Um Laço no Tempo



“Tempo e espaço são modos pelos quais pensamos e não condições nas quais vivemos.
A distinção entre passado, presente e futuro é só uma ilusão, ainda que muito persistente.”

Albert Einstein

Existe no universo uma linha de eventos incomum, no sentido de extraordinária ou rara. Em algum lugar no tempo e do espaço alguém conseguiu emitir partículas que atingiam um detector microsegundos antes de sua emissão. Muitos não acreditaram, como ainda não acreditam, na possibilidade desses saltos temporais, e argumentaram que simplesmente “não se vê todo dia a chegada de viajantes do futuro”.

Por motivos compreensíveis o nome dessa cientista foi esquecido, mas nós a chamaremos de Paula, por convenção e facilidade de relato. Servirá esse nome a uma homenagem a Paul Dirac, o grande físico inglês que revelou a existência da anti-matéria e a possibilidade de partículas viajando do futuro para o passado. Paula foi ridicularizada pelos colegas, é claro, mas ainda assim continuou a aperfeiçoar seu experimento. Depois de inúmeras tentativas, acumulados muitos fracassos, ela conseguiu transferir objetos maiores a cada tentativa, por intervalos de tempo cada vez mais longos. Incapaz de detectar esses objetos nas regiões intermediárias entre a emissão e a detecção ela elaborou a hipótese de que eles estavam viajando por regiões interstícias do espaço e do tempo, fora ou além das quatro dimensões que conhecemos bem. Pelo menos foi esse o nome e o conceito que ela usou.

Pouco tempo se passou, de acordo com sua própria contagem, até que ela conseguiu transferir microorganismos, depois pequenos animais. É claro que alguém com tamanha curiosidade e engenho, como poderíamos esperar, não demoraria muito até preparar todo um aparato para mandar a si mesma para o passado. Em data ignorada Paula se lançou em uma viagem arriscada e chegou ao mundo na mesma linha de eventos onde já estava, mas 40 anos antes da partida. Sem mencionar sua origem ela encontrou e fez amizade com os pais que, como logo percebeu, se conheciam mas se odiavam. Ela foi tomada pela ansiedade: talvez não devesse interferir com o fluxo dos eventos mas a cada dia, quando se aproximava a data provável de sua concepção e nenhum dos dois dava qualquer sinal de interesse pelo outro, mais crescia a sua angústia.

Procurando remediar a situação, que nem ela mesma sabia se era indevida, Paula tentou aproximar os jovens enaltecendo, um para o outro, as figuras daqueles que teriam que gerá-la. Ela foi delicada e cuidadosa a princípio, perdendo aos poucos o tato e usando termos impróprios para jovens daquele tempo. De forma inesperada, totalmente fora de seu controle, ela provocou maior antipatia e rejeição entre os dois. Foram dias, horas e minutos amargos, enquanto aumentava sua perceção de que não havia tempo para reconstruir uma situação favorável. Naquele momento, mesmo que os pais se relacionassem e tivessem um filho, este filho não seria a Paula. Isso significa que, na narrativa dessa linha do tempo, Paula nunca nasceu. Ali ocorreu o evento raro, magnífico na teoria mas horrível para uma pessoa. O mundo e sua história se bifurcaram. Desesperada ela tentou retomar sua vida na mesma linha de mundo de onde havia saído. Desapontada descobriu que não conseguiria, naquela época, equipamentos com tecnologia adequada. Sua tentativa foi um fracasso e Paula desapareceu em algum lugar e algum momento.

Portanto existe na história um laço que contém um único indivíduo que nasceu, cresceu e deixou de existir após voltar até os momentos anteriores à sua própria concepção. O primeiro universo, onde deveriam existir pessoas que conheceram e sentiam saudades de Paula, existiu durante o laço, o intervalo entre seu nascimento e o fim. Um novo universo, que ela apenas visitou tangencialmente e com brevidade, surgiu em consequência.

Não é improvável que o mesmo tipo de coisa tenha ocorrido novamente, algumas ou muitas vezes. Também não é difícil especular que visitantes do futuro destruam o seu passado, por um ou outro motivo. Talvez seja esse mesmo o motivo para não recebermos com frequência “visitantes chegando do futuro”.

Há quem diga que, em outra linha de mundo, Paula não teria viajado para o passado. De fato, eles defendem, ela se enviou para o futuro. Nesse caso não haveria quem relatasse hoje o ocorrido e, sendo isso verdade, esse conto pode ser seguramente ignorado.

11 thoughts on “Um Laço no Tempo

  1. Gostei do conto. Será essa a explicação para não vermos viajantes do tempo?

    • Rs… Até pode ser uma explicação. Se viagens no tempo desviam o universo de sua linha-mundo original então nunca veremos um viajante temporal.

  2. Muito bem, Guilherme, fiz uma citação no meu trabalho acadêmico de sua autoria (“a matemática serve para descrever o mundo de uma forma rigorosa e precisa. Ela é uma linguagem, uma parte essencial na formação de modelos.”), tô aqui atrás do seu nome completo para referenciar, mas não tô encontrando. Me ajude, please!

  3. Ah, finalmente consegui encontrar aqui. Perdoe-me o comentário anterior, não consigo apagar!

  4. Gostei do conto. Seria bacana poder viajar assim, mas também poder voltar e se recolocar no seu próprio tempo e lugar, certamente, com impressões diferentes sobre si mesmo e sobre o mundo.

    • Muitas contradições lógicas ocorrem até no simples exercício de imaginação sobre “voltar na tempo”.

  5. Gostei do texto enxuto e que provoca muitas ideias.
    Mas não sei se consegui entender o seu objetivo com esse texto.

    • Meu objetivo, nesse e em outros textos de ficção aqui no phylos.net é exatamente o de conseguir passar muita coisa sem fazer floreios.
      Claro que muitas vezes é interessante ter partes do texto que flui lentamente, como muitas descrições detalhadas.
      Mas quero aperfeiçoar a minha habilidade de contar muitas coisas com poucas palavras.
      Obrigado pelo comentário.

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