George Price e o Altruísmo Biológico

O que você faria se, como pesquisador, concluísse que o altruísmo puro e desinteressado não existe embora, por motivo de fé acreditasse e defendesse que ele existe? Até que ponto você levaria seu esforço para ser generoso, mesmo que isto significasse a sua própria derrocada?

Muitas vezes na história da ciência um pensador não recebe em vida o crédito e o reconhecimento merecido. Foi o que ocorreu com o cientista americano George Robert Price. Price foi uma pessoa interessante e controversa, até recentemente pouco conhecida do público em geral. Nascido em 6 de outubro de 1922, se formou em química e trabalhou em áreas diversas, passando pelo Projeto Manhattan, depois pela Bell Labs. Mais tarde trabalhou na IBM onde foi um dos precursores no desenvolvimento de sistemas CAD (computer aided design). Price também contribuiu para o jornalismo científico escrevendo diversos artigos, alguns deles atacando como pseudocientífica a pesquisa em paranormalidade, muito em voga na época. Em torno de 1966 ele foi diagnosticado com câncer na tireoide e passou por uma cirurgia que deixou seu ombro esquerdo parcialmente paralisado e dependente de medicamentos. Price então se mudou para Londres e se envolveu no estudo da genética tentando resolver um problema importante da biologia evolucionária, com consequências importantes para a compreensão do comportamento dos animais e do ser humano. Por que alguns organismos se sacrificam para o benefício de outros organismos?


Anteriormente à descoberta do câncer e a consequente cirurgia, Price sempre fora uma pessoa cética e um ateu convicto. Ele era pouco sensível para com familiares, tendo abandonado esposa e filhas e sua mãe já idosa. Mais tarde, principalmente afetado pela doença e a depressão causada pela tireoide debilitada, ele se converteu ao cristianismo e se dedicou inteiramente a demostrar, por meio do exemplo pessoal, que o altruísmo é possível. De completo cético ele assumiu uma atitude radical fazendo aquilo que acreditava ser a vontade de Deus e supondo que este o proveria com os hormônios necessários. Sua postura de altruísmo radical o levou à pobreza completa que, por sua vez, provocou uma piora no estado de sua doença. Price se suicidou em 6 de janeiro de 1975, totalmente pobre e tomado pela depressão.

Altruísmo biológico

Para compreender o problema que atormentava George Price é necessário saber o que se entende por altruísmo em biologia. O altruísmo ocorre quando qualquer organismo atua de forma a beneficiar outro organismo no que diz respeito à sua saúde ou possibilidade de sobrevivência, em prejuízo para seu próprio bem-estar. Não é necessário que exista intenção, consciente ou não. O altruísmo psicológico, por sua vez, é algo bastante diferente, sendo uma ação que necessariamente involve intenção. Apesar de serem conceitos diversos é cabível discutir se existe conexão entre as duas formas de desprendimento. O cérebro humano, assim como todo o resto de nosso corpo, é o resultado da evolução e da seleção natural. Grande parte de nosso comportamento, atitudes e reações, mesmo aquelas que julgamos serem puramente culturais, são na verdade derivadas de propriedades adquiridas e inseridas ao longo de eras evolutivas em nossas características genéticas.

Pelo processo da seleção natural organismos mais aptos para a sobrevivência, com maior probabilidade, se reproduzirão e gerarão maior número de descendentes. Características biológicas favoráveis para a preservação da espécie incluem a eficiência na obtenção dos recursos para a manutenção da saúde e da vida em si, para escapar de predadores naturais ou superar desafios tais como alterações no meio ambiente e ataques externos de doenças. A habilidade para atrair parceiros do sexo oposto, ou superar competidores neste mesmo processo, também são decisivos para a escolha de quais genes serão replicados ou não. Estas propriedades são passadas adiante para a prole do indivíduo bem sucedido, enquanto características debilitantes levam o indivíduo à morte ou a diminuição de sua capacidade reprodutora. Isto não só seleciona indivíduos dentre os de uma mesma espécie com também estabelece níveis hierárquicos entre espécies diversas. O mecanismo básico de seleção, a “sobrevivência do mais apto”, é uma competição muitas vezes feroz que separa a eficiência da ineficiência.

Apesar da competição predominante na natureza, também são observados atos de altruísmo, de auto-sacrifício de indivíduos ou grupos em relação a outros. Muitos exemplos de altruísmo podem ser observados na natureza: alguns pássaros aceitam chocar ovos que não os seus próprios e indivíduos estéreis ajudam na criação dos filhotes (como ocorre entre abelhas e formigas), abelhas se matam ao ferroar um inimigo para proteger a colônia e pássaros ariscam a própria vida para avisar o bando da aproximação de um falcão. Um caso extremo ocorre com a aranha Stegodyphus cujos filhotes recém nascidos devoram a mãe como estratégia de sobrevivência.

