Sobre as guerras do passado


“Deplorável é a guerra que, para atender ao interesse de alguns, inflige sofrimento sobre muitos que não se beneficiarão de seus resultados”.

Tullian Altoi, Anais de uma Guerra Passada

Um fio claro e reluzente cortou a atmosfera. Dois outros vieram em seguida, traçando uma espiral até o solo. O ar estava denso e frio e o céu azul escuro com partes vermelhas onde o sol ainda alcançava. Mas nenhuma condição adversa poderia ser usada como argumento para evitar o comparecimento das partes pois aquele era o último recanto do sistema não atingido pelo conflito.

Debilitados pela violência, exaustos nos corpos e mentes, as três espécies concordaram em formar uma grande Assembléia. Conselheiros deveriam debater e estabelecer os termos certos e justos para o fim das agressões. Tarefa difícil, eles reconheciam, se considerada a natureza distinta dos adversários, mas urgente após a constatação unânime de que não haveria vencedores.

Representantes dos Aleteos e Arqueos prepararam juntos um salão enorme e magnífico, com beleza que se esperava capaz de quebrantar o ânimo do oponente mais belicoso. Eram seres amantes da poesia e da beleza, forçados a se unir contra o inimigo comum. Eles entraram antes no salão, verificaram a correta disposição das coisas e ocuparam seus lugares. Os Alphas, nome por eles mesmos escolhido, entraram depois de forma ruidosa e exibindo contrariedade pela necessidade de dialogar.

Apenas três representantes se postaram na frente da multidão. Altoi, o Aleteo, pediu silêncio aos inquietos, lembrando que procuravam ali, na verdade, apenas chancelar o que já estava claro como única saída: a convivência harmoniosa. Ele fez então um relato listando as características de cada grupo, coisas de que cada um se orgulhava mas eram exatamente aquelas que os separavam e que precisariam ser superadas.

“Somos diferentes e precisamos lidar com a diferença”, ele disse, com entonação ordinária, sem tentar exibir suas conhecidas habilidades de orador. “Nós, Aleteos, evoluímos em ambiente tranquilo, não conhecemos predadores e jamais passamos por carência de insumos necessários para viver. Somos a espécie mais antiga pelo mesmo motivo, pois nossa evolução foi lenta e sem solavancos. Tratamos cada membro de nosso grupo como irmão e irmã, e fazemos isso desde que reconhecemos a origem comum de todos os indivíduos de nossa sociedade”.

“Arqueos, por outro lado, cresceram em ambiente árido em todos os estágios de sua evolução. Não são guerreiros porque seus inimigos não são sencientes. Obrigados a viver em terreno pouco estável, driblando vulcões e terremotos, eles também cresceram em fraternidade. A única beleza evidente em seu habitat é a arte que eles mesmos produzem … aliás uma bela forma de arte”!

Altoi tentava manter simples o seu discurso, sem perder na imponência que considerava necessária para manter algum controle sobre seus ouvintes. Mesmo assim percebeu a inquietação crescente que vinha do plenário. A um sinal discreto seu um grupo de jovens Aleteos entrou no salão servindo uma bebida quente, de cheiro adocicado, nas mesas previamente adornadas. A beleza dos Aleteos era óbvia mesmo para os de outra espécie. Eles sorriam, convidando os participantes a provarem de sua bebida. Altoi retomou sua fala:

“Também temos entre nós os Alphas, guerreiros extraordinários e fabulosos estrategistas que, para garantir sua subsistência tiveram que derrotar outras espécies inteligentes em seu mundo natal. Não ouvirão de nós nenhuma crítica, nem serão tratados com desapreço pelo extermínio desses inimigos, pois todos sabemos da impossibilidade de viverem todos no mesmo ambiente”.

“Mesmo assim peço aos Alphas que entendam e reconheçam que são o grupo mais belicoso nessa guerra. A Psicologia Interespécie mostra que são indivíduos menos empáticos, mais centrados na individualidade, o que está em flagrante dissonância com a cooperatividade das duas outras raças”.

“Temos mecanismos psíquicos e cognitivos diferentes. Embora as três espécies atualmente convivam com a vida aérea e não estão restritos à superfície, Aleteos e Arqueos evoluíram em ambiente com estímulo cognitivo em uma dimensão extra, inacessível aos Alphas. Em milhares de anos viajamos e percebemos o mundo como seres voadores, enquanto os Alphas estiveram presos ao chão, muitas vezes ao subsolo.” Em uma óbvia manobra diplomática ele ainda acrescentou: “embora saibamos que no presente os Alphas são excelentes pilotos…”

Parcas, o líder Alpha, sorriu procurando disfarçar a antipatia. Ele tomou um gole de sua taça, depois se levantou e falou em tom muito diferente, com a eloquência de quem impele seus pares ao combate.

