequena. Nestes casos é necessário usar, respectivamente, a Relatividade Especial e a Mecânica Quântica. A Teoria da Relatividade Geral, que é uma generalização da especial, tem sido testada com ótima precisão em inúmeros experimentos. No entanto a própria teoria preve regiões ou domínios onde ela falha, como ocorre nas proximidades de singularidades tais como os buracos negros ou o big bang. (voltar)
(4) Na linguagem cotidiana é frequente se dizer: “eu tenho uma teoria para explicar tal fato”, significando que o autor da expressão tem uma hipótese ou, até mesmo, uma suposição que muitas vezes nem tem um bom fundamento. Este uso causa problemas.
Por exemplo, entre os detratores da visão de Darwin da evolução das espécies é comum se dizer que a Teoria da Evolução é “apenas uma teoria”. Em sua interpretação científica mais rigorosa uma teoria nunca é apenas uma teoria pois já passou pela peneira da consistência lógica e da experimentação (neste caso, mais da observação de fósseis e outras evidências). Os dicionários, tanto em português como em inglês, trazem as duas definições de teoria, tanto como conjunto lógico de proposições e princípios para a explicação de uma classe de fenômenos, quanto a de uma explicação tentativa e conjectural. Seria algo interessante alterar estas definições, talvez usando teoria como algo que superou o teste da verificação e conjectura ou hipótese para os demais casos. Um complicador está no fato de que modelos hipotéticos e conjecturais, quando bem sucedidos, passam a ser considerados teoria de forma contínua, na medida em que são verificados, não havendo uma delimitação muito clara entre estas categorias. Hipóteses fracassadas, no melhor dos casos, entram para a história! (voltar)
(5) Alguns pesquisadores, mesmo entre os mais sérios, incorrem no erro de, ao relatar para o público leigo suas especulações, as descrevem como se fossem teorias comprovadas. Eles dizem coisas como: “o universo não teve um início” ou “o comportamento quântico das partículas evitará que o universo tenha um fim” … etc. Por mais louvável que seja sua empolgação com a própria pesquisa é necessário lembrar que faltam ao grande público fontes confiáveis de informações sobre ciência e tecnologia. No Brasil, por exemplo, a divulgação científica é muito deficiente e uma notícia divulgada pela grande mídia quase nunca esclarece um mínimo sobre o fato que se quer relatar. (voltar)
Se toda teoria científica é uma verdade para ciência por que a teorias que se contradizem como a gravidade quântica em loop e a teoria das cordas?
Ninguém afirma que “toda teoria científica é uma verdade“. Teorias científicas são explicações baseadas no estrutura teórica vigente e em acordo com a experimentação. Ou outras palavras, nenhum experimento possível ou imaginado até o momento contradiz as afirmações da teoria. É muito possível que, com o avanço do entendimento de da tecnologia, novos experimentos possam contradizer algo que hoje consideramos correto.
Por esse motivo dizemos que as teorias estão certas dentro do regime testado. Por ex., a mecânica de Newton é uma boa teoria para as escala cotidiana de fenômenos. Em escalas de altas velocidades precisamos da teoria da relatividade, e em regimes de partículas diminutas precisamos da mecânica quântica.
As teorias de gravitação quântica, inclusive a teoria das cordas, não podem ser testadas dentro do regime de energia a que temos acesso hoje. Por isso elas não são exatamente teorias mas sim hipóteses. A meu ver é uma grande pena que a comunidade científica não se disponha a corrigir esse erro, que impede os leigos de compreender essas questões.