Isto levanta uma questão importante: como pode ter surgido o altruísmo entre seres vivos? Por que alguns organismos se sacrificam em benefício de outros, às vezes até mesmo não-parentes?

Os atos mais comuns e extremos de altruísmo animal são realizados pelos pais, especialmente mães, para com os filhos. Pais e mães criam os filhos em seus ninhos, às vezes em seu próprio corpo, os alimentam com grande custo para si mesmos e se arriscam ao protegê-los dos predadores. Um exemplo disto são as aves que simulam fraqueza para atrair para longe do ninho um predador. Uma ave manca na frente de uma raposa, estendendo uma asa como se estivesse quebrada para atraí-la para longe de seus filhotes, colocando sua própria vida em risco.

Para explorar mais extensamente a natureza do problema do altruísmo, considere uma comunidade onde existem indivíduos altruístas e outros egoístas. Os indivíduos egoístas podem ter sua vida facilitada pelo altruísmo dos demais e ser mais bem sucedidos em sua sobrevivência e reprodução. Com o passar dos tempos a comunidade estará formada principalmente por uma maioria egoísta. Por outro lado, entre dois grupos diferentes, um grupo de altruístas pode ser mais eficiente na estratégia de sobrevivência por estarem em cooperação mútua, enquanto o grupo de egoístas pode dificultar sua própria sobrevivência por meio da competição exacerbada. Este é um caso de conflito em diferentes hierarquias biológicas, coberto pela equação proposta por Price.

Do ponto de vista do gene, de acordo com Haldane, compreender o altruísmo não é tão complicado. Um indivíduo pode perfeitamente sacrificar sua vida para salvar um filho ou um parente, de forma a que este sacrifício represente a perpetuação dos genes que ambos partilham. Neste caso houve um sacrifício para que o gene se beneficiasse.

Nos humanos o altruísmo tem suas raízes no sentimento de empatia que surge quando observamos pessoas em situações de angústia ou emergência. Esta capacidade nos humanos (e mamíferos em geral) está relacionada ao aleitamento pelas mulheres de sua prole. Isso explica porque as mulheres mostram ser, em geral, mais empáticas que os homens. A empatia é estimulada pela oxitocina, um hormônio envolvido no parto e aleitamento. Em experimentos de laboratório humanos de ambos os sexos exibem um aumento em suas respostas empáticas quando se aplica a oxitocina em suas narinas.A oxitocina é produzida pelo hipotálamo e tem a função de promover as contrações musculares uterinas durante o parto e a ejeção do leite na amamentação. Ela é responsável por um aumento no sentimento de empatia, de reconhecimento social, na ligação entre casais, supressão da ansiedade e ampliação do sentimento de uma mãe para com seu filho. Ela também causa a sensação de prazer que uma mãe tem ao dar a luz o seu bebê, quando um pai segura o filho nos braços ou simplesmente quando as pessoas ligadas por afeto se abraçam. Como ocorre com a prolactina, a concentração de oxitocina aumenta depois de uma relação sexual. Por outro lado a carência da oxitocina no organismo está associada à sociopatias e psicopatias.

Após descobrir sua doença e ser operado sem grande sucesso George Price se mudou para Londres e enviou uma carta para William Hamilton, considerado um dos estudiosos da teoria da evolução mas importantes desde Darwin. Nele ele pedia uma cópia de um artigo e informava que estava interessado na questão do altruísmo, se propondo a resolver o problema em aberto. Hamilton, que estava de saída para uma expedição de estudos no Brasil, enviou o artigo requisitado sem dar maior atenção ao pedido uma vez que Price não tinha nenhuma formação em biologia e era um desconhecido na área. No entanto, ao voltar alguns meses depois ele encontrou um texto de Price onde estava apresentada a equação, hoje conhecida como Equação de Price. Esta equação descreve a dinâmica da seleção natural, útil para a compreensão de sistemas de organismos onde existem conflitos entre interesses do gene e do indivíduo ou entre interesses do indivíduo e do grupo. O altruísmo consiste em um exemplo clássico deste conflito.

Quando Price encontrou sua equação ele foi imediatamente se consultar com os biólogos da UCL perguntando se aquilo era uma novidade ou algo já conhecido. E lá descobriu que a equação representava uma novidade e um grande avanço na área. Por isto foi quase imediatamente admitido como professor naquela Universidade, obtendo um local de trabalho e uma bolsa de pesquisa. Ele passou a trabalhar em cooperação com William Hamilton e John Maynard Smith, dois dos maiores teóricos ingleses da biologia evolucionária naquele tempo.

