Propósito

Introdução


eHectra Solaris manobrou seu veículo, olhou pela janela e viu o planeta em seu giro suave que lançava regiões alternadas em sombra e luz. Amanhecia nas regiões mais elevadas do Continente Central, nas montanhas de picos sempre cobertos de neve. Em breve a claridade chegaria aos vales. Ela imaginou o burburinho crescente que vinha do leste acompanhando a linha difusa que abria o dia e acordava as cidades. Sozinha, dentro de sua cabine, ela se lembrou dos milhões de pessoas que estavam, naquele exato momento, em voos acima da superfície. “Uma população equivalente à de uma cidade de médio porte”, pensou. “O suficiente para dar início a uma nova humanidade caso algum problema extermine todos os seres vivos no solo”. Era muito mais gente do que as populações das tribos que geraram toda a humanidade inicial. Mas este recurso provavelmente não seria utilizado. eHectra, como a maioria dos meckos em serviço, mantinha parte de sua memória antiga desabilitada, o que não a impedia de admirar a experiência terrestre e suas transformações.

Do alto de sua órbita elevada ela olhava a Terra e pensava nos bilhões de nascimentos, na luta pela sobrevivência e morte de grupos e indivíduos de forma objetiva e distante. Mas era impossível não se entristecer ou se preocupar com o futuro próximo, os problemas que se aproximavam, previstos ou inesperados. “O futuro assombra mesmo aqueles que conhecem o passado!” Mais uma vez a comunidade fora mantida por um período extenso e satisfatório. Apesar do desgosto que sentia em face à destruição, do tumulto e sabendo da dificuldade na reconstrução, ela respirou fundo e sentiu alívio por estar cumprindo sua obrigação.

eHectra desligou todos os monitores no painel, relaxou em sua poltrona, fechou os olhos e se concentrou em seus dispositivos internos de realidade aumentada. Em seguida realizou uma varredura nas frequências funcionais de comunicação procurando um canal com intensidade suficiente para superar a turbulência dos ventos solares, invisíveis mas devastadores para a comunicação eletromagnética e tentou iniciar uma conexão com um interlocutor na superfície da Terra. Sem conseguir o que buscava ela registrou um pedido para sair de sua órbita alta e descer até uma região de onde pudesse fazer o contato.

Há muitos anos ela não olhava o planeta de perto, nem se aproximara tanto de sua superfície. Em todo o tempo em que estivera fora ela não sentiu tantas saudades como agora, quando estava prestes a pisar mais uma vez os solos verdejantes e úmidos de sua comunidade de origem. Ela pensou nos muitos locais que gostaria de visitar, as cataratas, as trilhas por dentro da mata densa, as cidades apinhadas de turistas carregando suas enormes sacolas de compras. Mas em todos eles, ela sabia, a memória de um amigo há muito desaparecido haveria de turvar sua alegria pelo retorno.

Por mais difícil que fosse reconhecer isso ela pensou em como estava próxima de seus últimos momentos e como seria difícil abrir mão do controle que tinha sobre suas próprias memórias. Mas decidiu que, quando chegasse o momento, ela o faria com dignidade e entregaria seu posto e sua experiência para uma nova geração de servidores.
Ao cair da tarde o Sol, agora visto de longe, exibiu para ela uma faceta amigável. A luz carregava um calor ameno e agradável no contato com a pele. O brilho, ofuscado pelas montanhas mais altas e pelas nuvens no horizonte, trazia consigo um espetáculo de cores pastéis, suaves aos olhos e ao psiquismo.

Na superfície um movimento ocorreu em uma área deserta, sem que qualquer pessoa percebesse. O solo se movimentou com batidas retumbantes e ritmadas. Cada batida provocava um estampido surdo e movimentava um pouco de terra até que uma pequena elevação surgisse onde antes nada havia. Uma fresta se abriu no solo e, de dentro dela emergiu uma pessoa, ou algo que se parecia com uma pessoa. Ela se movimentou devagar, a princípio, rompendo o saco protetor em que estava enterrada. Em seguida se virou na direção da pouca luz solar que restava. Ela se limpou, alongou os membros em gestos demorados e saiu andando com rapidez na direção do vilarejo mais próximo.

Esta é a abertura do conto de ficção, Propósito. Você pode ler parte do livro e adquirí-lo na Amazon.

2 thoughts on “Propósito

  1. Leio quando tenho tempo, e às vezes quando não tenho.
    “Propósito”, do Guilherme, transporta a gente para algo que mistura sensações “existenciais” (Não me ocorre outra forma de explicar… Entendam como achem melhor…)
    É que para entender, tem que ler o livro. O que mais me chama a atenção, e me prende, é a riqueza de detalhes-o que explica as tais sensações existenciais, creio- uma mistura de incerteza do futuro ( no nível de “senso comum do presente) e a “certeza” do que “obviamente assim será”… é nesse jogo de [agora/mais adiante x talvez/ quase certo]; que a gente viaja se permitir deixar que a imaginação (visionária?) deste autor (meu amigo!) “maluco” carregue o leitor (eu, mas deveríamos ser muitos…somos? Tomara) para outras dimensões… Ah, sim: aquilo encima de “leio quando NÃO TENHO TEMPO também é para referencia àqueles que leiam este comentário : o livro “prende”, tanto que voce acaba lendo mesmo quando não tem tempo…;)

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