Um objeto que interage fracamente com outros objetos é difícil de ser detectado.
Não se pode sequer afirmar que existam aqueles objetos que não interagem de forma nenhuma”.
–Física
Hipatia Lagrange de Spinos, Higgs para os amigos, é uma mulher jovem, igual a quase todos os outros jovens, não fosse por sua coragem e honestidade de pensamento. Por honestidade me refiro à pouca disposição em aceitar coisas apenas porque são admitidas pelo senso comum. Coragem ela mostrou quando, desafiando conselhos e sugestões, decidiu passar uns dias sozinha em uma cabana de madeira antiga instalada no alto de um monte e no meio de uma floresta densa e pouco visitada. Foi a atitude exatamente contrária à covardia dos amigos que se recusaram a acompanhá-la, temendo as histórias apavorantes aceitas como verdadeiras sobre o local.
Ela dirigiu até a borda da mata e caminhou o resto do percurso atravessando uma vegetação exuberante, por vezes de difícil passagem. A umidade se adensou com o frio que aumentava na medida em que ela subia o monte. A floresta estava, como sempre, muito viva. Animais cruzaram seu trajeto e ela os fotografou, sempre que conseguiu. Em suas paradas aproveitava para colher cogumelos que sabia serem deliciosos. Ao mesmo tempo, se lamentou por não poder ver a serra e despenhadeiros que a envolviam, impedida pela neblina. O relevo exigia passos lentos e cuidadosos enquanto ela procurava a direção correta até seu destino.
Ela chegou ao final da tarde. A pouca luz natural ainda permitiu que verificasse o estado da cabana que estava impecavelmente bem cuidada, com a exceção das portas e janelas empenadas com a umidade. Nenhuma delas fechava por completo. Higgs colocou sua mochila sobre uma mesa e a empurrou contra a porta de entrada para impedir que ela abrisse com o vento. Como reforço ela tirou da parede uma ferramenta pesada de madeira, com a forma aproximada de uma raquete, e a depositou sobre a mesa. Depois se sentou na cama no lado oposto do quarto. O cheiro de madeira antiga e úmida, junto com o cansaço e a escuridão só quebrada por uma pequena lamparina, venceram seu bom ânimo e ela adormeceu profundamente.
Ela foi acordada de madrugada com as janelas que batiam incessantes sob o vento gelado. Ainda deitada viu que o céu estava escuro, peneirado por estrelas de brilho nítido, pois a neblina se dissipara. Então percebeu que o ar inalado, gelado e com cheiro metálico, era expirado como vapor que se acumulava em frente a seus olhos. Ela julgou ver figuras difusas na névoa e, aos poucos, teve a certeza de que algo estava se formando bem próximo a seu rosto. Primeiro uma forma oval cinza azulada que se estendeu em um tubo longo em rodopio, mostrando a forma de uma pessoa maltrapilha. Higgs se afastou para poder focalizar a imagem que se formava. Parecia ser uma mulher velha com vestido longo e surrado e cabelos desgrenhados. Ela sentiu medo, mas também curiosidade quando percebeu que a figura era pouco sólida e translúcida. A velha abriu uma boca enorme parecendo gritar algo, mas sem produzir som algum. Ela oscilava de um lado para outro, passando próximo de Higgs em atitude agressiva. A cada investida a figura se firmava em solidez e perdia transparência.
Higgs pressentiu perigo mesmo sem compreender como poderia ser machucada. Então gritou: “Não estou te ouvindo!”. A bruxa parou de oscilar por um tempo e fechou os olhos em estado de concentração. Sua forma se tornou mais definida no ar e ela gritou de novo algo que, agora, foi possível ouvir como som abafado vindo de longe. Nas novas investidas a passagem do espectro começou a causar desconforto quando colidia de raspão. “Você é um gás, um sonho, uma ilusão”, gritou Higgs mais uma vez. A velha pareceu se irritar, parando novamente para se concentrar e ganhar solidez. A jovem a provocou repetidamente enquanto os gritos do espectro se tornavam altos e bem definidos, embora usasse uma língua incompreensível.
Higgs caminhou devagar até a parte mais distante do aposento, se esquivando dos encontros, até ficar em pé ao lado da mesa que apoiava a porta de entrada. A velha enfurecida também se afastou, ganhou velocidade e se arremessou em direção à humana viva que olhava para ela, desafiadora. Os gritos agora eram aterrorizantes, o espectro se tornara opaco e derrubava os objetos em que tocava ao longo da investida. Higgs aguardou pela proximidade e, no último instante, pegou a raquete de madeira e aplicou com ela um golpe violento sobre o rosto da mulher horrorosa que se aproximava. Ouviu-se um baque e os gritos cessaram. A forma se desfez em pó escuro que flutuou devagar até o chão. Higgs refez o arranjo destinado a travar a porta que, dessa vez fechou perfeitamente, e voltou a dormir.
Pela manhã ela encontrou a casa tão limpa quanto estava na tarde passada. Nenhum pó, nada fora do lugar exceto por um colar de aparência antiga caído no chão, ornado com um símbolo estranho que ela não reconheceu. Ela limpou o colar e o colocou no pescoço. Depois preparou o café e um omelete com os cogumelos colhidos na véspera, e saiu para continuar a exploração da mata.
Comentário do autor:
A personagem central desse conto era inicialmente chamada Lúcia Helena Courier, “LHC para os amigos”. A ideia era a de referenciar o Large Hadron Collider, o maior acelerador de partículas do mundo que fica em Genebra, na Suiça. No entando alguns leitores reclamaram, sob a impressão que LHC era um apelido muito sem graça e com pouco apelo para as pessoas que não acompanham a física de perto. Ponderei que isso é uma verdade… nem todos conhecem o que é um colisor de hádrons.
Troquei portanto o nome: ela agora se chama Hipatia Lagrange de Spinos, “Higgs para os amigos”. O nome continua esotérico para muitos mas vou mantê-lo assim mesmo. Com ele presto uma homenagem a:
- Hipatia, a grande matemática e filósofa neoplatônica que viveu no séc. 5 em Alexandria, Egito, e foi morta por um bando de fanáticos cristãos que rejeitavam seu pensamento pagão;
- Lagrange, um matemático italiano do séc. 18 que contribuiu para o cálculo, a teoria das probabilidades e a mecânica clássica;
- Spinos, como referência ao spin de algumas partículas subatômica, como o elétron. O mais importante no caso é seu apelido, Higgs, que faz refência às partículas associadas ao campo que, interagindo com outras partículas, define a sua massa. O bóson de Higgs foi descoberto em 2012 por pesquisadores do Grande Colisor de Hádrons, (LHC) 48 anos após sua predição por Peter Higgs.
Vou afrontar o próximo espectro também!
Faça isso. Parte de nossos medos são irracionais e até absurdos. Coisas imateriais não podem nos ferir. Por outro lado podemos nos defender daquelas coisas que podem nos ferir!