Durante o período em que colaborou com os pesquisadores em biologia ele fez três contribuições importantes: encontrou novo desenvolvimento para o trabalho de W. Hamilton sobre a seleção de parentesco, o que resultou em sua Equação de Price, introduziu com John Maynard Smith o conceito de estratégia evolucionária estável (um conceito central para a teoria dos jogos) e formalizou o Teorema Fundamental de Fischer para a Seleção Natural.


Embora bem sucedido em sua busca e tendo seus artigos mais importantes publicados, Price se afastou do pensamento científico e assumiu uma vida de ascetismo cristão. Obcecado por coincidências numéricas, ele fazia operações matemáticas usando dados de sua própria vida, como datas e números de documentos pessoais, e concluiu dos resultados obtidos que não poderia haver coincidência naqueles números. Em seu entendimento ele estava recebendo uma ordem de Deus para realizar alguma tarefa. Muitos de seus colegas relataram perceber nele, neste período, um comportamento autista e antissocial.

Ao explorar as consequências da equação por ele mesmo desenvolvida Price ficou profundamente impressionado com o fato de que o altruísmo sempre envolvia algum tipo de ganho para o indivíduo ou sua espécie. Parecia não existir altruísmo puro e incondicional. Desapontado, ele resolver mostrar por meio do exemplo pessoal que a teoria poderia ser suplantada pelo esforço e boa vontade humana. Por isso saiu percorrendo as ruas de Londres procurando por pessoas desvalidas, alcoólatras, moradores de rua ou qualquer um que precisasse de apoio, decidido a iniciar um programa radical de interferência altruísta na vida destas pessoas. Ele cedia seu dinheiro, comprava comida e oferecia ajuda para qualquer tipo de problema que aquelas pessoas pudessem ter, ajudando-as inclusive com seus problemas legais ou com a polícia. Com o passar do tempo, Price passou a abrigar os sem-teto em casa sendo obrigado a dormir no laboratório quando sua casa se tornou cheia demais. Esta situação perdurou até que seus próprios recursos se esgotaram e ele se tornou mais um dos destituídos, tendo que morar nas ruas junto com as mesmas pessoas que pretendeu ajudar. Aos poucos ele entrou em um processo de degeneração, desenvolvendo mais uma vez uma forte depressão, em parte causada pela impossibilidade de adquirir os medicamentos necessários. Sua degeneração foi atribuída à interrupção no uso dos medicamentos e à decepção frente à incapacidade de transcender as forças biológicas a atingir o auto-sacrifício e o altruísmo.


George Price morreu completamente pobre e abandonado. Poucas pessoas compareceram a seu enterro, dentre elas alguns companheiros de vida nas ruas, gente que o adorava por ter recebido dele ajuda em momentos de dificuldades. Em meio ao grupo que compareceu ao funeral estavam William Hamilton e John Maynard Smith, em reconhecimento pela sua genialidade. Seu corpo foi enterrado em um túmulo não identificado, no cemitério de St. Pancras em Londres, onde permanece até o presente. Mais tarde suas filhas providenciaram a instalação de uma lápide onde se lê: “Pai, altruísta, amigo. Um cientista brilhante responsável pela equação de Price para a evolução”.

A comunidade científica demorou a perceber o alcance das contribuições de Price, que era uma novidade no campo da abordagem matemática para as questões biológicas. Apesar da importância da fórmula por ele proposta, “a fórmula de covariância aplicada à seleção de grupos”, o próprio Price nunca buscou reconhecimento ou procurou atrair a atenção da comunidade para sua obra. Nas palavras de Hamilton, um pouco antes de morrer “É como se você houvesse descoberto o cálculo e o atirasse em um de seus artigos obscuros sem nunca explicar para as pessoas como ele é útil”. Em 1975 Hamilton escreveu um artigo onde tentava popularizar o tratamento de Price, mas o artigo recebeu pouca atenção e a contribuição original de Price continuou desconhecida. Apenas mais recentemente seu trabalho foi notado e até hoje recebe reconhecimento e atenção.

Referências:

Discussão: George Price e o Altruísmo Biológico

Dimas enviou em 06/09/2013:
Li todo o artigo e conclui que: Parece muito com a politica Brasileira, “politicos “egoístas” se aproveitando do “Povo altruísta”…

Guilherme enviou em 06/09/2013
Dimas, acredito existir uma patologia, algo como a falta de empatia entre pessoas que julgam poder se apropriar de recursos da comunidade. Assim como as escolas atraem pedófilos o setor público, por onde circula o dinheiro, atrai psicopatas desonestos.Eu trocaria a expressão “povo altruísta” por povo desinformado e apático.