“Protestando contra os termos injuriosos e insinuações de meu nobre colega conselheiro, reconheço a necessidade de capitular. Afirmo que desistimos de nosso propósito de incorporar todas as áreas produtivas do sistema”. Voltando-se para o próprio grupo: “Afinal, nossa própria simulação indica que a continuidade da guerra equivale à destruição mútua. Qual é a saída proposta?”

Temus, o líder Arqueo, falou dessa vez: “primeiro sugerimos que todas as espécies tenham seu direito inalienável à vida reconhecido. Por vida quero significar independência, conforto na busca de sustento e garantia de que não seremos explorados por qualquer outra espécie. Decidiremos livremente sobre nosso futuro, exceto em questões que envolvam outra raça”.

“Propomos que se vote pela harmonia, de bom grado ou não, defendida e guardada por uma Justiça dotada de sua própria Polícia, mantida e financiada em partes iguais pelos três planetas”.

Altoi Aleteo fez um gesto de desânimo. Ele pediu que se aproximassem seus conselheiros que o convenceram da necessidade da corporação policial. Os três líderes pediram que os delegados debatessem entre si, depois votassem.

Agitação e burburinho normal de um debate importante tomou conta do ambiente. Em poucos casos pessoas se destacaram de seus grupos para debater com membros de outra espécie. Quando se julgaram satisfeitos eles votaram. O resultado indiscutível, mostrando que a maioria absoluta escolheu buscar a paz, foi exibido em um placar colocado acima e em frente de todos. Seguiu-se uma comemoração intercalada por alguns poucos xingamentos, impropérios ditos em língua que a maioria desconhecia.

Passado o alvoroço Altoi Aleteo e Temus Arqueo subiram juntos ao púlpito pedindo silêncio. Eles se revezaram para dar uma notícia surpreendente:

“Não podemos aceitar esse resultado”.

Dessa vez a agitação e o ruído foram mais intensos. “O que está acontecendo?”, se perguntavam. Parcas Alpha exigiu explicação imediata, no que foi atendido por Altoi Aleteo:

“Vocês tomaram uma bebida feita de material eletrocondutor, o que nos permitiu manipular suas percepções e emotividade. Basicamente alteramos seu sentimento de empatia, usando aquelas antenas ali posicionadas”, disse ele apontando para estruturas côncavas presas ao teto. “Nossa intenção é a de mostrar que existe outra maneira de encarar o mundo que não remove a competição mas adiciona empatia. Esses dois fatores promovem a convivência e a troca com benefícios mútuos. Portanto convidamos a todos, Alphas em particular, a meditarem e visualizarem um mundo de cooperação, enquanto durar o efeito da nossa intervenção. O que podemos fazer juntos?”

Ainda sob efeito ativador do chá os Alphas aceitaram ficar ali parados, olhando com a atenção interna para uma visão de mundo que nunca haviam antes contemplado. “Guardem na memória tudo o que puderem perceber”, disse com a voz tranquila o lider, conhecedor de que sem essa manobra o armistício não seria duradouro.

Passado algum tempo o efeito começou a se dissipar. Os Alphas se sentiram tomados por sensação ambígua feita de raiva e vergonha por terem sido dominados psicologicamente, ainda que também de reverência pela visão inovadora a que tiveram acesso. Em suas imaginações eles viram os três grupos se expandindo pela galáxia, incorporando outras raças desenvolvidas em seu império e ajudando as menos avançadas a progredir. Alguns também viram guerras e conflito, todas de escopo local e sem a capacidade de destruir o grande fluxo civilizatório.


O que ocorreu depois disso ficou perdido no tempo e não foi incorporado na história. Pelo que observamos hoje as guerras foram interrompidas donde se conclui que O Congresso foi bem sucedido. Nenhuma das espécies foi extinta uma vez que temos circulando em nosso DNA porcentagens variáveis mas equitativas de herança de cada uma delas.

Inesperadamente nossa herança bélica foi útil em muitas situações ainda que a predominância de nossa natureza cooperativa tenha sido, de fato, responsável pela longevidade e alcance de nossa raça única e gloriosa!


2 thoughts on “Sobre as guerras do passado

  1. Achei interessante e bonito o conceito da história curta e compacta desses povos.
    Continue escrevendo!

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