Saber quando partir

Em uma manhã fria, quando o sol apenas despontava no horizonte, dois homens desciam por um caminho estreito cortado ao longo da encosta de uma montanha. Eles aparentavam ser muito jovens e caminhavam sem esforço, apesar da encosta íngreme. O percurso estava encoberto pela neblina densa e, de onde estavam, não podiam ver o pico gelado. Mas sentiam frio. Um corrimão de madeira desgastada pelo tempo ladeava o caminho forrado por pedras, mas eles não se apoiavam nele. Carlos era o mais jovem e falou primeiro:

― Você não pode partir.

O outro, apesar da aparência, era muito mais velho. Ele respondeu:

― Talvez seja esse um bom momento para você aprender a se relacionar melhor com pessoas de sua idade.

― Já tenho bons amigos. Mas nossos diálogos são insatisfatórios. Acho que são imaturos… Além disso, Avô, você está jovem demais para partir.

O avô olhou com expressão de surpresa e um pouco de censura. Ambos sabiam que ele não era jovem. De fato ele nem era avô e sim tataravô do jovem. O neto continuou:

― É antinatural forçar uma saída prematura. E deve ser algum tipo de pecado ou crime…

― Você sabe que não acredito em pecado e que, na verdade, estaria morto há muito anos não fosse nossa capacidade antinatural de preservar a vida e a juventude. Sabe também que tive uma existência completa, com experiências intensas e variadas. Sinto que realizei tudo o que poderia ter realizado. Agora gostaria de partir. Mas preciso da sua compreensão.

― Você é o meu amigo mais próximo…

― Será que eu deveria ter me esquivado dessa amizade pelo receio de que ela terminasse um dia?

― Não… isso não! Valorizo muito os momentos que passamos juntos.

Carlos se adiantou alguns metros e parou sobre uma ponta do caminho projetada sobre a encosta, fazendo uma volta larga para contornar um lago. Em um canto algumas pedras maiores empilhadas trouxeram a lembrança de uma situação ocorrida há anos, quando ele ainda era criança. Mais tarde aquele momento assumiu uma importância incomum entre suas memórias e, por isso, as imagens estavam bem claras em sua imaginação.

Ainda criança Carlos caminhava com o avô naquela mesma encosta quando encontrou um pedregulho redondo na borda do lago de águas geladas. Apontando para a pedra ele falou: “Veja, uma prova de que já houve águas correndo por aqui!”. O avô estava afastado e, ignorando o comentário, perguntou: “Como posso mover essa pedra sem me aproximar dela?” Carlos respondeu que “não poderia usar forças nucleares, pois elas não teriam tal alcance.” “Também não seria prático usar a gravidade”, continuou, “pois necessitaria ter uma massa muito grande na vizinhança”. Só então lhe ocorreu a possibilidade de usar eletromagnetismo. O avô perguntou: “Como você faria isso?”. “Usando uma vara ou bastão… ou talvez um sopro forte de ar”, concluiu o garoto. O avô ficou satisfeito mas acrescentou: “Posso te mostrar uma forma adicional. Quer ver?” Ele então pediu ao menino que jogasse a pedra no lago, no que foi prontamente atendido. Depois disse: “Viu? Consegui mover a pedra apenas te enviando um sinal. Uma informação!” “Informação é uma forma de força?”, perguntou Carlos. “Não sei a resposta mas recomendo que você continue a estudar esse tema”, disse o mais velho.

Essas lembranças eram caras, principalmente porque depois do evento os dois passaram muitos anos dedicados a compreender a natureza da informação e sua aplicação em outras áreas do conhecimento. Mas fizeram com que ele se sentisse mais triste com a decisão do avô.

― Por que alguém em ótimo estado de saúde haveria de querer ir embora?

O avô respondeu com paciência. Ele não tomaria nenhuma decisão sem o pleno consentimento do neto.

― Porque não aprendemos a rejuvenescer a mente. Nem sei se isso é possível!

― A mente é maleável. Não consegue se ajustar? ― disse o neto em voz baixa, um pouco irritado.

O avô suspendeu a caminhada e se sentou sobre um dos degraus. O outro fez o mesmo. A neblina envolveu e depois ocupou o espaço onde antes havia movimento.

― As experiências se acumulam. Felicidade e tristeza, angústia e arrependimento. A lembrança pode não ser muito nítida mas o sentimento se acumula e oprime o coração ― disse o avô, gesticulando como se segurasse um objeto frágil no ar.

O jovem pensou um pouco e teve uma ideia que iluminou seu rosto.

― Por que você não apaga algumas memórias?

Avô pareceu ter dificuldades para confessar o que fizera.

― Eu fiz isso! As memórias podem ser apagadas mas as resultantes de seus atos não. Então você começa a viver uma vida insana onde as consequências do que você fez te alcançam parecendo surgir do nada. O mundo se torna desconexo e maluco e fica muito mais difícil aprender. É uma escolha. Para não se deprimir você tem que jogar fora a coerência de sua existência. Ele desceu mais alguns degraus e concluiu:

― Sem memória o fio fica perdido. O eu desconexo. Além disso você fica com a forte impressão de estar repetindo os mesmos erros…

O neto ponderou:

― Imagino que isso seja difícil para quem vê a vida como uma oportunidade de aprendizado.

― Claro que sim ― disse o avô, percebendo que encontrara uma boa argumentação para alterar a postura do neto.

O avô acelerou os passos, seguido de perto por Carlos. Eles caminharam em silêncio quase até o fim do percurso, na base da montanha. Ali a trilha se abria em uma clareira circular. Na borda oposta do disco havia um aparelho de vidro na forma de um cilindro.

O avô deu um longo abraço em seu neto. E sussurrou em seu ouvido:

― Você acredita que a informação é conservada no universo? Para onde vão os dados que hoje eu acumulo na descrição de quem eu sou e do que fiz?

O neto acenou com a cabeça mostrando compreender o que ouviu, e fez um sinal de consentimento. Em seguida se encontraram com várias pessoas que os aguardavam na base do monte. Eram parentes e amigos da família. Todos falavam baixo mas não mostravam tristeza.

O avô abraçou cada um, trocando palavras sussurradas ao pé do ouvido. Depois entrou dentro do cilindro de vidro. Um homem de terno escuro tomou a palavra:

― Somos feitos de resíduo estelar, restos de material forjado nas estrelas. Agora devolvemos para a Terra o pó que dela foi tirado para a formação de nosso amigo!

Uma luz azul suave brilhou dentro do tubo desligando as interações moleculares no corpo do avô. As pessoas acenaram em despedida um pouco tarde demais, quando já não poderiam ser vistas. Um jato de água lavou a poeira deixada no tubo, escoando o conteúdo para um jardim por trás do equipamento.

Em silêncio as pessoas começaram a abandonar o sopé da montanha. Algumas choravam baixinho. Carlos não chorou e decidiu voltar para a cidade pelo caminho mais longo, subindo de volta o caminho estreito que serpenteava ao longo da encosta do morro gelado.

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