Samuel S. Ferreira enviou em 16/10/2013
Olá. Li o teu comentário, compreendo porem discordo. Os politicos não se aprovietam de um povo autruista mais sim ignorante, acomodado e manipulável.

Fátima Bezerra enviou em 16/03/2013
Olá,
Minha curiosidade sobre Jeorge Price despertou quando assisti um filme na TV Futura, comentando sobre a sua vida e as suas pesquisas no campo da biologia. Então pus-me a busca de algo a mais consistente sobre essa figura tão peculiar. Sua vida conturbada, sua inteligência, suas contribuição a ciência faz-nos pensar se estamos aqui para contribuir com nossos genes para melhora e perpetuação da raça humana (altruismo genético) ou se realmente fazemos algo por intenção racional(altruismo psicológico). Pois se tudo estiver em nossas células, somos máquinas maravilhosas e perfeitas, mas sem dúvidas existirão aqueles que com seu egoísmo exacerbado se aproveitarão para impor sua supremacia.

Será que neste caso, a biologia suplantará a sociologia? Um abraço. Fátima Bezerra.

Guilherme enviou em 06/09/2013
Fátima,
me parece que a pergunta mais correta seria: podemos suplantar as tendências biológicas inerentes à condição humana?As forças biológicas, até agora, sempre ou quase sempre suplantaram todas as nossas outras tendências e inclinações. Acho importante reconhecermos que somos bichos e agimos como tais.

Acredito, no entanto, que temos a capacidade para refletir e suplantar algumas destas forças puramente animais. Um exemplo disto está no uso do controle da natalidade, prática hoje amplamente difundida em quase todos os grupos e níveis sociais.

GuilhermeRodinely Sousa enviou em 08/08/2013
Um dos poucos artigos encontrados na internet em língua portuguesa sobre a vida desse homem fantástico chamado George R. Price, que alternou de forma singular entre a genialidade e a mais profunda loucura. Parabéns e muito obrigado.

Samuel de S Ferreira em 16/10/2013

Ola.
Passei a ter interesse pela obra de George R. Price após ver um documentario de tv no Discovery Chanel, assim como vc, e como conclusão me fiz a mesma pergunta será que neste caso, a biologia suplantará a sociologia? Que situação não? A resposta que tenho até o presente momento é para mim desanimadora, é bem mais facil e comum ser bem sucedido ao adotar comportamentos egoistas, não é preciso muita força para isto notar, basta ter espelho.

George R. Price, que figura facinante!

Rafael enviou em 06/11/2013
O Sr. Price era um ateu que se achava um Deus de uma matemática a qual nem ele acreditava.

Guilherme: George Price era inicialmente ateu. Mais tarde, aos 48 anos ele julgou ter passado por uma experiência religiosa e se tornou um fervoroso defensor e estudioso do Novo Testamento. Esta experiência, de acordo com seus biógrafos, se derivou de ele julgar que em sua vida ocorriam um número muito grande de coincidências.

Alessandro enviou em 28/11/2013
para mim é claro que George Price buscou a religião como uma fuga de seu estado doentio e depressivo.

É curioso como, ao perceber que na natureza não existe generosidade (ou se existe é muito rara) ele tenha perdido o controle sobre seus atos. É claro que seus atos de altruísmo foram excessivos e o levaram à falência e, finalmente, à morte.

É possível que a pressão originada em seu estado doentio tenha contribuído para esta busca de conforto na religião. Mais um exemplo de como a religião pode ser nociva na vida de uma pessoa!

Hana enviou em 10/01/2014
Gostaria de ler mais artigos assim,você teria mais? Se não, poderia postar?

Guilherme enviou em 17/01/2014
Hana,
a proposta aqui é ir incluindo artigos que despertem a vontade de pensar e dabater. Sempre que posso acrescento alguma coisa portanto sugiro que você dê uma olhada de vez em quando. Você já conferiu os outros artigos deste site? Há alguma tema em particular sobre o qual você está interessada?

2 thoughts on “George Price e o Altruísmo Biológico

  1. Eu apenas soube esses dias atrás da história de Gorge Price por meio do podcast Naruhodo. Então nas minhas pesquisas achei este texto que explicou muito mais sobre o criador da equação de Price. Quando deixei de ser criança passei a acreditar que altruísmo era uma mentira e que ninguém ajuda ninguém de graça, nem mesmo uma mãe com seu filho. Mais tarde entendi que isso se baseia em características evolutivas e hoje com a ajuda de Price eu tenho certeza disso.

  2. O altruísmo biológico não deve ser confundido com o altruísmo moral definidos pelos humanos, muito embora não seja impossível que estejam ligados. Na natureza, até onde podemos perceber, as ações de um indivíduo ou grupo devem favorecer àquele que praticou a ação, ou a seu grupo, ou à sua espécie.

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